Opinião e Análise

Levi Borges de Oliveira Veríssimo

Flávio Marques Prol

Entrou em vigor no dia 3 de junho de 2022 a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Lei/L14365.htm">Lei 14.365/2022</a>, que alterou o Estatuto da Advocacia e os Códigos de Processo Civil (CPC) e Penal (CPP) "para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal".
Entre as alterações está a inclusão do artigo 2º-A ao Estatuto da Advocacia (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm">Lei 8.906, de 4 de julho de 1994</a>), que estabelece expressamente a possibilidade de o advogado “contribuir com o processo legislativo e com a elaboração de normas jurídicas, no âmbito dos Poderes da República”. A alteração é o reconhecimento jurídico de uma situação amplamente observada na prática e representa um passo importante na legitimação e democratização da participação social na elaboração de normas e políticas públicas.
A entrada em vigor da lei promoveu alterações no Estatuto da Advocacia e em outras normas que também são dignas de opinião jurídica própria, como normas relativas a contratos de honorários, sustentações orais e outras prerrogativas. De fato, nem todas as alterações trazidas pela nova lei estão isentas de críticas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, mas destacamos que a presente análise tem por foco especialmente o novo artigo 2º-A do EOAB e suas repercussões.
De volta ao objeto do texto, sabemos que a participação social no processo de formulação normativa é um mandamento constitucional (Constituição Federal, artigo 14, incisos I, II e III) e já foi inclusive fomentada por meio de uma Política Nacional de Participação Social (Decreto nº 8.243/2014). Mesmo em democracias representativas como a nossa, a participação social no processo legislativo fica longe de se esgotar na escolha do parlamentar por meio do voto. Ao longo do mandato parlamentar, conforme as matérias de interesse social são deliberadas, há amplo espaço para contribuição da sociedade, com envio de sugestões de textos legais, participação em audiências públicas, manifestações públicas de apoio ou rejeição, entre outras . Nesse contexto, a alteração promovida pela Lei nº 14.365/2022 vem em boa hora ao reconhecer a possibilidade de a advocacia contribuir de maneira técnica à ampliação do debate democrático.
Os próprios regimentos das casas legislativas federais não são alheios à importância da participação social na formulação das normas e trazem dispositivos para incluir, com algumas limitações, a participação social no processo legislativo. Tanto o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (em seu artigo 255 e seguintes) quanto do Senado Federal (artigo 93), bem como o Regimento Comum do Congresso Nacional (artigo 29), estabelecem a possibilidade de realização de audiências públicas para instrução de matérias legislativas. Indo além, o Senado estabeleceu permanentemente a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, que tem por atribuição opinar sobre sugestões legislativas apresentadas por associações e órgãos de classe, sindicatos e entidades organizadas da sociedade civil (cf. artigo 102-E do Regimento Interno do Senado Federal).
Tais medidas, no entanto, não garantem uma participação social efetiva, por diversos fatores. Além da dificuldade de obtenção de informação a respeito da tramitação das matérias, que muitas vezes ficam restritas a grupos específicos, habituados à rotina das casas legislativas, a exigência de conhecimento técnico sobre as matérias e o processo legislativo também podem afastar o agente diretamente afetado pela norma de sua formulação.
Nesse contexto, recordamos que a participação de profissionais de advocacia no processo de elaboração de normas jurídicas não é novidade: tanto assessorias parlamentares quanto equipes de setores públicos e privados contam com opiniões jurídicas de advogados para realizar análise e aperfeiçoamento de normas das mais variadas naturezas. Idas e vindas de um projeto de lei no Congresso Nacional não acontecem sem o opinamento de um profissional de advocacia, de modo que a alteração feita pela Lei nº 14365/2022 é positiva e dá legitimidade a uma situação que já era observada na prática. Além disso, por serem as normas jurídicas destinadas a setores diferentes da sociedade, é natural que profissionais de outras áreas também contribuam nesse processo.
Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com a alteração promovida pelo novo artigo 2º-A do Estatuto da Advocacia, “a atividade institucional da advocacia no Poder Legislativo ganha mais segurança, e o mesmo acontece com a formulação de normas e políticas públicas realizadas por profissionais da área”. Há, desse modo, um benefício duplo: 1) na segurança jurídica conferida à prestação legítima e transparente da assessoria jurídica por profissionais da advocacia a respeito do processo legislativo; e 2) na eficácia do devido processo legislativo, com a ampliação da participação social com embasamento técnico-jurídico necessário.
O debate democrático não se faz a portas fechadas, dentro das paredes do Congresso Nacional, mas implica necessariamente a participação de variados setores da sociedade na formulação de políticas públicas e elaboração de normas. Nesse sentido, a assistência técnica especializada é fator indissociável da democratização do debate, uma vez que nem todos os agentes possuem oportunidade ou meios de se apropriarem de temas como processo e técnica legislativa para serem ouvidos em tempo e modo necessários.
Além disso, o panorama atual e desregulado, sem parâmetros mínimos para uma participação plural na construção de normas, favorece agentes historicamente estabelecidos, notadamente aqueles dotados de maior poder econômico e social. Esse quadro tende a agravar um processo de concentração de poder e riqueza por meio de instituições que somente são influenciadas por agentes já inseridos no debate. A inclusão passa, portanto, pela regulamentação do tema com inserção de meios de ampliação da participação social. O reconhecimento legislativo desse contexto é, portanto, um tímido avanço.
Vale notar, ainda, que a participação diversificada da sociedade nesse contexto tem fundamento constitucional, particularmente por meio da materialização do conceito de pluralismo político, estabelecido como fundamento da República pelo artigo 1º da Constituição Federal. Assim, a redação dada ao artigo 2º-A do Estatuto da OAB consagra tradição fundamental para uma participação social efetiva na elaboração das leis, na medida em que dá segurança jurídica aos profissionais que atuam na área.
Apesar dos avanços, é necessário reconhecer que a medida não esgota definitivamente diversas questões fundamentais para garantia de acesso equitativo à participação política por grupos marginalizados, historicamente excluídos desses espaços, bem como outras questões relevantes para a garantia de transparência e prestação de contas nesse contexto. De fato, a alteração promovida pelo novo artigo 2º-A do Estatuto da Advocacia não esgota nem mesmo as preocupações formais decorrentes da incipiente participação social no processo legislativo. Não sem razão, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/regulamentacao-do-lobby">regulamentação do lobby</a>, atividade entendida como “a defesa de interesses junto a membros do poder público que tomam decisões" <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e também conhecida como relações governamentais, é tema de longo debate no Poder Legislativo ao longo de anos — e sem consenso.
A luta pela regulamentação do tema é acompanhada também pelo esforço em dissociar a legítima defesa de interesses sociais na tomada de decisões políticas de atividades ilícitas comumente associadas ao lobby — e que muitas vezes ocorrem justamente em razão de práticas que carecem de mecanismos de controle e transparência.
Diversos projetos de lei trataram da regulamentação do lobby ao longo das últimas décadas, sem que houvesse consenso sobre o tema no Congresso Nacional. Nesse contexto, destacam-se o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/353631">PL 1202/2007</a>, proposição em estágio mais avançado de tramitação sobre o tema e pronto para deliberação no plenário da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a>, e o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2311923">PL 4391/2021</a>, de autoria do Poder Executivo, que “dispõe sobre a representação privada de interesses realizada por pessoas naturais ou jurídicas junto a agentes públicos”. O fato de o PL 4391/2021 ter sido elaborado pelo Poder Executivo, além de ser mais abrangente que o PL 1202/2007, levou-o atualmente para o centro do debate sobre regulamentação do lobby no Congresso Nacional.
De modo geral, sem entrar no mérito dos PLs que já estão em tramitação, destacamos questões relevantes que precisam de delimitação estrita por meio de lei, como:
<ol>
<li>divulgação de agendas e transparência quanto aos agentes envolvidos na sugestão de ideias legislativas;</li>
<li>formas de concessão de espaço para garantia de diversidade nos debates e temas procedimentais específicos, como a possibilidade de apresentação de emendas por agentes externos ao Poder Legislativo ou mesmo a regulamentação das relações institucionais junto a agências reguladoras.</li>
</ol>
Como se vê, a Lei 14.365/2022, ao regulamentar a atividade advocatícia em discussões normativas, representa um tímido avanço no desenho de mecanismos de participação social no processo normativo. A medida é bem-vinda, mas ainda há muito que se avançar no tema.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nota-se, inclusive, que a inserção de regras como a possibilidade de prestação de atividades de consultoria e assessoria jurídicas de modo verbal ou escrito sem a formalização de contrato de honorários (artigo 5º, §4º, do EOAB, inseridos pela nova lei) vai na contramão dos esforços de transparência e prestação de contas aqui defendidos.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MANCUSO, Wagner; GOZETTO, Andréa. Lobby e Políticas Públicas no Brasil. Trabalho preparado para apresentação no Colóquio Internacional “Analyser les Politiques Publiques Brésiliennes”, realizado no Institut des Amériques, Paris, França, nos dias 05 e 06 de julho de 2012. P. 1.

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JOTA

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O papel do advogado na elaboração de normas jurídicas

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