Opinião e Análise

Marcela Mattiuzzo

Nathalie Fragoso

Desde 2016, fake news ou desinformação estão no repertório de expressões populares e no léxico político global. Eleições, disputas políticas, imprensa, degradação de democracias liberais são o contexto comum das expressões. Mas o termo vem aparecendo também no âmbito de discussões sobre relações de consumo para designar o ato de “enganar” o consumidor, transmitir informações sabidamente erradas e, com isso, induzir decisões que não estão pautadas na melhor informação disponível. A desinformação, além de estratégia de comunicação política, de “combate”, seria observável também como estratégia de vendas e de mercado.
No mundo consumerista, o fenômeno foi, de certa maneira, rebatizado. O designer <a href="https://harrybr.medium.com/">Harry Brignull,</a> um cientista cognitivo, cunhou a expressão "dark patterns", “padrões obscuros” em português. A terminologia é recente, e as controvérsias na interface entre direito do consumidor, proteção de dados, design e ciência da computação sobre o sentido e limites do conceito ainda não estão resolvidas. Uma definição útil, desenvolvida por um grupo de pesquisadores em 2019, liderados por <a href="https://arxiv.org/pdf/1907.07032.pdf">Arunesh Mathur</a> estabelece que dark patterns são interfaces utilizadas por negócios online para levar consumidores a tomarem decisões que eles não tomariam se devidamente informados e capazes de escolherem outras alternativas.
Cabe se perguntar se e como é possível diferenciar um dark pattern de uma boa campanha de marketing ou de estratégias de marketing aplicadas aos desenhos das aplicações. O objetivo – legítimo, aliás – do marketing é persuadir o consumidor a tomar uma determinada decisão, que talvez não fosse tomada caso a propaganda não existisse. Por outro lado, é possível também dizer que esse objetivo é alcançado através do realce de aspectos positivos, de diferenciação de marca, expansão do alcance da visibilidade do produto. O papel do marketing não é enganar o consumidor. Ainda que haja certa indeterminação, portanto, ao menos do ponto de vista jurídico, é possível distinguir o marketing legítimo de dark patterns.
São exemplos de uma longa lista de dark patterns conhecidos e documentados <a href="https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DSTI/CP(2020)23/FINAL&amp;docLanguage=En">na literatura</a>: (i) scarcity and urgency cues, i. e. criação de um senso de escassez e urgência através da falsa indicação de que um produto ou oferta vai se esgotar logo, usando relógios, pop-ups etc.; (ii) confirmshaming, i.e o uso de métodos de persuasão nos quais a opção de “sair” é apresentada de maneira detrimental, complexa de entender ou de acessar ao consumidor; (iii) roach motel, i.e. estratégias de manutenção de clientela através da facilitação da aquisição de um bem ou serviço, e da criação de obstáculos para a devolução ou encerramento de um contrato ou assinatura; (iv) left in the dark, i.e. o emprego de interfaces que dificultam o acesso à informação ou controles de proteção de dados, ou violam a transparência sobre como as informações dos usuários são tratadas e quais tipos de controles e direito eles têm sobre elas.
No Brasil, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cdc">Código de Defesa do Consumidor</a> já protege os consumidores contra várias condutas, proibindo, por exemplo, a publicidade enganosa ou abusiva. O artigo 36, ao caracterizar a publicidade admissível e estabelecer que a publicidade deve ser passível de fácil e pronta identificação pelo consumidor, e o artigo 37, ao caracterizar e proibir a publicidade enganosa e abusiva, somados ao artigo 67 do CDC, que tipifica a conduta, em tese amparam o consumidor brasileiro contra alguma dessas práticas. Há dúvidas, no entanto, sobre a suficiência do marco legal vigente para responder ao fenômeno e mesmo sobre a caracterização de propaganda abusiva nos diferentes exemplos de dark patterns, em que não necessariamente estarão implicados prejuízos à saúde ou segurança do consumidor, discriminação, incitação da violência etc.
O European Data Protection Board (EDPB) abordou recentemente essa questão, trazendo <a href="https://edpb.europa.eu/our-work-tools/documents/public-consultations/2022/guidelines-32022-dark-patterns-social-media_en">guidelines</a> específicas para plataformas de rede sociais, indicando como o General Data Protection Regulation (GDPR) poderia oferecer alguma forma de garantia aos usuários. A autoridade enfatizou a relevância dos princípios de transparência, accountability e a importância do privacy by design, i.e. de considerar a privacidade desde a concepção do produto. A Comissão Europeia, porém, destacou em estudo ainda mais recente que talvez existam práticas que são como dark patterns e não são claramente puníveis nem pela legislação consumerista, nem pelas regras de proteção de dados, nem mesmo pelas novas regulações aprovadas na Europa – DSA e DMA.
Nos EUA, essa discussão acontece na Federal Trade Commission. O FTC Act já confere vários poderes à autoridade, que poderiam ser mobilizados e têm sido debatidos especialmente em face da proteção de privacidade. Nesse contexto, tramitam projetos de lei que pretendem endereçar a questão de forma mais clara. O principal deles, em relação a dark patterns, é o Deceptive Experiences to Online Users Reduction (DETOUR) Act, um projeto bipartidário, focado especificamente nesse tema.
Uma última questão deve ser colocada antes de avaliar a suficiência desse repertório de respostas à correção do problema e eventuais danos gerados: o uso de dark patterns tem se generalizado e tornado um padrão competitivo? Se estivermos falando de alguns agentes econômicos específicos empregando as estratégias de manipulação chamadas de dark patterns, há um problema de desvio que pode ser, efetivamente, corrigido com respostas jurídicas pontuais, desenhadas para endereçar rupturas com um padrão de comportamento.
É possível, portanto, que os instrumentos hoje previstos nas legislações consumeristas e de proteção de dados sejam capazes de endereçar a questão. Se estivermos tratando de um novo padrão de concorrência no qual a diferenciação entre produtos não se dá mais por melhor qualidade (ou menores preços), mas por técnicas de manipulação do usuário, de exposição ao vício no uso de ferramentas, de criação de dependência (no sentido clínico), então estamos diante de um problema de natureza distinta. Tratar como desvio novos padrões de condutas tende a gerar injustiça no sancionamento e ineficiência na correção dos problemas. Uma tal situação demandaria um mecanismo ostensivo de correção de mercado, porque estaríamos diante de uma verdadeira falha de mercado (ou de mais de uma). E resolver problemas estruturais de mercado por meio de aplicação de direitos individuais, no mais das vezes, não funciona bem.

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JOTA

Instrumentos previstos nas legislações consumeristas e de proteção de dados são capazes de endereçar a questão

Onde clica para cancelar? Problemas e respostas aos dark patterns

Instrumentos previstos nas legislações consumeristas e de proteção de dados são capazes de endereçar a questão dos dark patterns