Opinião e Análise

Felipe Recondo

Quando ainda não existia o Superior Tribunal de Justiça, o Supremo era foro competente para julgar eventuais crimes cometidos pelos desembargadores. Os casos foram raros. Um no império, julgado pelo então Supremo Tribunal de Justiça, com a condenação de um desembargador que atuava no Maranhão. O segundo processo foi julgado em 1947.
O desembargador Edgard Joaquim de Souza Carneiro, do Tribunal de Justiça da Bahia, foi acusado pela Procuradoria-Geral da República, comandada na época por Temístocles Brandão Cavalcanti, de matar o advogado Otávio Barreto, dentro do prédio do TJ.
O relator do processo no Supremo - Ação Penal 81 - foi o ministro Edgard Costa. E quem fez a defesa de Souza Carneiro, anos depois, seria nomeado ministro do Supremo – Evandro Lins e Silva compunha a banca de defesa, também integrada pelos advogados Carlito Onofre e José Joaquim de Souza Carneiro.
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O ministro Edgard Costa, diante da complexidade e sensibilidade do assunto para a Justiça local, instruiu o processo integralmente, viajando a Salvador para ouvir pessoalmente as 15 testemunhas de defesa e acusação. Todos os depoimentos foram taquigrafados para que os integrantes do STF tivessem acesso à história detalhadamente.
Ao fim da instrução, a defesa do desembargador Souza Carneiro pediu sua absolvição, alegando que ele matou Otávio Barreto em legítima defesa. O Ministério Público, por outro lado, insistia no pedido de condenação, argumentando que a tese da legítima defesa não estava de acordo com as circunstâncias da história, contada pelas testemunhas e pelo acusado.
O Supremo ouviu defesa e acusação na sessão de 31 de julho de 1947, iniciada às 13h30. Depois, ordenou o esvaziamento do plenário e se fechou para deliberar. Da sessão secreta saiu a decisão. Unânime.
Otávio Barreto, advogado, e Edgard Joaquim de Souza Carneiro, desembargador, tinham um passado de desavenças que não chegavam a torná-los inimigos. Mas o relacionamento entre ambos mudou quando o desembargador recebeu uma carta anônima em termos que considerou injuriosos. Não teve dúvida de quem escreveu aquelas linhas – Otávio Barreto.
Em outra carta, essa assinada, o advogado exigiu explicações do desembargador por ter se recusado a cumprimentar-lhe. Ameaçou que, na próxima vez que isso ocorresse, ia desagravar-se por qualquer meio. Ameaça cumprida: o advogado “esbofeteou” o desembargador em local público e dos mais movimentados da cidade de Salvador.
O desembargador, diante da situação e de novas ameaças feitas, conforme testemunhas ouvidas no processo, pediu à polícia a licença necessária para portar uma arma caso fosse necessário se defender. Autorização que foi concedida.
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No dia 29 de outubro de 1946, o desembargador se preparava para deixar o Tribunal de Justiça. Foi ao cartório para buscar seu chapéu e a arma que deixava guardada. À porta, encontrou o advogado conversando com outro defensor. Souza Carneiro passou pela pequena porta vaivém disposta no balcão que separa o público do local de trabalho de servidores e magistrado. Ao se encaminhar para o arquivo, onde estavam guardados chapéu e revólver, notou que o advogado também entrou na sala.
O desembargador ponderou, conforme os autos do processo, que o advogado não podia estar ali e precisava se retirar. O advogado se recusou, alegando sua qualidade de advogado. O desembargador se encaminhou para a saída e foi seguido pelo advogado. O juiz então ordenou a um dos funcionários do TJ que retirasse o advogado do local.
Otávio Barreto, resistindo à ordem, voltou para dentro da sala reservada e então sacou uma arma. De acordo com uma testemunha, que presenciou o fato, Barreto disparou contra o desembargador. A outra testemunha, também presencial, diz não ter certeza de quem disparou a arma primeiro. Souza Carneiro sacou sua arma e disparou repetidamente. Três tiros atingiram o advogado, um deles penetrou o lobo temporal direito, causando a morte imediata de Otávio Barreto.
A disputa de versões de acusação e defesa se dava sobre quem seria o responsável pelas provocações que levaram ao homicídio. Se Otávio Barreto era o responsável ou se Souza Carneiro. O PGR acusava o desembargador de causar o incidente que levou à troca de tiros. A defesa afirmava que quem deu o primeiro tiro e vinha expondo ameaças a Souza Carneiro era o advogado Otávio Barreto.
A defesa, ao final, convenceu os ministros do Supremo.
Os ministros julgaram que o desembargador agiu diante de receio justificado de ser agredido ou morto. “O meio ou expediente de que se socorreu para pôr a salvo a sua dignidade de homem e de juiz, não se mostrando entibiado, ante o que razoavelmente supôs ser uma agressão iminente é aceitável e explicável”, julgaram os ministros, conforme acórdão do julgamento.
“Agredido a tiro pela vítima, ou, - quando se conteste que o primeiro disparo tenha sido dela, - vendo a vítima sacar de um revólver e não podendo duvidar da sua intenção, assim pelos fatos antecedentes como pela sua capacidade agressiva, o acusado, para repelir essa agressão, atual ou iminente, à sua integridade física, à sua vida mesmo, usou da arma que trazia devidamente autorizado”, concluíram.
Votaram nesse sentido os ministros Edgard Costa, Laudo de Camargo, Barros Barreto, Aníbal Freire, Castro Nunes, Orosimbo Nonato, Goulart de Oliveira, Lafayette de Andrada, Ribeiro da Costa e Hahnemann Guimarães. Presidiu a sessão o ministro José Linhares.
*A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna é publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao ex-ministro Celso de Mello, que atuou como a memória do tribunal durante seus anos como decano. Quem assistia às sessões se acostumou às suas referências que, não raro, iam até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

STF 1950 (3)

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JOTA

Um dos raros casos de homicídio que o Supremo julgou originariamente

ExCelso: STF julga desembargador acusado de matar um advogado – em 1947

ExCelso: STF julga desembargador acusado de matar um advogado – em 1947. Um dos raros casos de homicídio que o Supremo julgou originariamente