Opinião e Análise

Fabiano Engelmann

O debate em torno da “lei de moralização da vida pública” na Assembleia Nacional francesa nos últimos meses é um exemplo das iniciativas - generalizadas em diversos países - visando introduzir mecanismos para sancionamento das condutas de representantes políticos. No caso francês, a proposta de lei resultou, em grande medida, da repercussão dos escândalos envolvendo financiamento de campanhas, emprego de parentes e ocultação de declarações de renda que cercaram o debate presidencial nas últimas eleições. As denúncias abalaram uma das candidaturas favoritas nas sondagens de opinião, a do direitista François Fillion, acusado de manter a esposa como funcionária fantasma no seu gabinete de deputado.
Independente da conjuntura e do seu alcance na mudança das práticas políticas, tais iniciativas apontam para mais um ciclo do discurso da “moralidade pública”. Desta vez ancorado no catecismo da transparência e no reforço da independência de instituições que reivindicam um controle “(a)político” sobre os representantes eleitos. Os vínculos dessa retórica são fluídos, oscilando entre o moralismo neoliberal do “Estado eficiente” e o retorno ao ideal de um Estado “desmercadorizado”.
Objeto de forte controvérsia no debate parlamentar francês, o projeto de “moralização da vida pública” foi impulsionado pelo apoio de organizações como a Transparência Internacional e a francesa AntiCor - pela ética na política; cujos líderes participaram de audiências no parlamento recomendando medidas profundas, como o controle no financiamento de campanhas eleitorais e maior autonomia do sistema de justiça para investigar as contas dos eleitos. Entretanto, o projeto original dos parlamentares é mais brando nas medidas propostas. Liderado pela maioria obtida pelo recém-eleito Emanuel Macron, o projeto, prevê medidas como a proibição da contratação de parentes de deputados, a fiscalização das verbas de gabinete e a limitação do número de mandatos sucessivos. O ponto mais controvertido que dividiu os parlamentares na primeira rodada de discussão da lei foi a emenda proposta pela esquerda visando maior restrição e punição dos vínculos dos deputados com o setor privado. Especialmente, a participação em atividades de consultoria durante o mandato, em geral relacionadas às profissões e corporações de origem do representante. Trata-se de uma zona cinzenta, onde circulam recursos e informações estratégicas e tráfico de influência envolvendo particularmente o setor empresarial prestador de serviço ao Estado e as disputas em torno de marcos regulatórios que afetam diretamente determinados setores econômicos.
Alguns parlamentares, mais à direita, propuseram pequenas restrições às atividades estabelecendo critérios de impedimento, como o tempo de dedicação ou a remuneração nas consultorias. Argumentaram que a supressão dessas atividades poderia contribuir para a perda dos vínculos com os setores corporativos de onde provém, enfraquecendo, por consequência, a capacidade de representá-los na Assembleia Nacional. Mais à esquerda, o movimento France insoumise propôs a proibição absoluta das atividades de consultoria, em nome de uma dedicação exclusiva a “vida pública” incluindo a vedação de rendas e atividades extras e estendendo a medida para o conjunto da alta administração pública. O argumento chave é que a proposta original de “moralização” não é suficiente para atenuar a influência e captura das instituições políticas pelo setor privado, fenômeno que cresceu na França conforme demonstram pesquisas recentes nas ciências sociais <a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>.
O marco legal que resultou aprovado no parlamento francês, muito em função dos compromissos da maioria macronista, não apresentou mudanças radicais que possam impactar as relações políticas. Entretanto, o interessante nesse processo são as disputa em torno do sentido da regulação e controle da atividade de representação política. Em um pólo, as propostas parecem se limitar a dar respostas ao desgaste advindo da conjuntura de escândalos político-midiáticos que permearam o debate presidencial. Aqui trata-se de uma agenda que privilegia a “eficiência” no uso dos recursos parlamentares, o que implica em mecanismos de maior transparência, mas também de restrição política no uso desses recursos. Outro pólo pretende discutir mais profundamente as relações entre o espaço da representação política e o mundo empresarial. Aqui o nó é mais complexo e não será “revogado” por leis brandas de transparência, pois atinge o estado do jogo político onde capitais políticos e técnicos adquiridos na passagem por postos públicos reforçam e ampliam posições no setor privado.
Finalmente é preciso observar que esse debate surge, não somente no caso francês, mas em um ambiente de larga difusão da retórica da “crise do sistema político” que contempla, em diferentes cenários, a ascensão de novos agrupamentos e alinhamentos políticos e o declínio conjuntural de partidos tradicionalmente ancorados em clivagens mais facilmente identificáveis. Resta saber qual “moralização” vai predominar e a quais propósitos serve essa retórica. Se não avança no sentido do questionamento das relações entre as grandes corporações e o setor público, pode simplesmente posicionar as “instituições independentes” como guardiãs de um Estado a serviço do mercado bloqueando o avanço dos mecanismos de representação política e, por consequência, a maior democratização de recursos públicos.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a>Sobre o espaço de circulação de agentes entre o setor público e privado e as implicações para o regime democrático na França ver LASCOUMES, Pierre. Une démocratie corruptible: arrangements, favoritisme et conflit d’intêrets. Paris: Ed. Seuil, 2011 e o trabalho recente de FRANCE, Pierre &amp; VAUCHEZ, Antoine. Sphère publique, intérets privés. Enquête sur um grand brouillage. Paris: Ed Sciences Po, 2017.
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Macron

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JOTA

A separação entre o mundo empresarial e o espaço político

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