Opinião e Análise

Nathalie Fragoso

Roberto Barracco

Gabriel Dantas Maia

Copa do Mundo na tela, seleção feminina em campo, Brasil – ou pelo menos grande parte dele – feliz. Não são apenas os nossos olhos atentos, no entanto. O desenvolvimento e emprego de tecnologias aplicadas ao esporte hoje permitem conhecer praticamente tudo o que caracteriza a performance de atletas.
Segundo estimativa da FIFPRO – organização internacional que representa hoje mais de 60 mil jogadoras e jogadores de futebol mundo afora – cada partida da Copa do Mundo feminina resulta na coleta de 8 milhões de pontos de dados por jogadora<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. É massivo o volume de dados tratados na prática esportiva. Além disso, o monitoramento viabilizado por sensores em treinos e outros jogos ao longo do ano seguramente ajudam a compor um repositório considerável de informações sobre cada atleta.
A utilização de dados se justifica no âmbito da formação e treinamento de atletas e equipes, já que o monitoramento e o acompanhamento do desempenho dos atletas, dos treinos, da recuperação física, da movimentação em campo geram inteligência potencialmente útil para a tomada de decisões. Estes dados também representam, por outro lado, uma dimensão importante da vida e trajetória profissional desses indivíduos, pelo que são objeto de proteção das legislações que parametrizam o seu tratamento e protegem a autodeterminação informacional (outra palavra para a o exercício da autonomia no que diz respeito à dimensão informacional da personalidade) e a privacidade dos indivíduos em geral.
Nessa linha, em setembro de 2022 a FIFPRO lançou uma <a href="https://fifpro.org/media/ik5harp1/player-data_managing-technology-and-innovation.pdf">cartilha</a> – elaborada em colaboração com a Fifa – abordando os direitos de dados de jogadores profissionais. Nela, as entidades endossam aquilo que já decorre do quadro normativo brasileiro e de outras jurisdições: dados relacionados a jogadores nada mais são que dados pessoais como previstos na legislação civil. O documento faz ainda menção expressa ao artigo 4 da GDPR (General Data Protection Regulation), regulamento europeu que disciplina o uso de dados pessoais na União Europeia e com o qual a legislação brasileira – a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – guarda semelhanças importantes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Também a Fifa, em seu <a href="https://digitalhub.fifa.com/m/787f00d0380f4120/original/dr9labmtd63ctx6o3erk-pdf.pdf">regulamento sobre proteção de dados</a>, aponta que legislações pertinentes ao tema se aplicam conjuntamente às suas disposições nessa matéria, reconhecendo a incidência potencial das legislações nacionais sobre proteção de dados em seus procedimentos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3"></a> De resto – e deslocando a perspectiva para a realidade nacional – dado o amplo escopo material e territorial da LGPD (art. 3º), sua aplicação pode incidir sobre práticas informacionais relacionadas ao esporte no território brasileiro e fora dele – p.e., a LGPD se aplica ao tratamento de dados coletados no Brasil, quer se refiram a atletas brasileiros ou estrangeiros, ao uso desses dados no país ainda que coletados, processados e analisados fora dele e por empresas estrangeiras, ou ainda a agentes que ofereçam serviços no território.
Além desta dimensão nacional da proteção de dados pessoais de atletas, há também as movimentações internacionais. A cartilha da FIFPRO anteriormente mencionada aponta a necessidade de padrões coletivamente aceitos que orientem o uso adequado de dados pessoais de atletas, ao que afirma a necessidade de que sejam assegurados, entre outros, o direito à informação quanto aos propósitos, bases legais e processamento de dados; o direito ao acesso e à revogação do consentimento para seu tratamento, quando esta for a base legal envolvida; o direito à portabilidade e à restrição do processamento realizado, de forma que se adeque ao propósito previamente informado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O regulamento da Fifa sobre proteção de dados, por sua vez, estabelece que o processamento de dados deve ser realizado de forma transparente – com os dados coletados para propósitos específicos, explícitos e legítimos – e limitado àquilo que é necessário para os propósitos previamente informados. Longe de impedir, de saída e por completo, que o processamento de dados aconteça, as orientações gerais conformam as possibilidades de processamento compatíveis com a preservação de direitos do titular e com a manutenção de um padrão coletivo de proteção.
A FIFPRO também anunciou no começo de julho, aliás, o desenvolvimento de uma <a href="https://fifpro.org/en/supporting-players/competitions-innovation-and-growth/player-performance-data/fifpro-member-unions-commit-to-create-centralized-player-data-management-platform-for-the-football-industry/">plataforma</a> unificada que permita aos jogadores, a partir de uma perspectiva neles centrada (player-centric), controlar e gerir o uso de seus dados pessoais. A proposta, que facilita aos atletas a gestão de seus dados, relembra de certa forma a <a href="https://nflpa.com/partners/posts/whoop-strikes-landmark-deal-as-the-officially-licensed-recovery-wearable-of-the-nfl-players-association#:~:text=The%20WHOOP%20Strap%202.0%20will,wrist%2C%20forearm%20or%20upper%20arm">parceria</a> firmada entre a National Football League Players Association – o sindicato de jogadores da liga estadunidense de futebol americano – e a empresa desenvolvedora de wearables Whoop. Por meio do arranjo, firmado em 2017, os jogadores teriam acesso a informações sobre sua recuperação física, níveis de tensão e sono, com controle sobre seus dados, além da possibilidade de comercializar seus dados de saúde, se assim desejassem. Essas movimentações, portanto, não são recentes e abrangem outras práticas esportivas.
As questões emergentes nesse tema não se limitam às jogadoras e jogadores, no entanto. Também nas arquibancadas a coleta de dados pessoais acontece. Os torcedores são titulares de dados <a href="https://www.fifa.com/data-protection-portal/ticket-buyers">alcançados</a> pela regulação da Fifa sobre proteção de dados pessoais, de modo que o processamento de seus dados também deve atender os princípios e direitos lá estabelecidos. Não é, por isso, pequeno o esforço de conformidade esperado dos agentes de tratamento do mundo do esporte.
Nessa frente, aliás, há novidades da regulação nacional: a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14597.htm#:~:text=L14597&amp;text=Institui%20a%20Lei%20Geral%20do%20Esporte.&amp;text=Art.%201%C2%BA%20%C3%89%20institu%C3%ADda%20a,Cultura%20de%20Paz%20no%20Esporte.">Lei Geral do Esporte</a>, sancionada recentemente, prevê que o acesso do público a arenas esportivas com capacidade para mais de 20 mil pessoas deverá contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e identificação biométrica dos espectadores (art. 148). A obrigação de coleta de dados biométricos, que chegou a ser contestada pela sociedade civil, implica o tratamento de dados pessoais sensíveis (LGPD, art. 5º, II), e além das providências em geral cabíveis para o tratamento de quaisquer dados, incidem limites e cuidados especiais decorrentes dos riscos que o tratamento de tais dados implica.
Jogando ou torcendo, a intensificação do tratamento de dados pessoais enseja ou deve ensejar a tomada e o reforço de providência de compliance de dados por seus agentes de tratamento, para proteção dos titulares, mas não só. Além das sanções – também econômicas - a que estão desde logo sujeitos, a gestão inadequada de dados pessoais pode ter implicações trabalhistas, consumeristas, concorrenciais, a depender da relação jurídica em cujo âmbito os dados são processados. Parte considerável deles ainda tem natureza sensível – como os dados de saúde de jogadores e os dados biométricos de torcedores – o que acrescenta uma camada de complexidade e importância a este debate.
A disposição da Lei Geral do Esporte sobre identificação biométrica, que deve ser implementada em no máximo dois anos, pode contribuir para manter o tema nos holofotes, assim como os avanços em inteligência artificial e uso de dados de atletas, e o boom de apostas esportivas por aqui. As estratégias de tratamentos de dados importam nos mercados esportivos. Dentro e fora de campo; agora é acompanhar a partida.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A estimativa da <a href="https://fifpro.org/en/supporting-players/competitions-innovation-and-growth/player-performance-data/fifpro-member-unions-commit-to-create-centralized-player-data-management-platform-for-the-football-industry/">FIFPRO</a> para a Copa do Mundo feminina deriva da quantidade de dados que foi efetivamente coletada de cada jogador em cada jogo da Copa do Mundo masculina, realizada no Catar em 2022: “At the 2022 FIFA World Cup, volumetric tracking captured eight million data points per player per game, just as it will at the 2023 FIFA Women’s World Cup also".
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Assim consta na abertura da seção sobre “Categorias de dados de jogadores” na cartilha da FIFPRO: “Player data: Means any information relating to players which would fall within the definition of personal data set out in Article 4 of the GDPR; namely any information relating to na identified or identifiable natural person.” (p. 3).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Diz o preâmbulo do regulamento da FIFA sobre proteção de dados: “These Regulations apply in addition to the Applicable Data Protection Laws. Compliance with the latter must be achieved, especially where the Applicable Data Protection Laws are stricter than the principles set out in these Regulations.” (p. 4).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Estes são apenas alguns dos direitos que a FIFPRO apresenta em sua cartilha. Na síntese da organização (p. 10), os direitos que devem ser assegurados aos atletas são: o direito de ser informado; o direito de acesso aos dados; o direito de revogação do consentimento; o direito à portabilidade dos dados; o direito de restringir o processamento; o direito à retificação dos dados; o direito à exclusão dos dados; e o direito de questionar o tratamento de dados, inclusive a autoridades de proteção de dados.

futebol

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JOTA

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