Opinião e Análise

Vinicius Marques de Carvalho

Gabriel Dantas Maia

Encerra em breve o processo de consulta pública conduzido pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) para colher contribuições relativas à concessão do Porto de Santos. Ainda que não seja a primeira concessão de autoridade portuária a ser feita pelo governo federal, a operação envolvendo o Porto de Santos é mais do que especial: o complexo portuário é o maior da América Latina, com mais de 50 terminais, localizado em posição geográfica estratégica em relação ao PIB do país e com a maior área de influência dentre os portos nacionais. O ápice do programa de concessão de autoridades portuárias, portanto, orbita ao redor de Santos, que até o momento está planejado para ir a leilão no quarto trimestre deste ano.
Dadas as dimensões do Porto de Santos, não surpreende que preocupações concorrenciais tenham sido objeto de reflexão pelo poder concedente. O tema materializou-se na forma de proibição a que diversos agentes econômicos localizados a montante ou a jusante das atividades da autoridade portuária possam participar plenamente da disputa pela concessão. A justificativa apresentada para tanto foi o risco de que esses agentes, se verticalmente integrados com a autoridade portuária, usem de suas novas prerrogativas para impor práticas anticompetitivas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Nessa linha, há a presunção de efeitos negativos decorrendo de integrações verticais, pelo que a prática deveria ser vetada de pronto.
A postura adotada conflita frontalmente com a perspectiva do antitruste sobre como integrações verticais devem ser compreendidas. Integrações verticais são forma legítima de se estruturar a atividade econômica em um dado setor, aptas a gerar tanto eficiências quanto riscos concorrenciais. É em razão disso que restrições verticais são apreendidas como eventuais ilícitos concorrenciais por efeito, demandando análise in concreto que demonstre os potenciais efeitos negativos da conduta do agente verticalizado, balanceando tais preocupações com as potenciais eficiências suscitadas pela prática.
Se integrações verticais unicamente gerassem repercussões negativas, seriam compreendidas como ilícitos por objeto — tal qual acontece com cartéis, os quais são vetados de plano pela presunção de efeitos negativos. Não é assim que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>) compreende a questão. E o Cade não está sozinho: também as autoridades antitruste norte-americana e europeia já publicaram guias de concentração vertical que apontam o potencial benéfico de integrações verticais.
Dessa forma, apesar das preocupações concorrenciais, o poder concedente não segue o posicionamento recomendado pela ótica antitruste. Medidas estruturantes tão severas não deveriam ser impostas de maneira apriorística, apartadas do contexto fático que determina em última instância potenciais eficiências e riscos. Ainda mais quando a própria regulação portuária permite integrações verticais envolvendo autoridades portuárias<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o poder concedente não deveria presumir erroneamente apenas efeitos nocivos como decorrentes dessas operações.
A bem da verdade, os riscos abstratos que podem ser concebidos de integrações verticais — possibilidade de fechamento de mercado, elevação de custos, aumento de barreiras à entrada e uso de poder de mercado para alavancagem de outro elo da cadeia verticalizada — são coibidos pelo próprio desenho regulatório que conforma a concessão do Porto de Santos. Assim, não só a postura inicial do poder concedente referente a integrações verticais está equivocada — ao atribuir a essas operações unicamente efeitos deletérios — como também a preocupação é desnecessária: as abstrações não se convertem em riscos concretos, porque a conformação regulatória da autoridade portuária mitiga de pronto que esses riscos se convertam em ações.
Nesse sentido, entre as ferramentas regulatórias apresentadas pela concessão do Porto de Santos, cabe destacar a existência de um Código de Conduta — aprovado pelo poder concedente — a procedimentalizar o relacionamento entre autoridade portuária e terceiros interessados em explorar instalações portuárias. Há a obrigatoriedade de divulgação de minutas contratuais padrão, além de estabelecimento de um prazo para que as negociações entre essas partes sejam concluídas.
Isso impede que a autoridade portuária imponha condições negociais radicalmente diversas a diferentes agentes econômicos, bem como possa dilatar as negociações a ponto de impedir a efetiva ocupação do Porto. Sobre a sua utilização, há índice de ocupação mínimo, o qual, se desrespeitado, suscita à Antaq determinar chamada pública para identificar terceiros interessados em explorar áreas ociosas. Ainda, a Antaq pode determinar que a autoridade portuária contrate terceiro interessado, caso a sua recusa em contratá-lo seja imotivada. Tais medidas impedem que autoridade portuária imponha barreiras à entrada de novos agentes econômicos no porto.
Por outro lado, caso a autoridade portuária queira privilegiar a ocupação por apenas um determinado grupo econômico, também há intervenção regulatória. Há previsão de que se um mercado relevante apresentar competição imperfeita decorrente de concentração de mais de 40%, o poder concedente pode determinar que a concessionária oferte novas áreas para a implantação de instalações portuárias, diluindo o respectivo mercado. Assim, também restrições verticais tendentes à exclusividade são mitigadas pela arquitetura regulatória.
No que tange às tarifas cobradas, o poder concedente define as margens máximas e mínimas dos valores a serem praticados, pelo que a definição desses montantes não é livremente exercida pela concessionária. Ainda, há forte monitoramento por parte da Antaq das tarifas a serem cobradas, com acompanhamento de revisões e reajustes realizados nos últimos cinco anos, o que facilita a identificação de aumentos abusivos. Isso impede que a autoridade portuária eleve custos de maneira arbitrária — por derivação constrangendo abusividades que poderiam ocorrer em um cenário de integração vertical.
Esse sobrevoo das ferramentas regulatórias presentes na concessão do Porto de Santos mostra como eventuais riscos decorrentes de uma integração vertical são remediados de plano na definição dos compromissos da autoridade portuária, pelo que as preocupações — abstratamente cabíveis — não se justificam.
As severas restrições à participação impostas pelo poder concedente no leilão, apesar de bem-intencionadas, são descabidas por dois motivos: (i) compreendem de maneira equivocada os potenciais efeitos de uma integração vertical; e (ii) não prestam a devida atenção a como o próprio desenho regulatório as torna desnecessárias. A boa defesa da concorrência passa pela remoção dessas amarras, as quais limitam sem razão a participação de diversos agentes. Na intenção de proteger o Porto de Santos, o risco é naufragar a concorrência, as outorgas a serem auferidas pelo poder concedente e o interesse público, que requer um porto bem gerido, equipado e eficiente. Resta torcer que a maré mude seu rumo e o poder concedente possa navegar em linha com a técnica concorrencial.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme extraído da Nota Técnica nº 04 de 2022, Ato Justificatório da Concessão do Porto de Santos (p. 17, destaques nossos): “O principal aspecto que é endereçado pelo modelo de concessão cheia horizontal para o SSZ [sigla para o Porto Organizado de Santos] é a vedação à exploração direta de terminais. Essa vedação tem o condão de impedir a integração vertical entre a AP e um terminal, de modo que o terminal possa se valer da dependência que outros terminais concorrentes têm da AP para práticas discriminatórias”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme artigo 20, inciso I, do Decreto Federal 8.033/2013: “Art. 20. O objeto do contrato de concessão poderá abranger: I - o desempenho das funções da administração do porto e a exploração direta e indireta das instalações portuárias”.

porto-exportacoes-siscoserv-preço de transferência-carf

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Restrições à participação impostas pelo poder concedente no leilão, apesar de bem intencionadas, são descabidas

Concorrência no setor portuário: a concessão do Porto de Santos

Restrições à participação impostas pelo poder concedente no leilão do Porto de Santos, apesar de bem intencionadas, são descabidas