Opinião e Análise

Jéssica Costa

Julia Braga

Sociedades empresárias independentes podem ser interligadas de diversas formas, sem a necessidade de que envolvam a formação de vínculo contratual, formação de joint venture ou aquisição de participação societária. Essas interligações nem mesmo precisam envolver membros da Diretoria ou Conselho de Administração de empresas (interlocking directorates)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, podendo ser constatadas, inclusive, na verificação de relações societárias (sócios em comum) ou de parentesco (sócios com relações de família).
Tais constatações geram diferentes tipos de preocupação concorrencial, que podem ser maiores a depender do nível de ingerência e influência de indivíduos em empresas de diferentes grupos, bem como dos riscos referentes à troca de informações concorrencialmente sensíveis. Pontos de atenção sobre essas diferentes formas de conexão entre sociedades (i.e., sócios em comum, relações de parentesco e interlocking directorates), são analisados, pelo Cade, tanto no âmbito de controle de condutas quanto no de estruturas.
Na perspectiva de controle de condutas, relações de parentesco ou de sócios são reconhecidas como facilitadoras de práticas de cartel, conforme consta em estudo publicado pela OCDE e no próprio Guia de Combate a Cartéis em Licitações publicado pelo Cade em 2021<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Nessa esteira, o Cade já instaurou investigações relacionadas a situações nas quais as representadas teriam se valido dessas relações para viabilizar o conluio entre empresas que se apresentavam, formalmente, como rivais, dando a aparência de efetiva concorrência.
Nestes casos, a jurisprudência do Cade é no sentido de que a existência de sócios em comum e de relações familiares entre empresas pode ser considerada um elemento facilitador de condutas colusivas, incluindo a formação de cartéis, caso estejam presentes indícios adicionais e/ou outras características de mercado que propiciem infrações.
No Processo Administrativo nº 08700.007278/2015-17, por exemplo, ao avaliar o caso em concreto, a SG/Cade identificou relações de parentesco entre três empresas investigadas e concluiu que “a proximidade existente entre tais pessoas físicas e jurídicas leva ao raciocínio de que a troca de informações comercialmente sensíveis, em tempo anterior aos pregões, é significativamente facilitada”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Já em relação à verificação da coincidência de sócios como indício de conluio, no mesmo processo, a SG/Cade entendeu que o fato de haver sócio comum, somado a outros elementos de prova, sugere que as empresas investigadas atuavam de forma coordenada.
Já no Tribunal, o conselheiro relator Sérgio Ravagnani, aderindo à Nota Técnica final da SG/Cade e aos Pareceres da ProCade e do MPF, entendeu que o núcleo familiar e de sócios administradores em comum entre algumas das empresas representadas teria sido utilizado de maneira proposital em certames objeto da investigação para garantir o sucesso da conduta colusiva. Isso porque havia previsão editalícia que vedava a participação de empresas com sócios em comum, de modo que as representadas, propositalmente, teriam se valido de tal previsão para serem desclassificadas e garantir que outra empresa do conluio vencesse os pregões.
No recente julgamento do caso, que ocorreu na sessão ordinária na última quarta-feira (3), os conselheiros Luiz Hoffmann e Victor Fernandes proferiram votos vogais aderindo ao posicionamento do relator de que a verificação dessas relações de afinidade, núcleos familiares e sócios administradores ou representantes em comum facilitaram e foram intencionalmente utilizados para operacionalizar a coordenação entre as empresas.
Na perspectiva de controle de estruturas, uma grande preocupação endereçada na análise concorrencial cinge relações societárias referentes ao fenômeno conhecido como interlocking directorates na sua modalidade direta, sem abranger, por exemplo, situações nas quais pessoas com parentesco direto ocupam cargos executivos e/ou gerenciais em duas sociedades<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Esse ponto é relevante para a análise do Cade, sendo inclusive item de resposta obrigatória do formulário de notificação de atos de concentração (Item II.11). O racional por trás de tal verificação cinge o fato de que, a depender do caso, ligações desse tipo podem facilitar a coordenação entre empresas, bem como reduzir os incentivos para efetiva concorrência entre players de um determinado mercado que sejam horizontalmente ou verticalmente integrados.
Da análise da jurisprudência em controle de estruturas, nota-se que o fato de um mesmo indivíduo ocupar cargos de direção, administração ou gerência em duas empresas com atividades no mesmo setor poucas vezes enseja, por si só, avaliação mais aprofundada pela autoridade. Apesar disso, precedentes do Cade já endereçaram preocupações concorrenciais decorrentes de situações de interlocking. Por meio da negociação de remédios comportamentais, por exemplo, o Cade já firmou Acordos em Controle de Concentrações visando a preservar a independência entre as instâncias decisórias de empresas horizontal e/ou verticalmente integradas em que se verificava riscos concorrenciais, como troca de informações sensíveis e práticas discriminatórias.
A fim de garantir a independência de atuação de empresas, no Ato de Concentração nº 08700.001390/2017-14 referente à aquisição do controle da Time Warner pela AT&amp;T, preocupações foram mitigadas por meio da celebração de acordo segundo o qual as pessoas jurídicas objeto da operação permaneceriam separadas e com estruturas de administração e governança próprias. Tal medida visava a, justamente, evitar troca de informações concorrencialmente sensíveis e a discriminação de agentes que não fizessem parte do grupo econômico das requerentes.
Em outros casos, o remédio adotado pelo Cade foi no sentido de limitar que certas empresas possam indicar membros de Conselho ou Diretoria, justamente para mitigar preocupações decorrentes do entrelaçamento de membros executivos/gerenciais. No Ato de Concentração nº 08700.009363/2015-10, referente à formação de uma joint venture entre Itaú e Mastercard com o objetivo de criar uma bandeira no mercado de arranjos de pagamento, o remédio negociado pelo Cade visava a limitar a influência do banco emissor no dia a dia das atividades econômicas verticalmente integradas. Para isso, o compromisso consistiu na modificação da composição do Conselho de Administração da joint venture, de modo que o Itaú seria obrigado a indicar dois conselheiros independentes – dentre os três membros a que inicialmente tinha direito – a partir do momento em que a nova bandeira alcançasse share de 15% no mercado de cartões.
Muito recentemente, o Tribunal do Cade analisou operação na qual um ponto de destaque cingia o fato de que a solução para preocupações decorrentes de interlocking se deu não por meio da negociação de remédio, mas pelo entendimento de que a própria regulação setorial já impunha salvaguardas relacionadas a participações societárias cruzadas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A discussão se deu no âmbito do julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004540/2021-10, proposto pela Compass e Petrobras no mercado distribuição de gás natural, no qual a própria ANP sinalizou que “a adoção de remédios comportamentais seria, na maioria das opções disponíveis, redundante face à competência regulatória da ANP”.
O que se verifica, portanto, a partir da análise de precedentes do Cade, é que o entrelaçamento de relações societárias e familiares é tópico de atenção para a Autoridade de Defesa da Concorrência, seja na perspectiva de controle repressivo, seja na perspectiva de controle preventivo. Como de praxe, certo é que as conclusões são casuísticas e dependem de uma gama de elementos, como das demais circunstâncias e elementos de prova nos autos, em sede de condutas, e das peculiaridades do setor e dos requerentes, em sede de estruturas.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Interlocking directorates é fenômeno que se refere à situação na qual uma determinada pessoa ou pessoas com parentesco direto ocupam cargos (Conselho de Administração, Diretoria, por exemplo) em mais de uma empresa, com atividades horizontalmente ou verticalmente relacionadas.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vide Policy Roundtables – Collusion and Corruption in Public Procurement, publicado pela OCDE em 2010 e Guia de Combate a Cartéis em Licitações: Guia Prático para Agentes de Contratação, publicado pelo Cade em setembro de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Há outros casos em que a existência de relações de parentesco também foi considerada como forte indício de cartel. No Processo Administrativo nº 08700.000269/2018-48, por exemplo, a SG/Cade considerou que “foi possível observar alguns indícios de atuação concertada por parte das empresas que compõem o grupo, dentre as quais valem se destacar: [...] (iv) relação de parentesco entre sócios de diferentes empresas”.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Interlocking Directorate será indireto quando pessoas com parentesco direto ocuparem cargos executivos e/ou gerenciais em duas sociedades. (MARTINEZ, Ana Paula. ARAUJO, Mariana Tavares de. Aquisição de Participação Minoritária em Concorrentes e Interlocking Directorates: Aspectos Concorrenciais. 2012).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Artigo 30, da Lei nº 14.134/2021: É vedado aos responsáveis pela escolha de membros do conselho de administração ou da diretoria ou de representante legal de empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural ter acesso a informações concorrencialmente sensíveis ou exercer o poder para designar ou o direito a voto para eleger membros da diretoria comercial, de suprimento ou representante legal de distribuidora de gás canalizado.

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JOTA

Análise sob a perspectiva do controle de estruturas e de conduta

Relações societárias e familiares comuns entre empresas

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