Opinião e Análise

Ticiana Nogueira da Cruz Lima

A noção de abuso é central no direito da concorrência. A mera existência de poder de mercado (posição dominante) por parte de um agente privado não é um ilícito: o que a lei de defesa da concorrência (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm">Lei 12.529/2011</a>) pune é o abuso de poder econômico, e não o poder econômico em si mesmo. Essa centralidade da noção de abuso é um dos fatores por trás da complexidade das decisões em matéria antitruste.
No mais das vezes, a tomada de decisão em matéria de investigação de condutas anticompetitivas não é baseada apenas na identificação/prova da existência de um ato que seja por si só um ilícito, como ocorre quando se trata do cometimento de um crime ou da quebra de um contrato no direito penal ou no direito civil.
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Na seara antitruste, as discussões normalmente se dão em uma área mais cinzenta, dado que no mais das vezes as condutas objeto de escrutínio por parte do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>) não são proibidas de maneira absoluta e poderiam ser lícitas caso não fossem realizadas de forma considerada abusiva.
Como, então, definir no que consiste um abuso? A lei brasileira de defesa da concorrência dá basicamente dois caminhos: (i) o abuso se materializa no próprio objeto da conduta, ou; (ii) o abuso se verifica a partir de uma análise dos seus potenciais efeitos.
No primeiro caso, podemos citar as chamadas restrições puras à concorrência (naked restraints)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> cujo exemplo clássico são os casos de cartel, mas que também podem se materializar na forma de cláusulas contratuais restritivas inseridas acordos de resto lícitos. No segundo caso, o abuso se configura a partir da possibilidade de uma dada prática ter efeitos anticompetitivos independentemente de ter um objetivo lícito.
Evidente que, sobretudo em se tratando de condutas ilícitas em função dos seus potenciais efeitos, o estabelecimento da ilicitude é sempre uma tarefa complexa e que envolve uma intensa análise fática. Ora, a existência de abusos regulatórios adiciona uma camada extra a toda essa complexidade inerente ao antitruste. Se já é difícil estabelecer o limite entre atuação lícita e ilícita de agentes privados atuando no mercado, que dizer da conduta desses agentes em sua interface com a regulação produzida pelo poder público?
De fato, abusos regulatórios tendem a ser condutas que desafiam as fronteiras entre público e privado e que, por isso, colocam em questão inclusive os limites da atuação do Cade. Contudo, seria errado interpretar a existência de desafios na análise de abusos regulatórios como um salvo conduto da perspectiva antitruste para esse tipo de conduta.
Complexidade, como visto, é o padrão no direito da concorrência e, quando se olha a prática decisória do Cade, fica evidente que a depender de como o abuso regulatório se verifica, a possibilidade de aplicação de sanção pelo Cade já está bem sedimentada.
Entende-se como abuso regulatório, todo exercício abusivo de um direito relacionado à regulação estatal. Por essa definição, esse abuso pode se dar tanto com relação à regulação já existente (i.e. uma empresa que utiliza procedimentos previstos em regulação para dificultar a atuação de concorrentes no mercado), como com relação à regulação futura (i.e. uma empresa que busca a edição de regulação que prejudica a concorrência). Há decisões do Cade no sentido da condenação de empresas nessas duas situações distintas.
Com relação ao abuso regulatório em torno de regulação já existente, a jurisprudência do Cade é rica em exemplos de decisões no sentido de que a mera existência de autorização regulatória para uma dada conduta não implica em um salvo conduto da perspectiva do direito da concorrência<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Ou seja, uma conduta pode ser autorizada do ponto de vista da regulação (como a cobrança de uma tarifa ou a formação de um consórcio, por exemplo) e ainda assim ser um ilícito antitruste. O fundamento principal para esse posicionamento é a noção já bem estabelecida no Cade de que a regulação setorial e a aplicação da lei de defesa da concorrência são complementares e não excludentes.
Ainda assim, é claro que o tema tem nuances importantes. A jurisprudência do Cade, em linha com o tratamento dado a isso em outras jurisdições, faz, por exemplo, uma diferença relevante entre condutas autorizadas pela regulação e condutas definidas na regulação como obrigatórias, deixando de intervir nessa segunda hipótese.
Na mesma linha, quando uma empresa for induzida à prática de uma conduta anticompetitiva, por exemplo, devido a uma orientação administrativa, este fato pode ser tomado em consideração como um fator atenuante para reduzir, sem necessariamente suprimir, a sanção aplicável. Ou seja, há espaço no Brasil para as chamadas “defesas de condutas reguladas”, mesmo que se adote a visão de que elas só devem ser aceitas em circunstâncias excepcionalmente restritas.
A questão que por vezes pode se colocar é: e se a própria regulação que dita um dado comportamento puder ser o produto de uma conduta anticompetitiva? Aqui entramos no âmbito do abuso regulatório em torno de regulação futura, que é aquele que levanta as discussões mais difíceis. Isso porque, nessa seara, mais do que limitar liberdade econômica, a intervenção antitruste envolve a limitação do exercício do próprio direito político de intervir no debate público que é o fundamento da democracia.
Não espanta, portanto, que o Cade no geral seja mais cauteloso ao punir esse tipo de conduta, que por vezes aparece na jurisprudência como lobby anticompetitivo ou sham lobby. Afinal, se o próprio Cade admite defesas de condutas reguladas por entender que a regulação pode afastar a aplicação da lei de defesa da concorrência em algumas circunstâncias específicas em prol de outros valores de interesse público, parece contraditório punir empresas que demandem do poder público esse tipo de restrição.
Dito isso, em linha com o que acontece com os direitos econômicos frequentemente limitados pelo Cade, em tese também se poderia cogitar de um abuso desse direito de influenciar a produção de normas legais ou regulamentares para delimitar a livre concorrência.
De fato, o Cade já condenou empresas por lobby anticompetitivo por identificar, por meio da análise das atas de reunião de um sindicato, a formação de um cartel que tinha como objetivo influenciar a edição de uma lei para impedir a atuação de postos de gasolina em supermercados no Distrito Federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em casos mais recentes, o Cade tem confirmado essa possibilidade de condenação da prática de lobby, mas tem condicionado a ilicitude dessa conduta à prova robusta da existência de algum elemento de fraude/falsidade nesse tipo de atuação, o que na prática tende a ser um requisito difícil de cumprir<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O debate, claro, segue em curso e deve se enriquecer a medida em que o Cade tenha a oportunidade de apreciar mais casos e se manifestar sobre diferentes contextos fáticos que podem dar indicativos preciosos sobre riscos de ilicitude. Por ora, resta a recomendação de cautela para agentes privados e a constatação de que não existe salvo conduto nessa matéria.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nas palavras da própria SG, o adjetivo naked, nesse caso adaptado ao português como “pura”, alude justamente à ausência de razoabilidade, isto é, a restrições anticompetitivas que estão despidas de melhorias para a ordem econômica ou a pessoa consumidora, e mesmo de uma racionalidade legítima de negócio por parte da empresa praticante. (Processo Administrativo nº <a href="https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?2pXoYgv29q86Rn-fAe4ZUaXIR3v7-gVxEWL1JeB-RtUgqOwvr6Zlwydl0IhRNSr2Q22lByVKByYDYwsa13_JxqC4HRMB0nKkMcpGxjaL8KKjOJX8ankN1DRW_g7jYePH">08700.009588/2013-04</a>)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Processo Administrativo n° 08000.002605/1997-52; Processo Administrativo n° 53500.001821/2002, 53500.001823/2002 e 53500.001824/2002; Processo Administrativo n° 08012.008501/2007-91; Processo Administrativo n° 08012.001518/2006-37, e; Processo Administrativo n° 08700.005499/2015-51, apenas para citar alguns exemplos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Processo Administrativo n° 08000.024581/1994-77.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Processo Administrativo n° 08700.000625/2014-08 e Procedimento Preparatório n° 08700.004808/2023-85.

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JOTA

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