Opinião e Análise

Thais Veiga Shingai

Breno Vasconcelos

Larissa Luzia Longo

Como mencionado em textos anteriores nesta coluna, a <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833">PEC 45/2019</a> tem como objetivo promover a reforma da tributação sobre o consumo no Brasil, para substituir os atuais ISS, ICMS, IPI e PIS/Cofins pelo imposto e a contribuição sobre bens e serviços (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/IBS">IBS</a>/<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CBS">CBS</a>), que seguirão o modelo de Imposto sobre o Valor Agregado (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/IVA">IVA</a>).
O IVA é um imposto cobrado em todas as etapas do processo de produção e distribuição, de forma não cumulativa, o que faz dele um tributo neutro, isto é, sua incidência independe da forma como está organizada a atividade empresarial. A não cumulatividade plena é viabilizada pelo regime de crédito financeiro, também conhecido como método subtrativo, de nota fiscal ou de “imposto-contra-imposto”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Os IVAs mais antigos seguiam o regime de “créditos físicos”, em que era admitido o creditamento apenas do imposto pago na aquisição de insumos que fossem incorporados fisicamente na produção de outros bens<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Não foi este o modelo eleito pela <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833">PEC 45/2019</a>, que, já em sua redação original, dispunha ser o IBS um tributo não cumulativo, seguindo o regime de créditos financeiros. A única exceção admitida à não cumulatividade plena, então prevista na justificativa da PEC, dizia respeito aos “bens e serviços de uso e consumo pessoal”, por ser função da não cumulatividade “garantir o ressarcimento do imposto incidente sobre bens e serviços utilizados na atividade produtiva, mas não desonerar o consumo dos proprietários e dos empregados das empresas, o qual deve ser tributado normalmente”.
Embora a redação da PEC tenha sido alterada nesse ponto, o texto continua prevendo a não cumulatividade plena, no art. 156-A, §1º, VIII: “com vistas a observar o princípio da neutralidade, será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas nesta Constituição”.
O uso do termo “uso ou consumo pessoal”, por trazer à lembrança indevidas restrições ao creditamento de ICMS e PIS/Cofins, tem gerado justa preocupação. Afinal, quais seriam as operações assim entendidas, e que não darão direito a crédito?
Em primeiro lugar, o conceito de “uso e consumo pessoal”, aplicável ao IBS e à CBS, não se confunde com as condições para a dedução de despesas operacionais na apuração do lucro real, que devem ser necessárias e usuais ou normais às operações ou atividades da empresa (art. 311 do Decreto 9.580/2018).
Isso porque, na sistemática do IVA, “basta que os bens e serviços adquiridos tenham sido usados na geração da operação tributada para justificar a dedução”. Não cabe ao Fisco avaliar a necessidade e usualidade das despesas, ou seja, “mesmo que a atividade econômica seja ineficiente e utilize bens e serviços desnecessários, a dedução do IVA pago em tais aquisições permanece assegurada”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em segundo lugar, as operações voltadas a “uso ou consumo pessoal” não podem ser confundidas com as aquisições “de mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento”, cujo direito à escrituração de créditos pelas empresas tem sido sucessivamente frustrado pelo artigo 33, I, da Lei Complementar 87/1996, atualmente postergado para 1/1/2033. São bens e serviços voltados à atividade empresarial, mas com creditamento vedado por supostamente não integrarem o produto ou serviço final, caracterizando verdadeira limitação à não cumulatividade do ICMS.
A expressão “uso e consumo pessoal”, por fim, não guarda relação com as restrições à tomada de créditos de PIS/Cofins, oriundas da lista taxativa de bens e serviços passíveis de creditamento, criada pelo legislador ordinário e que, espera-se, não existirá quanto ao IBS e à CBS. Tampouco se aproxima do conceito de “insumo”, ao qual o fisco aplicava a sistemática de créditos físicos e que, após um longo contencioso, foi definido pelo Carf e o STJ como os bens e serviços essenciais ou relevantes para a produção de bens ou prestação de serviços.
Limitações como essas geram o acúmulo de resíduos tributários nas cadeias de produção e distribuição, acarretando distorções alocativas e nos preços praticados<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. É justamente a interferência da tributação na organização das atividades econômicas que se espera eliminar com o IBS e a CBS.
São ainda incompatíveis com o regime de créditos financeiros do IBS e da CBS, de modo que não deve haver vedação ao creditamento quanto aos materiais de uso ou consumo voltados às atividades da empresa, ainda que administrativas, mas apenas às operações realizadas em benefício pessoal de sócios, diretores ou empregados (pois, nesses casos, considera-se que existe um fornecimento presumido para a pessoa que se beneficia do gasto<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>).
O governo do Reino Unido, por exemplo, ao orientar os contribuintes sobre a apuração do IVA, cita os seguintes exemplos de bens e serviços destinados a “uso ou consumo pessoal”: (i) itens do estoque que seriam vendidos aos clientes, mas acabam sendo consumidos pelos sócios (como um joalheiro que retira um relógio do estoque da joalheria para seu uso); (ii) maquinário e ferramentas emprestados aos empregados para uso em atividades pessoais (como para o uso desses bens na reforma de  imóvel pessoal); e (iii) combustível e manutenção de veículos, na proporção de sua utilização para fins pessoais, alheios às atividades da empresa<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
A partir de tais exemplos, verifica-se que a vedação ao creditamento do IBS e da CBS por “uso ou consumo pessoal” é excepcionalíssima, muito diferente das restrições existentes nas legislações de ICMS e PIS/Cofins, como se verifica da justificação do atual texto da PEC 45: “(...) excetuadas apenas as operações caracterizadas como de uso ou consumo pessoal por lei complementar. Não utilizamos, pois, a expressão “necessárias à atividade econômica”, justamente para que se evitem novas discussões jurídicas acerca do que deve ser considerado necessário ao empreendimento, como se verifica hoje em relação à Contribuição para o PIS e à Cofins”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Cabe, contudo, um alerta: embora seja realmente imprescindível a definição, na legislação infraconstitucional, de quais operações serão entendidas como voltadas a “uso e consumo pessoal”, a expressão “nos termos de lei complementar”, inserida na versão atual do art. 156-A, §1º, VIII, torna a redação ambígua, permitindo a equivocada interpretação de que o legislador complementar terá ampla liberdade para impor restrições à não cumulatividade do IBS e da CBS.
A missão da Lei Complementar, pelo contrário, deverá ser apenas de explicar, sem restringir ou ampliar, o conceito de “uso e consumo pessoal”, mantendo-se fiel às boas práticas internacionais e aos pressupostos definidos pelo constituinte derivado na justificação da PEC. Em outras palavras, deverá elucidar os critérios a serem utilizados para a identificação de operações voltadas ao benefício pessoal de sócios, empregados e diretores, em contraposição aos bens e serviços que, embora consumidos ou utilizados por essas pessoas físicas, são voltados ao desenvolvimento da atividade econômica tributada pelo IBS/CBS, a exemplo de transporte, alimentação e vestuário para o trabalho<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
É o momento, no Senado, de aprimoramento da redação do inciso VIII do §1º do art. 156-A, para que a previsão de não cumulatividade no texto constitucional seja a mais principiológica possível, livre de ambiguidades, e fiquem bem delimitadas as tarefas do legislador complementar, a fim de evitar a tributação cumulativa e o surgimento de litígios, assegurando-se a simplicidade, a neutralidade e a isonomia esperadas do IBS e da CBS.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SANTI, Eurico Marcos Diniz de; MACHADO, Nelson [coordenadores]. Imposto sobre bens e serviços/ Centro de Cidadania Fiscal: estatuto, PEC45, PEC Brasil Solidário, PEC110, notas técnicas e visão 2023. / Bernard Appy. Nelson Machado. – São Paulo: Editora Max Limonad, 2023, p. 67.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SANTI, op. cit., p. 67.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CCIF. IBS: Aplicação do Regime de Crédito Financeiro. Disponível em: <a href="https://goo.gl/jP5CW1">https://goo.gl/jP5CW1</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> EBRILL, Liam et al. The Modern VAT, International Monetary Fund, Washington, D.C., 2001. Disponível em: <a href="https://www.imf.org/external/pubs/nft/2001/VAT/">https://www.imf.org/external/pubs/nft/2001/VAT/</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> THURONYI, Victor T. Tax Law Design and Drafting, Vol. 1, International Monetary Fund, Washington, D.C., 1996. Disponível em: <a href="https://www.imf.org/en/Publications/Books/Issues/2016/12/30/Tax-Law-Design-and-Drafting-Volume-1-1550">https://www.imf.org/en/Publications/Books/Issues/2016/12/30/Tax-Law-Design-and-Drafting-Volume-1-1550</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Private use and self-supply of goods and services for VAT, disponível em <a href="https://www.gov.uk/guidance/vat-private-use-and-self-supply-of-goods-and-services">https://www.gov.uk/guidance/vat-private-use-and-self-supply-of-goods-and-services</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Texto do PRLP 2, de 5/7/2023.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> CCIF. Texto-base da Lei Complementar do IBS. Disponível em: <a href="https://ccif.com.br/wp-content/uploads/2020/09/CCiF_NT_LC-IBS.pdf">https://ccif.com.br/wp-content/uploads/2020/09/CCiF_NT_LC-IBS.pdf</a>.

Dinheiro, Real Moeda brasileira

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JOTA

No modelo de IVA, restringir o creditamento é 'a exceção da exceção'

Não cumulatividade plena do IBS e da CBS e o conceito de &#8216;uso e consumo pessoal&#8217;

Não cumulatividade plena do IBS e da CBS e o conceito de 'uso e consumo pessoal'

Senado deve aprimorar redação da reforma tributária para que a previsão de não cumulatividade seja a mais principiológica possível