Opinião e Análise

Aline Viotto

Flávio Marques Prol

Laryssa de Menezes Silva

Nas últimas décadas, foi construído no país um arcabouço regulatório que representou um avanço significativo no gerenciamento de resíduos sólidos e no fomento à indústria de reciclagem, orientado especialmente pela Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm">Lei n° 12.305/2010</a>). A PNRS também tem grande importância para os catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, uma vez que promoveu o devido reconhecimento da relevância ambiental, social e econômica do seu trabalho, bem como estabeleceu como objetivo sua integração nas ações de reciclagem. No entanto, decretos promulgados ao longo de 2022 promoveram mudanças na regulamentação da PNRS que estão na contramão do que está previsto na própria lei, exigindo urgente revisão.
Esses retrocessos impactam a inclusão e o fomento ao trabalho dos catadores de diferentes formas. Uma delas diz respeito à reversão da priorização na contratação desses trabalhadores. Neste âmbito, há diversos exemplos de alterações promovidas pelos decretos que confrontam diretamente o que prevê a PNRS. Diferentemente do que estabelecia a regulamentação anterior (Decreto n° 7.404/2010), o Decreto n° 10.936/2022 acabou com a priorização dos catadores nos sistemas de logística reversa, restringindo essa prioridade apenas à coleta seletiva. Pelo disposto na PNRS, a logística reversa é “instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada” (art. 3, XII). Assim, para de fato atender ao seu propósito, deveria ser garantido que os catadores sejam incluídos nesse sistema, e não apenas na coleta seletiva, que representa apenas uma etapa de um sistema muito mais amplo e diverso.
Outros retrocessos constam no Decreto nº 11.044/2022, que criou o certificado de crédito de reciclagem e ignorou por completo as previsões legais a respeito da inclusão de catadores. O certificado de crédito de reciclagem é gerado para comprovar a destinação de produtos ou embalagens para reciclagem. A finalidade seria fomentar o mercado de reciclagem, por meio da comercialização desses certificados, o que, consequentemente, beneficiaria todos os atores dessa cadeia, inclusive as cooperativas e associações de catadores. O problema é que o decreto não estabelece qualquer diferenciação entre um crédito de reciclagem gerado por cooperativas e associações de catadores e aqueles oriundos de empresas e outros atores privados. Na prática, a equiparação desses atores acaba com a prioridade aos catadores, prevista na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pnrs">PNRS</a>. Outro exemplo que reforça esse ponto é que todos os agentes que efetuam a restituição de produtos ou de embalagens recicláveis ao setor empresarial para reaproveitamento foram classificados pelo Decreto nº 11.044/2022 como “operadores do sistema de logística reversa”, sem qualquer distinção e priorização às cooperativas e associações de catadores. 
Além disso, as exigências do Decreto nº 11.044/2022 excluem, na prática, as cooperativas e associações da possibilidade de gerar créditos de reciclagem. Isso porque, no Art. 7o, o Decreto estabelece que os créditos devem ser lastreados em notas fiscais decorrentes da venda de material reciclável a empresas recicladoras. Na prática do setor, porém, por frequentemente não terem escala e produtividade suficientes, as entidades de catadores vendem os materiais recicláveis para empresas intermediadoras e estas, por sua vez, vendem para as empresas recicladoras. Dessa forma, como há intermediários na relação entre catadores e empresas recicladoras, as notas fiscais das vendas de materiais realizadas por cooperativas e associações não servirão de lastro a créditos de reciclagem, tendo por efeito a exclusão dos catadores de um novo mercado que está sendo estruturado em torno das atividades de reciclagem. 
Outro importante retrocesso é o fim da exclusividade garantida aos catadores sobre o recebimento de resíduos gerados pela administração pública federal. O Decreto n° 10.936/2022 criou o Programa Coleta Seletiva Cidadã, em substituição ao Programa Coleta Seletiva Solidária (Decreto n° 5.940/2006). Ao fazê-lo, estabeleceu que as associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis têm prioridade (e não exclusividade) para receber os resíduos gerados pela administração pública federal. Dessa forma, o novo programa altera uma diretriz central do programa anterior: a destinação integral dos resíduos recicláveis da administração pública federal para as cooperativas e associações de catadores. Ao dispor que nem todos os resíduos precisam ser destinados às organizações de catadores, o novo decreto estimula disputas entre estas e as empresas de reciclagem. O efeito potencial é de exclusão dos catadores do processo de recuperação desses resíduos. Por essa razão, o incentivo à competição é incompatível com os objetivos da PNRS, destacadamente, o de promover a integração dos catadores nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.
Por fim, outro retrocesso que merece destaque está no estabelecimento de barreiras para a participação dos catadores nos processos de reciclagem. O Decreto n° 10.936/2022 estabelece uma série de condições formais para participação de entidades de catadores nos sistemas de logística reversa e de coleta seletiva. São exemplos, neste sentido, a necessidade de cadastro e habilitação junto ao Sistema Nacional de Informações Sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos - Sinir, a utilização do Manifesto de Transporte de Resíduos - MTR e a necessidade de possuir infraestrutura adequada para triagem e classificação dos resíduos. O atendimento a esses requisitos demanda recursos financeiros e de pessoal nada triviais para cooperativas e associações, que estão em situação consideravelmente distinta das empresas e demais agentes da indústria da reciclagem. Sem esses recursos, os catadores poderão ser impedidos de participar do sistema de logística reversa por não cumprirem seus requisitos. Para que não se tornem barreiras intransponíveis, essas exigências deveriam ter sido acompanhadas por políticas que apoiem as cooperativas e associações no processo de adequação aos novos requisitos. Poderiam ser criados, por exemplo, programas de treinamento e capacitação, bem como destinados investimentos para compra de equipamentos.
Dessa forma, além de pôr fim à prioridade e à exclusividade dos catadores, os novos decretos também criaram exigências e limitações que dificultam ainda mais a atuação das suas entidades. Frente a esse conjunto de contradições e de afronta direta às disposições da PNRS, é urgente a revisão dos  Decretos n° 10.936/2022 e 11.044/2022. É imprescindível que os catadores, suas cooperativas e associações, sejam chamados a opinar e participar da rediscussão da regulamentação da PNRS, de modo a garantir, conforme previsto na legislação, o seu protagonismo e integração socioeconômica.

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JOTA

Decretos de 2022 estão na contramão da Lei n° 12.305/2010

A necessária revisão da regulamentação da Política Nacional de Resíduos Sólidos

Decretos de 2022, atrelados à revisão da regulamentação da Política Nacional dos Resíduos Sólidos, estão na contramão da Lei n° 12.305/2010.