Opinião e Análise

Nathalie Fragoso

Marcela Mattiuzzo

Há uma importante relação entre a regulação das finanças eleitorais em sociedades profundamente desiguais, como a brasileira, e a necessidade de assegurar uma igualdade política mínima e operacionalizar o controle externo de atores políticos, que, no limite, legislam sobre um tema que toca fundamentalmente seus próprios interesses.
Dispositivos como a limitação do financiamento por pessoas jurídicas, nos termos da ADI 4650; a proibição de doações por associações profissionais e sindicatos (artigo 31, IV da Lei 9.096/95 e artigo 24, VI da Lei 9.504/97); a proibição de doador anônimo (artigo 23, §2º da Lei 9.504/97); o sistema misto de financiamento público, naquilo que se refere à distribuição em partes iguais (artigo 41-A da Lei 9.096/95); o acesso gratuito à mídia (artigo 47, Lei 9.504/97); a promoção da participação feminina (alterações trazidas pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm">Lei 13.165/2015</a>); a proibição da compra de voto; a obrigação de divulgação de gastos pelo partido, inclusive aqueles relacionados a campanhas eleitorais; a publicidade dos informes financeiros de partidos e candidatos; e a divulgação da identidade dos doadores podem ser compreendidos como regras que buscam promover esses interesses republicanos.
A novidade é a composição – perfeitamente possível e potencialmente incremental – desses interesses com a entrada em vigor da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)</a>. A questão ganha relevância pela <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleição</a> que se aproxima em outubro deste ano e pela <a href="https://www.tse.jus.br/servicos-judiciais/audiencias-publicas/audiencia-publica-sobre-os-possiveis-impactos-da-implementacao-da-lgpd-no-processo-eleitoral-de-registro-de-candidatura">audiência pública proposta pelo Tribunal Superior Eleitoral</a> (TSE) sobre o impacto da LGPD no processo eleitoral de registro de candidatura, que foca, mas não se restringe, a plataforma DivulgaCandContas, dedicada à divulgação de candidaturas e contas eleitorais. Para orientar as contribuições, o TSE propôs questões preambulares relacionadas à regularidade da publicização de dados pessoais de candidatos, entre eles o teor das certidões criminais, a lista de bens declarados e outros.
A proteção de dados pessoais é hoje um direito fundamental, com lastro constitucional expresso (EC 115/2022, CF artigo 5º, LXXIX), e a LGPD é fundamental para evitar e minimizar os danos, inclusive coletivos, decorrentes do uso inadequado de informações pessoais. A transparência, por sua vez, é uma condição do controle e fiscalização do exercício do poder e do exercício desigual de influência. Afinal, atores econômicos, cuja articulação política também responde à criação de políticas públicas e se sustenta com base em interesses comuns, têm um grande impacto sobre a forma como a autoridade política é exercida pelos governos. A transparência é ainda instrumental para um debate democrático informado e plural, num contexto em que é crescente a preocupação com a desinformação.
Um ponto de partida importante para enfrentar essa questão, reforçado pela recente manifestação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em resposta ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), na <a href="https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-manifesta-se-sobre-divulgacao-de-microdados-do-enem-e-censo-escolar-pelo-inep">Nota Técnica nº 46/2022/CGF/ANPD</a>, é que não existe contradição necessária entre a divulgação de dados pessoais e a sua proteção nos termos da LGPD.
A própria LGPD, na realidade, ressalta que há dados que são pessoais e cuja divulgação é necessária, para alcançar um interesse público relevante (LGPD, artigo 7º, §3º). É evidente que, na medida em que estamos lidando com dados pessoais, caberá maior atenção para antecipar riscos e a adoção das medidas viáveis que minimizem qualquer dano ao titular das informações. De toda forma, isso não significa e nem pode significar que a divulgação dos dados fica vedada – o que, se no caso Inep já era patente, no caso eleitoral é ainda mais evidente.
A razão de ser da divulgação de dados eleitorais é, em boa medida, a garantia de controle democrático. É importante conhecermos os candidatos e sabermos quem são os principais financiadores de uma campanha porque isso nos auxilia, enquanto sociedade, a entender quem foi financeiramente relevante para colocar aquela pessoa em uma posição de poder. Ao mesmo tempo, dar transparência sobre os doadores implica em também divulgar, ao menos em tese, todas as pessoas físicas que contribuíram com aquela campanha, mesmo as que contribuíram com valores modestos. Isso implica em uma exposição de dados (inclusive sensíveis) daqueles indivíduos, e, precisamente por conta da modéstia dos valores, encontra uma justificativa de interesse público muito menos robusta.
Em relação aos candidatos, que estão e devem estar sob escrutínio público, há um claro interesse público relacionado à divulgação de bens declarados e outras informações que constam dos conjuntos de dados disponibilizados. Há ainda certa proteção decorrente do fato de que, de acordo com a Instrução Normativa nº 1863/2018 da Receita Federal, os candidatos e partidos políticos são obrigados a se inscrever no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Não é o caso dos doadores, pessoas físicas, que têm nome e CPF divulgados na plataforma, através de mecanismos de pesquisa facilitados.
Como parece ser o caso, sobretudo diante das razões que fundamentam a coleta e divulgação dessas informações, a identificação de titulares e a disponibilização de dados a seu respeito poderá ser necessária ao atendimento de determinações legais. Por outro lado, isso não exime o controlador de avaliar os riscos e adotar medidas para evitar violações aos direitos.
No caso do CPF de doadores, por exemplo, um dado cadastral cuja difusão é frequentemente associada a operações fraudulentas, é possível cogitar medidas como a limitação do acesso à base integral a pessoas previamente cadastradas ou à assinatura de termos de responsabilidade, mantendo na plataforma o nome do doador, além de técnicas de pseudonimização que mascarem parte do seu CPF, por exemplo.
A LGPD não está em relação de antagonismo com a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a legislação eleitoral – inclusive, essa leitura foi reforçada por recente aprovação, durante a IX Jornada de Direito Civil, de enunciado que explicita essa compatibilidade entre a proteção e dados e o acesso à informação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. São normas de proteção da cidadania. A tarefa colocada para o poder público brasileiro é a adequação das bases de dados e das suas ferramentas de transparência ativa, para a proteção de dados pessoais – isso requer análises, estudos e testes.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O enunciado aprovado diz que “A Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelecem sistemas compatíveis de gestão e proteção de dados. A LGPD não afasta a publicidade e o acesso à informação nos termos da LAI, amparando-se nas bases legais do artigo 7º, II ou III, e artigo 11, II, a ou b, da Lei Geral de Proteção de Dados.”

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JOTA

LGPD não está em relação de antagonismo com a LAI e a legislação eleitoral

Proteção de dados pessoais e transparência no processo eleitoral

LGPD não está em relação de antagonismo com a LAI e a legislação eleitoral