Opinião e Análise

Daniel Zugman

Frederico Bastos

Thayna Parada

A discussão sobre a possibilidade de compensação de precatórios com débitos tributários não é de hoje. Já houve controvérsias, por exemplo, sobre a legalidade de compensação de precatório adquirido de terceiro, a legitimidade da Administração Tributária proceder unilateralmente à compensação, a necessidade de lei regulamentando disposições constitucionais para autorizar a compensação, entre várias outras.   
Mais recentemente, em dezembro de 2021, foram promulgadas as Emendas Constitucionais nº 113 e 114 que, citando o impacto de teses tributárias como a “tese do século”, promoveram alterações relevantes no regime de pagamento dos precatórios, estabelecendo, dentre outras regras, um teto de gastos com precatórios até o ano de 2026 sob o fundamento de se evitar um colapso financeiro[1], bem como a necessidade de custeio do programa Auxílio Brasil[2]. 
Assim, precatórios de grande monta passaram a figurar na última posição na fila de pagamentos estabelecida pelo § 8º do artigo 107-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[3]. 
Por outro lado, o art. 30 da Lei 12.431/11, talvez a principal disposição sobre a compensação de precatórios com créditos tributários até pouco tempo atrás, autoriza sua compensação com débitos perante a Fazenda Pública Federal (incluídos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa da União, incluídos os débitos parcelados). No entanto, todo o procedimento deve ocorrer no curso do processo judicial no qual houve o reconhecimento do crédito e antes da requisição do precatório ao Tribunal. Tal dispositivo, como se vê, não trata exatamente de compensação com precatórios, tendo em vista que ocorre antes da emissão do título, de modo que um contribuinte que possuir um precatório já emitido (próprio ou de terceiros) não poderá requerer posteriormente e por conveniência a compensação tributária. 
Portanto, em que pese represente um título que garante créditos certos reconhecidos em decisões judiciais, em regra o precatório não é dotado de liquidez imediata. 
Ainda, existem casos em que os precatórios são oferecidos como garantia em processos judiciais, ou são de titularidade de falecidos, fazendo com que sua liquidez seja condicionada tanto à ordem de preferência, quanto ao trânsito em julgado favorável da discussão judicial ou à partilha de bens entre os herdeiros. 
Nesse contexto, os precatórios são considerados ilíquidos até o momento de seu efetivo resgate e, em virtude desse cenário, surgiu um mercado de compra e venda desses títulos, sendo comum que grandes investidores assumam o ônus de sua custódia, oferecendo liquidez imediata ao cedente mediante um deságio sobre o valor de face. 
Esse mercado vem recebendo mais atenção com o advento da Lei 14.375/22, que promoveu alterações à regulamentação da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/mais-de-1-milhao-de-contribuintes-ja-optaram-pela-transacao-tributaria-05102022">transação tributária</a> em âmbito federal, autorizando que o contribuinte devedor da União utilize precatórios federais próprios ou de terceiros para amortização de dívida tributária principal, multa e juros[4]. Vale ressaltar que a compensação só é autorizada com débitos já inscritos em dívida ou objeto de contencioso administrativo fiscal, portanto débitos inadimplidos. 
Assim, precatórios que antes dependiam de seu resgate ou cessão com deságio a terceiros para se distanciarem do caráter ilíquido, podem ser revestidos de liquidez imediata quando utilizados para amortização do crédito em transação tributária, nos termos do art. 11, inciso V da Lei 13.988/20.  
A compensação de débitos e créditos entre mesmo devedor e credor, além de economicamente racional, é consentânea com os comandos da Constituição[5], do Código Tributário Nacional[6] e do Código Civil[7], e, nesse sentido, a Lei 14.375/22 pode ser elogiada, ainda mais considerando o longo e tortuoso debate sobre a compensação de precatórios, que há anos assola o Judiciário em todas as instâncias e esferas federativas. 
A principal justificativa para as concessões mútuas possibilitadas pela legislação da transação é a de que isso viabilizará a arrecadação de créditos de difícil recuperação. Desse modo, pode ser mais eficiente tanto para o fisco quanto para o contribuinte transacionar a quitação da obrigação em condições facilitadas. Para o fisco, ao menos se recupera parte dos valores que dificilmente seriam arrecadados. Para o contribuinte, encerra-se uma pendência que de outra maneira não seria viável. 
Nesse sentido, no caso dos precatórios, a conta pode sair mais barata para a União se, em vez de ter que efetivamente despender recursos para o pagamento do precatório, ainda que isso fosse ocorrer apenas futuramente, aceitá-lo como parte do pagamento de um crédito tributário que dificilmente seria satisfeito[8].  
De outro lado, merece reflexão a viabilidade de extensão dessa modalidade de extinção da obrigação tributária para contribuintes regulares, que não estão em mora, em relação a débitos vincendos, funcionando como verdadeira sanção premial para aqueles com conduta exemplar[9]. Nesse caso, evidentemente, seria necessário analisar impactos sobre o erário e o “teto de gastos” com precatórios instituído em 2021. 
Assim, a alternativa de utilização dos precatórios recém-inaugurada, condicionada à avaliação do grau de recuperabilidade do crédito, pode ser vista como salutar. Contudo, faz sentido ponderar também se a instituição de sanções premiais em nosso direito tributário não deveria ser encarada com maior profundidade, justamente para estimular a melhor conduta e caminhar em direção a uma mudança de paradigma, focado em evitar a formação de passivos ou litígios por meio da utilização de soluções justas e economicamente viáveis.
<hr />
[1] Vide proposta de Emenda Constitucional: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2293449">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2293449</a>
[2] https://www.camara.leg.br/noticias/840105-CONGRESSO-PROMULGA-PEC-DOS-PRECATORIOS,-QUE-ABRE-ESPACO-PARA-O-GOVERNO-AMPLIAR-O-AUXILIO-BRASIL
[3] “Art. 107-A. Até o fim de 2026, fica estabelecido, para cada exercício financeiro, limite para alocação na proposta orçamentária das despesas com pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal, equivalente ao valor da despesa paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos, corrigido na forma do § 1º do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, devendo o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal, a ser calculado da seguinte forma 
<ul>
<li>
 8º Os pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal serão realizados na seguinte ordem:
</li>
<li>
V - demais precatórios."
</li>
</ul>
[4] Lei 13.988/20: Art. 11. A transação poderá contemplar os seguintes benefícios: (...)
V - o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros
[5] “Art. 100 (...) 11. É facultada ao credor, conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com auto aplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado para: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 113, de 2021)
I - quitação de débitos parcelados ou débitos inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor, inclusive em transação resolutiva de litígio, e, subsidiariamente, débitos com a administração autárquica e fundacional do mesmo ente;        (Incluído pela Emenda Constitucional nº 113, de 2021)”.
[6] “Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.       (Vide Decreto nº 7.212, de 2010)
Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de 1% (um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.”
[7] Código Civil: “Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.”
[8] Evidentemente, a mensuração da capacidade de pagamento do contribuinte e recuperabilidade do crédito tributário cabe à PGFN, o que deve ser continuamente monitorado e aprimorado.
[9] Vide: REALE, Miguel, Lições preliminares de direito. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 1981, p.75: "assim, ao lado das sanções penais, temos sanções premiais que oferecem benefício ao destinatário, como, por exemplo, um desconto ao contribuinte que paga o tributo antes da data do vencimento"

ballots-g1bb238d8a_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Alternativa pode ser salutar, mas vale ponderar se sanções premiais não deveriam ser encaradas com maior profundidade

A utilização de precatórios em transações tributárias

Alternativa com precatórios pode ser salutar, mas vale ponderar se sanções premiais não deveriam ser encaradas com maior profundidade