Opinião e Análise

Breno Vasconcelos

Maria Raphaela Matthiesen

A governança no setor público passou a ser disciplinada na legislação brasileira pelo Decreto nº 9.203/17, que conceituou o termo amplamente usado em debates sobre a formulação de políticas públicas como o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade (art. 2º, inciso I).
Com base no decreto, e se valendo também de estudos relatados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>), pelo Tribunal de Contas da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">TCU</a>) e pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/banco-mundial">Banco Mundial</a> sobre o tema, o Guia da Política de Governança Pública<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> definiu o termo governança como tudo o que uma instituição pública faz para assegurar que sua ação esteja direcionada para objetivos alinhados aos interesses da sociedade.
Como já lembramos em outra oportunidade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, há uma máxima na economia segundo a qual pessoas reagem a incentivos, de modo que “os formuladores de políticas públicas nunca deveriam esquecer os incentivos, visto que muitas políticas mudam os custos ou benefícios com que as pessoas se deparam e, portanto, alteram comportamentos”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, como alerta Gregory Mankiw.
Nessa medida, o desenho de incentivos adequados para as finalidades que se almeja deve integrar os mecanismos de governança criados para alcançar o interesse público, que, sob a perspectiva da Administração tributária, é revelado pela arrecadação tempestiva do montante efetivamente devido pelos contribuintes, e com o máximo de eficiência pela Receita Federal (RFB).
Entre os temas atualmente em debate sobre governança e criação de incentivos, destaca-se a regulamentação do bônus de eficiência aos auditores da RFB<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, item constante da pauta de mobilização dos <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/auditores-fiscais">auditores fiscais</a>.
O bônus de eficiência foi criado pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv765.htm">MP 765/16</a>, que vinculava seu cálculo ao total arrecadado por fontes integrantes do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf) (artigo 5º, §4º). Entre os recursos, constava a arrecadação de multas tributárias e aduaneiras incidentes, inclusive por descumprimento de obrigações acessórias (inciso I).
Durante a vigência da Medida Provisória, a Receita Federal editou a Portaria nº 31/17 para regulamentar a bonificação. Dos nove critérios estabelecidos pela portaria para o cálculo do bônus, apenas dois eram voltados à redução de litígios, um dos problemas mais graves do ambiente tributário no Brasil.
Após duras críticas ao modelo de bonificação desenhado pela MP<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, em julho de 2017 o programa foi alçado ao status legal pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13464.htm">Lei 13.464/17</a>, que, contudo, afastou a vinculação criada pela MP entre bônus e penalidades. No contexto da lei de conversão, o bônus passou a ser atrelado a indicadores de desempenho e metas estabelecidos nos objetivos ou no planejamento estratégico da Secretaria da Receita Federal do Brasil (art. 6º, §1º).
Não se ignora que as funções exercidas por auditores fiscais são de alta relevância para o desenvolvimento e manutenção do país, constituindo atividade essencial ao exercício das obrigações assumidas pelo Estado. Nessa medida, e considerando, ainda, a alta complexidade do sistema tributário brasileiro, é clara a necessidade de atribuir remuneração adequada aos servidores da Receita.
A variação dessa remuneração na forma de bônus, contudo, deve estar relacionada a práticas que evidenciem uma prestação de serviço público de excepcional qualidade, incentivando o servidor a realizar suas atividades com grau de qualidade acima do esperado.
Como descrito na Hipótese 9 do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, do CNJ/Insper, estudos substanciais mostram que os contribuintes tendem a cumprir espontaneamente suas obrigações quando percebem a qualidade na prestação do serviço público<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Tais estudos indicam a importância de que a lógica orientadora da relação entre fisco e contribuintes seja invertida e, seguindo os ensinamentos colocados por Alm e Martinez-Vazquez já desde 2007<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, abandone o paradigma da punição e adira ao paradigma dos serviços.
Também nessa linha são os resultados descritos em relatórios da OCDE sobre a experiência de programas de conformidade e cooperação instituídos em diversos países ao longo das últimas duas décadas<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Nessa linha, como conclui o Diagnóstico, quanto mais o fisco presta assistência, aja com transparência, seja responsivo às necessidades dos contribuintes, esteja aberto a uma relação mais cooperativa e menos coercitiva, mais se conseguirá desenvolver a conformidade tributária e reduzir a judicialização<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Em linha com as boas práticas de governança, é de extrema importância que a regulamentação do bônus de eficiência seja submetida a consulta pública, obedecendo os procedimentos previstos nos Decretos nº 9.191/17 e 10.411/2020, de modo a permitir o debate democrático sobre os critérios de máxima eficiência, transparência e visão externa sobre o pagamento do incentivo financeiro.
Essa regulamentação definirá, na prática, quais comportamentos dos agentes públicos são desejáveis ou não, incentivando um novo padrão de relação que moldará a Receita Federal do futuro. Nada mais importante, assim, que a sociedade participe desse processo.
Sem prejuízo da abertura de consulta pública, algumas ideias já podem ser lançadas para conduzir a disciplina do programa de bonificação à melhoria do serviço público.
A excepcional qualidade no atendimento e na orientação aos contribuintes, a apresentação de sugestões que possam conferir mais eficiência ao trabalho de fiscalização, a realização de medidas de redução do contencioso tributário, entre outras, devem pautar os indicadores de desempenho para a mensuração e o pagamento do bônus, tudo em linha com as balizas traçadas no voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes ao julgar a constitucionalidade do bônus na ADI 6562<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Na experiência internacional, o pagamento de bônus de produtividade foi identificado em alguns países, como Estados Unidos e Itália, de forma expressamente vinculada à qualidade e à inovação no desempenho da função.
Nos Estados Unidos, o prêmio Exceptional Professional Services Award é concedido ao funcionário que apresente desempenho de alto nível, inovador e eficiente, proporcionando uma prestação excepcional do serviço público. As unidades locais do Internal Revenue Service (IRS) podem conceder prêmios de acordo com critérios estabelecidos internamente. O prêmio Employee Suggestion Awards, por sua vez, é concedido aos funcionários que tenham criado ou implementado sugestões construtivas.
Um dos programas de premiação norte-americano é dividido nas seguintes categorias: excelência, qualidade do produto do trabalho, habilidades e treinamento<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Já na Itália, alguns dos critérios adotados no Sistema di Misurazione e Valutazione della Performance, fixados pelo Decreto legislativo 150/2009, são: atendimento às necessidades coletivas, grau de satisfação dos tomadores dos serviços públicos, melhoria na qualidade dos serviços prestados, eficiência no emprego de recursos públicos<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Essas experiências, somadas às especificidades da realidade brasileira que podem ser pontuadas no âmbito da consulta pública, são importantes insumos para a construção dialógica e transparente dos indicadores de desempenho que serão utilizados na mensuração do bônus. Esses são os primeiros passos para a formulação de um programa de bonificação alinhado aos bons mecanismos de governança, atuando como incentivo à melhoria da prestação do serviço público e ao aumento da eficiência na atividade da Administração tributária.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>Disponível em: <a href="https://www.gov.br/casacivil/pt-br/centrais-de-conteudo/downloads/guia-da-politica-de-governanca-publica">https://www.gov.br/casacivil/pt-br/centrais-de-conteudo/downloads/guia-da-politica-de-governanca-publica</a>, acessado em 06/06/2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Essa máxima da economia também foi tratada no artigo A Fazenda Pública pode litigar sem riscos?, disponível em <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-fazenda-publica-pode-litigar-sem-riscos-12012021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-fazenda-publica-pode-litigar-sem-riscos-12012021</a>, acessado em 08/06/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> N. Gregory Mankiw, Introdução à Economia, Ed. Elsevier, 2ª ed., 2001, pág. 7.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Muitas das ideias expostas neste artigo são decorrentes de debates e pesquisas realizadas em conjunto com os demais pesquisadores integrantes da linha de pesquisa “Governança Tributária” do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, e do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, a quem estendemos os créditos do texto e agradecemos nominalmente: Vanessa Rahal Canado, Carla Novo, Daniel Santiago, Danilo Carlotti, Frederico Bastos, João Victor Safieh, Larissa Longo, Luciana Yeung Leonardo Alvim.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  A exemplo das críticas consolidadas no artigo OAB estuda ação contra bônus de auditores fiscais, disponível em: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/oab-estuda-acao-contra-bonus-de-auditores-fiscais-08012017">https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/oab-estuda-acao-contra-bonus-de-auditores-fiscais-08012017</a>, acessado em 08/06/2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em: <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf</a>, acessado em 07/06/2022, pág. 42.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> DAUDE, Christian; MELGUIZO, Ángel. Taxation and More Representation: On Fiscal Policy, Social Mobility and Democracy in Latin America, 2010. OECD Development Centre Working Papers, n. 294, 2010. Disponível em: <a href="https://doi.org/10.1787/5km5zrrs9bbt-en">https://doi.org/10.1787/5km5zrrs9bbt-en</a>, acessado em 06/06/2022.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ALM, James; MARTINEZ-VAZQUEZ, Jorge. Tax Morale and Tax Evasion in Latin America. International Studies Program Working Paper, 07-32, 2007. Disponível em: https:// icepp.gsu.edu/files/2015/03/ispwp0732.pdf., acessado em 06/06/2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> As experiências de oito países foram analisadas pela OCDE no relatório Experiences and practices of eight OECD countries, disponível em: https://www.oecd.org/tax/administration/43241144.pdf, acessado em 06/06/2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Conclusão disponível no Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, disponível em: <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf</a>, pág. 31 acessado em 06/06/2022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> No julgamento da ADI nº 6562, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira e da Auditoria-fiscal do Trabalho, tendo o Ministro Gilmar Mendes, Relator da ADI, destacado a necessidade de que seja dada Uma diligente regulamentação do instituto, a ressaltar seu intento primordial de incremento de eficiência nas atividades de auditoria da União.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a>Informações disponíveis no campo de Awards Programs do IRS, divulgado em: <a href="https://www.irs.gov/irm/part30/irm_30-004-002">https://www.irs.gov/irm/part30/irm_30-004-002</a>, acessado em 03/12/2019.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a>Informações disponíveis em: Sistema di Misurazione e valutazione della performance: <a href="http://www.dag.mef.gov.it/noi_siamo/sistema_valutazione/">http://www.dag.mef.gov.it/noi_siamo/sistema_valutazione/</a>, acessado em 03/12/2019.

política fiscal

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Ideias para conduzir a disciplina do programa de bonificação à melhoria do serviço público

Bônus de eficiência fiscal e governança pública

Bônus de eficiência fiscal deve estar relacionado a práticas que evidenciem uma prestação de serviço público de excepcional qualidade