Opinião e Análise

Felipe Recondo

Sete décadas antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que governadores podem impor restrições ao funcionamento de templos religiosos e igrejas em razão da pandemia da Covid-19, o tribunal foi provocado a resolver um conflito entre um ato do poder público e a alegada violação da liberdade de crença.
Neste caso, julgado em 1949, um ato do presidente da República, Eurico Gaspar Dutra, era questionado no STF por um ex-bispo da Igreja Católica, Dom Carlos Duarte da Costa, fundador da Igreja Católica Apostólica Brasileira. E o Supremo reconheceu, assim como o fez agora em 2021, que a liberdade de culto comporta limitações.
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Ao caso.
Carlos Duarte da Costa foi excomungado em 1945 pelo Papa Pio XII. Ele havia acusado a Igreja de omitir-se diante do nazismo e de viabilizar a fuga de oficiais nazistas. Diante da decisão do Vaticano, fundou a Igreja Católica Apostólica Brasileira. Os cultos, vestes e os ritos eram semelhantes ao da Igreja Romana.
O governo federal foi provocado pelo arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara. Ele argumentou que as semelhanças podiam provocar confusão entre os fiéis e pediu providências ao Planalto.
“Em verdade, desde o nome adotado – Igreja Católica Apostólica Brasileira – até o culto e ritos, tudo é feito com o objetivo de mistificar e confundir. Assim, o próprio apóstata se apresente como ‘bispo do culto romano’; usam, ele e seus ministros, as mesmas vestes e insígnias do clero e bispos romanos, praticam os mesmos atos religioso da Igreja de Roma, como sejam: batismos, crismas e casamentos, procissões, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais, e em todos esses atos adotam os mesmos paramentos e o mesmo cerimonial do nosso culto externo”,  sustentou em representação dirigida à Presidência da República.
Duarte da Costa respondeu não haver confusão entre sua igreja e a Igreja Católica Apostólica Romana. Sua igreja era nacional, brasileira; a outra se pretende universal, ele alegou. As vestes sacerdotais, acrescentou, eram a princípio as mesmas, porque só com o passar do tempo sua igreja adotaria características diferenciadas.
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O consultor geral da República, Haroldo Valadão, elaborou um parecer em que não impedia o funcionamento da Igreja Católica Apostólica Brasileira. Entretanto, para evitar conflito e possível perturbação da ordem pública, o consultor recomendou que a Igreja Brasileira ficasse impedida de promover manifestações externas, como missas campais e procissões, que pudessem se confundir com os ritos da Igreja Romana.
“Cabe, portanto, à autoridade civil, no exercício do seu poder de polícia, atendendo ao pedido que foi feito pela autoridade competente da Igreja Católica Apostólica Romana, e assegurando-lhe o livre exercício do seu culto, impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto, através de manifestações externas (...) quando praticadas pela Igreja Católica Apostólica Brasileira com as mesmas insígnias, as mesmas vestes, enfim, o mesmo rito daquela”, conclui Haroldo Valadão no parecer. O presidente Dutra confirmou o parecer.
Foi contra a decisão do presidente da República que Duarte da Costa se insurgiu no Supremo via mandado de segurança. Entretanto, o tribunal não enxergou no caso a alegada violação à liberdade de crença e de culto. Com exceção de um ministro – Hahnemann Guimarães.
O relator do processo no STF foi o ministro Lafayette de Andrada. O voto foi curto. O governo não impediu o funcionamento da igreja, não atentou contra a existência da igreja.
Agiu o governo, disse o ministro, para “impedir o excesso de liberdade” a fim de evitar que perturbasse a tranquilidade e a ordem pública. “O livre exercício dos cultos religiosos não pode ter amplitude sem controle, sem limites. É uma liberdade sujeita à ordem pública, aos princípios que a mantêm, ao respeito dos direitos de outrem”, argumentou o relator.
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Não estava sob ameaça, afirmou o ministro Ribeiro da Costa, a liberdade de culto. O que o governo fez, na sua opinião, foi meramente exercer o seu poder de polícia para evitar perturbação à ordem pública.
Mais enfático foi o ministro Abner de Vasconcelos, que não era originalmente integrante do STF, mas ocupava a cadeira em substituição ao ministro José Linhares, que estava de licença.
Em seu voto, ele disse que “o bispo apóstata” insubordinou-se contra a Igreja, “quis abrir concorrência à Igreja de Roma” e acionou o Supremo quando “seus movimentos” foram barrados pelo presidente da República.
“A confusão que o requerente cogita fazer, ofende os direitos e as regalias peculiares à Igreja, e legitima a interferência do seu representante junto aos Poderes públicos do país”, disse o ministro.
Votaram também por rejeitar o pedido feito por Duarte da Costa os ministros Luiz Gallotti, Edgard Costa, Orosimbo Nonato e Aníbal Freire.
Voto vencido, o ministro Hahnemann Guimarães ponderou que a Igreja Católica Apostólica Brasileira nasceu de um cisma da Igreja Romana, assim como houve outros fenômenos semelhantes no passado. Assim sendo, seria lícito a Duarte da Costa o livre exercício do culto.
Se havia algum delito, disse o ministro, era de cunho espiritual. Não cabia, portanto, a interferência do poder civil. “Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias igrejas; não é lícito que essas igrejas recorram ao prestígio do poder temporal para resolver seus cismas, para dominar suas dissidências”, ele defendeu.
Assim, por entender que o presidente da República atentava contra a liberdade de crença, ele votou – solitariamente – pela concessão do mandado de segurança contra o ato do governo federal.
*A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna é publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao ex-ministro Celso de Mello, que atuou como a memória do tribunal durante seus anos como decano. Quem assistia às sessões se acostumou às suas referências que, não raro, iam até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

Esta imagem é parte do Fundo Agência Nacional Série FOT Subsérie PPU

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JOTA

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