Opinião e Análise

Luniza Carvalho

Thais Veiga Shingai

Vanessa Rahal Canado

Breno Vasconcelos

Em texto anterior, divulgamos nesta coluna nosso projeto de pesquisa “Manual de Boas Práticas para aplicação do Pronunciamento CPC 25 (Provisões e Passivos Contingentes) aos processos tributários de companhias abertas”, voltado a construir parâmetros rigorosos para auxiliar na divulgação de informações coerentes e úteis quanto às perdas em processos tributários, e que agora avança para sua fase final.
Nesta terceira e última etapa do projeto, realizaremos entrevistas e enviaremos um questionário às empresas integrantes da amostra e à(o)s advogadas(os) atuantes no contencioso tributário, visando obter informações sobre as políticas internas adotadas para a atribuição do prognóstico de perda (provável, possível ou remoto) a processos tributários.
Esses dados, somados às informações contábeis mapeadas nas duas primeiras fases do projeto, serão consolidados no relatório de pesquisa a ser publicado, e serão utilizados como base do Manual de Boas Práticas que será proposto pelo Núcleo de Tributação do Insper como resultado do projeto.
Enquanto não concluída a terceira etapa, elaboramos este texto tendo por objeto um aspecto de interesse geral debatido entre as autoras e o autor nas duas primeiras etapas do projeto: a impressão de que as empresas brasileiras provisionam uma parcela muito reduzida de suas contingências tributárias reportadas nas demonstrações financeiras, em comparação aos níveis internacionais.
Conforme dados obtidos pelo Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, o contencioso tributário brasileiro nos níveis federal, estadual e municipal equivalia a 73% do PIB em 2018<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e a 75% em 2019<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. São dados significativamente discrepantes em comparação a países-membros da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OCDE">OCDE</a> e outros países da América Latina, ressalvadas as diferenças entre os sistemas tributários e procedimentos aplicáveis em cada jurisdição<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Essa discrepância também é verificada na contabilização de discussões tributárias no Brasil e no exterior: conforme estudo realizado no âmbito da pós-graduação stricto sensu (programa de mestrado) da Escola de Administração de Empresas da FGV, comparando Brasil e França. No mesmo período (2016) as empresas francesas tinham 86,7% de suas contingências provisionadas e 13,3% não provisionadas, ao passo que as empresas brasileiras provisionavam somente 21,4% das contingências, tendo 78,6% de suas contingências não provisionadas.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Na mesma direção, a pesquisa realizada conjuntamente por Fipecafi e EY, denominada "Análise sobre o IFRS no Brasil", com última atualização em 2013<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, constatou que o percentual de 28,8% das contingências era considerado de perda provável pelas companhias brasileiras, ao passo que, em 70,62% dos casos, a perda era considerada possível, e, nos 0,58% restantes, remota.
Conforme dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Contabilidade da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2012 as empresas brasileiras apresentavam processos judiciais e administrativos que somavam R$ 498 bilhões. No entanto, apenas 12% (R$ 58,8 bilhões) desse total foi objeto de provisões, 60% de todos os processos em que as empresas estavam envolvidas eram classificados como de perda possível (cerca de R$ 300 bilhões) e 28% como de perda remota. Os processos tributários representavam 69% do total dos processos judiciais e administrativos<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Ao levantar os passivos contingentes de 102 empresas estrangeiras que negociam suas ações na Bolsa de Nova York, as empresas brasileiras apresentaram o maior volume de litígios divulgados (33%), representados principalmente por contingências tributárias<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Para tentar explicar essa situação do sistema e do contencioso tributário no Brasil temos os seguintes dados:
<ol>
<li>A complexidade tributária decorre, entre outros fatores, da (i) ambiguidade e incerteza na interpretação da legislação tributária, e (ii) das excessivas alterações legislativas<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>;</li>
<li>Há incerteza quanto à resolução dos litígios tributários<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, a exemplo da incidência de contribuição patronal sobre o terço de férias que, em um primeiro momento, havia entendimento firmado no STJ pela não incidência (Tema 479) e posicionamento do STF de que a discussão possuía natureza infraconstitucional, para, em um segundo momento, ocorrer reviravolta jurisprudencial no julgamento do RE 1.072.485 pelo STF, no sentido da incidência;</li>
<li>Há imprevisibilidade ou inconsistência no tratamento conferido pela autoridade fiscal aos contribuintes<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, cuja ausência de critérios jurídicos objetivos e falta de transparência pode resultar em duas situações semelhantes tendo tratamentos fiscalizatórios diferentes.</li>
</ol>
Pesquisa realizada objetivando apresentar os impactos econômicos do reconhecimento de passivos contingentes e provisões por empresas brasileiras auditadas pelas big four analisou 50 empresas em 2014 e demonstrou que, caso as contingências fossem todas reconhecidas, 60% das companhias diminuiriam seus lucros em mais de 100%, e 6% apresentariam passivo a descoberto, ou seja, possuiriam ativos menores que seus passivos. A pesquisa chamou atenção também para os passivos contingentes de natureza fiscal, que possuíam a maior média com relação aos demais, de R$ 1,4 bilhão<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Os resultados do referido estudo indicam que o elevado número de passivos contingentes a que as empresas brasileiras estão submetidas pode fazer com que haja um rigor maior com relação ao percentual de provisão, considerando que boa parte desses valores pode não implicar em efetivo desembolso de recursos econômicos.
Em função desse contexto, justifica-se a adoção de um modelo rigoroso para a divulgação de passivos contingentes e o registro de provisões, prevendo critérios objetivos que orientem os gestores em seu processo de tomada de decisão com relação ao tratamento contábil a ser aplicado a cada contingência, conforme o Manual de Boas Práticas que em breve será divulgado pelo Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme o relatório Contencioso Tributário no Brasil 2019/2018, disponível em <a href="https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Contencioso_tributario_Relatorio2019_092020_v2.pdf">https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Contencioso_tributario_Relatorio2019_092020_v2.pdf</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme o relatório Contencioso Tributário no Brasil 2020/2019, disponível em <a href="https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/01/Contencioso_tributario_relatorio2020_vf10.pdf">https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/01/Contencioso_tributario_relatorio2020_vf10.pdf</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Considerando dados referentes ao ano de 2013, o país com a maior relação entre contencioso tributário e PIB foi o Canadá, com o percentual de 1,14%.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Conforme Leite, José Roque. Evidenciação de provisões e passivos contingentes (IAS 37/CPC 25) : análise comparativa entre Brasil e França / José Roque Leite. - 2018. Disponível em <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/24516/EVIDENCIA%C3%87%C3%83O%20DE%20PROVIS%C3%95ES%20E%20PASSIVOS%20CONTINGENTES%20(IAS%2037CPC%2025)%20v.f..pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/24516/EVIDENCIA%C3%87%C3%83O%20DE%20PROVIS%C3%95ES%20E%20PASSIVOS%20CONTINGENTES%20(IAS%2037CPC%2025)%20v.f..pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: <a href="https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/223909/mod_resource/content/1/Pesquisa_EY_Fipecafi_2013_Web.pdf">https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/223909/mod_resource/content/1/Pesquisa_EY_Fipecafi_2013_Web.pdf</a> , acesso em 02.052023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Rosa, C.A. (2014). Panorama e Reconfiguração das Contingências Passivas no Brasil. Dissertação de Mestrado em Contabilidade, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. p. 89 e 90. Disponível em <a href="https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/129202">https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/129202</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BALDOINO, Eduardo e BORBA, José Alonso. Passivos contingentes na bolsa de valores de Nova York: uma análise comparativa entre as empresas estrangeiras. Revista de Contabilidade e Organizações 23 (2015). p. 76. Disponível em <a href="https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/107064">https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/107064</a>.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Hoppe, Thomas and Schanz, Deborah and Sturm, Susann and Sureth-Sloane, Caren, What are the Drivers of Tax Complexity for Multinational Corporations? Evidence from 108 Countries (October 1, 2017). WU International Taxation Research Paper Series No. 2017-12, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3046546 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3046546.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> FMI; OCDE. Tax Certainty 2017: IMF/OECD Report for the G20 Finance Ministers. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/tax-policy/tax-certainty-report-oecd-imf-report-g20-finance-ministers-march-2017.pdf.)
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> European Commission, Directorate-General for Taxation and Customs Union, Hemmelgarn, T., Zangari, E., Caiumi, A., Tax uncertainty: economic evidence and policy responses, Publications Office, 2017, https://data.europa.eu/doi/10.2778/620293.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> JESUS, Simones e Silva e DE SOUZA, Maíra Melo. Impacto do Reconhecimento dos Passivos Contingentes na Situação Econômica das Empresas Brasileiras Auditas pelas big four. Revista de Contabilidade. UFBA, Salvador, v. 10, p.43, 2016.

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