Opinião e Análise

Ludmila Ribeiro

Lívia Bastos Lages

<p align="justify">De acordo com as informações compiladas pelo World Prison Report, em novembro de 2018, o Brasil possuía a terceira maior população prisional do planeta, encarcerando quase 720 mil pessoas.<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> Desses, 34% são denominados de presos provisórios, pessoas que aguardam um desfecho final de seus respectivos processos penais. Essa situação é bastante problemática em um contexto de superlotação, o que faz com que carceragens sejam utilizadas como prisões e com que dois indivíduos sejam detidos em um espaço no qual mal cabe um.</p>
<p align="justify">Estes dados não são novos e, desde as últimas décadas, têm indicado de maneira sistemática uma matemática da qual o Judiciário procura se esquivar apesar das mudanças legais, que pouco alteraram o comportamento dos juízes.</p>
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<p align="justify"><a name="_GoBack"></a> Inicialmente, a estratégia foi, por meio da Lei 12.403/2011, aumentar o leque de medidas cautelares que poderiam ser aplicadas no lugar da prisão para acompanhamento do suspeito ao longo do processo penal, de maneira a diminuir a quantidade de presos provisórios. Contudo, as pesquisas realizadas para verificar o impacto da referida lei indicaram que a prisão provisória continuava a ser a medida preferencial adotada pelos juízes, aplicada a mais da metade dos casos, sob a justificativa de garantia da ordem pública.<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> A avaliação feita à época era a de que os magistrados não lançavam mão das demais medidas porque restringiam a análise da necessidade da prisão aos documentos policiais e, por isso, mudanças mais estruturais se faziam necessárias.</p>
<p align="justify">Essas mesmas pesquisas destacaram a enorme desconfiança dos magistrados na capacidade das outras medidas cautelares em efetivamente deter a “carreira criminal” daqueles presos em flagrante pela polícia.</p>
<p align="justify">Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério da Justiça, implementou um projeto piloto de Audiências de Custódia, que tem como objetivo levar os presos em flagrante à presença do promotor, do juiz e do defensor em até 24 horas após a detenção com vistas a qualificar o processo decisório relacionado à prisão preventiva. A expectativa era de que diante da pessoa presa, os operadores do direito seriam sensibilizados sobre a real necessidade de manter este sujeito encarcerado durante o processo, o que garantiria um maior percentual de medidas cautelares diversas da prisão nesta fase.</p>
<p align="justify">Como indicam as pesquisas sobre o tema, a maioria das comarcas brasileiras ainda não conta com Audiências de Custódia, sendo que a decisão sobre a necessidade da prisão provisória continua restrita à análise dos documentos policiais.<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> Todavia, mesmo quando as audiências são realizadas, em mais da metade dos casos, há a decretação da prisão preventiva, em uma audiência que dura poucos minutos e quase nunca abre espaço suficiente para que o custodiado possa narrar como se deu a prisão.<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> Os discursos dos operadores do direito entrevistados nessas pesquisas foram reveladores da existência de uma mentalidade punitivista, que vê na prisão provisória uma espécie de responsabilização pelo delito que sequer foi investigado propriamente pelas polícias.</p>
<p align="justify">Em resumo, apesar da mudança legislativa e da tentativa de implementação pelo judiciário de uma política criminal específica para o problema da prisão provisória, a sua aplicação permanece como um problema central, porque os juízes continuam a preferir o encarceramento a outras medidas cautelares como mecanismos de supervisão do suspeito ao longo do processo. Ocorre que essa não é a única causa do enorme percentual de prisões preventivas existentes no sistema prisional brasileiro. Um outro ponto que talvez não tenha recebido a mesma atenção que as medidas cautelares alternativas ao encarceramento e as audiências de custódia e que contribui para a difícil matemática dos presos provisórios é o tempo de duração dos processos penais.</p>
<p align="justify">Como algumas pesquisas têm indicado, especialmente no caso de crimes graves como o homicídio doloso, a morosidade é a palavra que melhor qualifica o processo penal. <a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a> São tantos os casos que demoram décadas para tramitar nos Tribunais do Júri que boa parte deles é encerrado com a prescrição. Neste contexto, a prisão provisória se torna uma forma de “punição” fazendo do processo penal a própria pena, em detrimento de um instrumento de garantia de direitos. Assim, para efetivamente diminuirmos a quantidade de presos provisórios, precisamos, por um lado, diminuir o uso dessa medida cautelar e, por outro, repensar os nossos padrões de administração da justiça. Essa é a contabilidade da qual o Judiciário procura se esquivar.</p>
<p align="justify">Uma amostra da dimensão deste problema é a enorme quantidade de Habeas Corpus (HC) que chega ao Supremo Tribunal Federal questionando a legitimidade da prisão provisória em processos penais que se arrastam há anos nos tribunais estaduais. Na pesquisa que estamos realizando neste momento, que tem como fonte de informação os Habeas Corpus julgados pelo STF como “excesso de prazo” no processo penal,<a href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> temos constatado que desde a Constituição da República de 1988, o STF analisou 971 HCs sobre essa temática, sendo que boa parte desses foi impetrado após a Emenda Constitucional 45/2004, que inscreve o princípio da “duração razoável do processo” na Carta Magna brasileira. O cerne das razões do Habeas Corpus por “excesso de prazo” não é o tempo per si do processo penal, mas o prazo razoável da prisão provisória.</p>
<p align="justify">No STF, o padrão de decisão majoritário consiste em negar a soltura do indivíduo preso há meses ou anos sob a justificativa de que o decurso do tempo, por si só, não pode ser a razão de sua soltura. Esses são os casos denominados de morosidade aceitável, os quais dizem respeito a crimes que foram cometidos por vários indivíduos ou que parecem ser graves o suficiente para a manutenção da prisão como garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal, categorias razoavelmente elásticas mesmo na doutrina penal. Em diversos acórdãos encontramos o reconhecimento de que a duração do processo não era razoável, mas nem por isso o sujeito seria solto, o que era justificado pelos seguintes dizeres: “A Turma, por votação unânime, denegou a ordem, mas recomendou celeridade ao Juízo de Direito da Vara Criminal da Comarca” (HC 138488).</p>
<p align="justify">O padrão minoritário de decisão reconhece o direito a duração razoável, com a menção explícita à mudança do texto constitucional em 2004 e, por isso, acata o pedido do Habeas Corpus. Nessas poucas situações, o STF entendeu que privar o sujeito de sua liberdade por um tempo maior do que o previsto para o processamento dos crimes é uma afronta aos direitos e garantias constitucionais, razão pela qual o sujeito deve ser colocado em liberdade. Interessante notar que qualquer que seja a decisão do STF, sempre há o reconhecimento de que os processos penais se arrastam por anos a fio, ainda que não se admita os efeitos da morosidade na manutenção do elevado percentual de presos provisórios.</p>
<p align="justify">O que gostaríamos de destacar com essa discussão é como o Judiciário tem se mostrado parte do problema dos presos provisórios e do agravamento da crise do sistema prisional que se instalou no Brasil nas últimas décadas, já que as mudanças legais não se transformam em novos padrões de comportamento por parte de nossos magistrados, impedindo efeitos reais. Por isso, poucos são os casos de prisão em flagrante liberados por meio da aplicação de outras medidas cautelares, seja no contexto das Audiências de Custódia, seja na análise dos documentos policiais como disciplina o Código de Processo Penal.</p>
<p align="justify">Também por isso, os tribunais não se preocupam com o tempo da justiça, mantendo os indivíduos presos por anos sem que os seus processos penais sejam examinados pelos juízes de primeira ou segunda instância, o que tem contribuído para a transformação do processo em uma pena propriamente dita. Em resumo, estamos diante de uma difícil matemática da qual o Judiciário procura se esquivar, posto que apesar das mudanças legais, o padrão de decisão permanece o mesmo, razão pela qual a contabilidade dos presos provisórios não tem se alterado nos últimos anos.</p>
<p align="justify">------------------------------</p>
<div id="sdfootnote1">
<p><a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Disponível em: <a href="http://www.prisonstudies.org/">http://www.prisonstudies.org/</a>, acesso em 20 de março de 2019.</p>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<p><a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Nesse sentido, ver: <a href="http://www.soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_lei_das_cautelares_comparativo_sp_e_rj.pdf">http://www.soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_lei_das_cautelares_comparativo_sp_e_rj.pdf</a>, acesso em 20 de março de 2019.</p>
</div>
<div id="sdfootnote3">
<p><a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Nesse sentido, ver: <a href="https://www.hrw.org/pt/world-report/2019">https://www.hrw.org/pt/world-report/2019</a>, acesso em 20 de março de 2019.</p>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<p><a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Nesse sentido, ver: <a href="http://www.iddd.org.br/index.php/2017/12/15/relatorio-audiencias-de-custodia-panorama-nacional/">http://www.iddd.org.br/index.php/2017/12/15/relatorio-audiencias-de-custodia-panorama-nacional/</a>, acesso em 20 de março de 2019</p>
</div>
<div id="sdfootnote5">
<p><a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> Nesse sentido, ver: <a href="http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/publicacoes/Biblioteca/dialogossobrejustica_tempo-medio-do-processo-de-homicidio.pdf/">http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/publicacoes/Biblioteca/dialogossobrejustica_tempo-medio-do-processo-de-homicidio.pdf/</a>, acesso em 20 de março de 2019</p>
</div>
<div id="sdfootnote6">
<p><a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> Trabalho realizado com o apoio do CNPq (processo 307371/2017-8), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria.</p>
</div>


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JOTA

Uma contabilidade da qual o Judiciário procura se esquivar?

A difícil matemática dos presos provisórios

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