Opinião e Análise

Felipe Recondo

Um dos episódios mais marcantes da história do Supremo Tribunal Federal (STF), descrito hoje com pitadas de heroísmo e certo exagero dramático, completou 50 anos nesta semana. No dia 10 de março de 1971, em meio à sessão do plenário do tribunal, o ministro Adauto Lucio Cardoso pede a palavra e anuncia que estava renunciando ao cargo, insatisfeito com uma decisão do STF sobre a censura prévia imposta pela ditadura militar a livros e meios de comunicação.
Não havia mais lugar para ele na Corte. Ele estava insatisfeito com as limitações impostas pelo regime e contrariado com a decisão que o plenário havia acabado de adotar, reconhecendo que somente o Procurador Geral da República podia contestar a constitucionalidade de atos do Executivo, impedindo assim que outros atores acionassem o tribunal contra os exageros do governo.
O episódio provocou uma crise interna na Corte, mas deixou sementes para o texto que seria aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte em 1988, ampliando o rol de legitimados a contestar a constitucionalidade de normas e leis.
Adauto Lucio Cardoso era um dos integrantes da barulhenta bancada da UDN no Congresso Nacional. Apoiou o golpe militar de 1964, mas se indispôs com o governo militar quando o presidente da República Castelo Branco anunciou uma nova lista de parlamentares cassados com base no Ato Institucional 2, em 1966.
Cardoso presidia a Câmara dos Deputados e dizia ter ouvido de Castelo Branco, dias antes da medida radical, a promessa de que não haveria mais cassação de parlamentares com base no AI 2. Compromisso que afirmou ter sido reforçado numa segunda reunião no Planalto, horas antes de ser publicada a nova lista de cassados, incluindo seis deputados ligados aos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek.
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O presidente da Câmara sentiu-se humilhado e traído. Instalou-se no Congresso e avisou que ignoraria os decretos de cassação. Permaneceu no prédio em vigília e garantiu a palavra aos deputados cassados. Mas o ato de indignação não produziria nenhum efeito. Foi o que lhe disse Prado Kelly, àquela altura, ministro do Supremo. “Você tem as atitudes, mas não tem os instrumentos”. Aliomar Baleeiro, também ministro do STF e amigo pessoal de Adauto, serviu de interlocutor entre Castelo e o presidente da Câmara. Mas sua interferência também não foi bem sucedida.
Castelo Branco, depois de uma semana de impasse, determinou que o Exército esvaziasse o Congresso. Adauto e o coronel Meira Matos, encarregado da missão de tirar os parlamentares do Congresso, protagonizaram a cena assistida por todos, inclusive pela imprensa:
- Coronel, estranha a sua missão de violentar um poder civil!
- Perdão, dr. Adauto, o senhor me dá a oportunidade de também estranhar que tenha tido atitude tão antirrevolucionária.
- Coronel, eu sou, antes de tudo, um servidor do poder civil.
- E eu, deputado, sou um servidor do poder militar – encerrou Meira Matos.
A despeito da crise sem precedentes, o presidente Castelo Branco mantinha respeito pelo presidente da Câmara e convidou-o a assumir a vaga no STF que seria aberta pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Adauto, que recusou outras sondagens, renunciou à presidência da Câmara e assumiu, em fevereiro de 67, a cadeira no Supremo. Foi uma forma de contornar a crise política.
Em 1970, o então presidente Emílio Médici assinou o decreto-lei 1.077, impondo a censura prévia livros e meios de comunicação:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.
Parágrafo único. O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da verificação prevista neste artigo.
Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.
Art. 4º As publicações vindas do estrangeiro e destinadas à distribuição ou venda no Brasil também ficarão sujeitas, quando de sua entrada no país, à verificação estabelecida na forma do artigo 2º dêste Decreto-lei.
Art. 5º A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que não hajam sido liberados ou que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste Decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal:
I - A multa no valor igual ao do preço de venda da publicação com o mínimo de NCr$ 10,00 (dez cruzeiros novos);
II - À perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa.
Art. 6º O disposto neste Decreto-Lei não exclui a competência dos Juízes de Direito, para adoção das medidas previstas nos <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5250.htm#art61">artigos 61</a> e <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5250.htm#art62">62 da Lei número 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.</a>
Art. 7º A proibição contida no artigo 1º dêste Decreto-Lei aplica-se às diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão.
Parágrafo único. O Conselho Superior de Censura, o Departamento de Polícia Federal e os juizados de Menores, no âmbito de suas respectivas competências, assegurarão o respeito ao disposto neste artigo.
Art. 8º Êste Decreto-Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 26 de janeiro de 1970; 149º da Independência e 82º da República.
A oposição ao governo militar, ou seja, o MDB protocolou uma representação na Procuradoria Geral da República. O partido contestava a constitucionalidade do decreto. E esperava que o então PGR, Xavier de Albuquerque, ajuizasse no STF uma ação neste sentido. Entretanto, o procurador dizia que a decisão sobre contestar ou não um ato do presidente ou a constitucionalidade de lei era competência privativa dele. Discordando dos argumentos do MDB, arquivou a representação, impedindo que o tema chegasse ao Supremo.
O MDB então entrou com reclamação no STF. Por entender que o procurador deveria levar a representação ao tribunal. Não teria o PGR, portanto, poderes absolutos para frustrar a missão que era do Supremo de resguardar a Constituição. O tema, disse Xavier de Albuquerque 40 anos depois numa longa entrevista em seu escritório aqui em Brasília, era bastante simples, singelo até. Era expresso na Constituição de 1967, mas ele entendia que o MDB fizesse política com o tema. Cada um com seu papel.
O relator do processo foi o ministro Adalício Nogueira, indicado para o tribunal nas vagas abertas pelo Ato Institucional 2. Na sessão, ele iniciou o voto de mérito, lendo o artigo 119 da Constituição.
“Compete ao Supremo Tribunal Federal, processar e julgar a representação do procurador-geral da República, por inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual”.
Assim, continuou o relator, a iniciativa do procurador-geral é “insubstituível pela ação de terceiros”. “É essa uma atribuição sua, específica, de que ele é o órgão exclusivo. Seria inconcebível que outrem se lhe sobrepusesse nesse procedimento, maiormente quando, como no caso vertente, se pretende declarada a inconstitucionalidade de uma lei, em tese”, afirmou o ministro Adalício Nogueira. Era, pois, seu voto: improcedente a reclamação.
Vieram os demais votos no mesmo sentido, aqui resumidos:
Bilac Pinto:
“Meu voto é no sentido de negar acolhimento à reclamação porque entendo que o procurador-geral da República age no exercício de competência privativa quando delibera sobre se uma representação deve ou não ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal.”
Thompson Flores:
“Reconhecida sua legitimidade única (do procurador-geral) para a iniciativa, poderia arquivá-la, de plano, como o fez, convencido da sua improcedência. Assim procedendo, operou nos limites de suas atribuições, sem invadir a área de competência desta Corte”.
Amaral Santos:
“Devo dizer que o disposto no art. 119, nº 1, letra “l” da Constituição, foi reproduzido no Regimento Interno deste tribunal, art. 6º, nº VII, isto é, que a representação é do procurador-geral da República”.
Djaci Falcão:
“O procurador-geral da República é, inegavelmente, o titular da representação. Ele é parte, ele é o juiz da conveniência ou não do seu oferecimento e, via de consequência, não há cogitar de usurpação de competência desta Corte”.
Eloy da Rocha:
“Não tenho dúvida de que, pelo art. 119, I, letra l, da Constituição vigente, a ação de representação de inconstitucionalidade é do procurador-geral da República. Não é possível obrigar o procurador-geral da República a oferecer a representação”.
Oswaldo Trigueiro:
“Parece-me fora de dúvida que o procurador-geral é o titular único da ação direta, o que significa que tem o arbítrio de arguir ou não a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual”.
Luiz Gallotti:
“Como tenho dito mais de uma vez, aos interessados ficam sempre amplamente ressalvadas todas as vias processuais para arguirem a inconstitucionalidade, de que se cuida. Então, aí é que vamos apreciar a arguição, para dizermos se procede, ou não.”
O ministro Adaucto Lucio Cardoso votou isoladamente logo após proferido o voto do ministro Amaral Santos. E seu voto demonstrava verdadeiro incômodo com o teor do que decidido:
"Senhor presidente, encontro-me diante de uma encruzilhada deveras difícil. 
Leio o art. 2º, da lei 4.337, de 1º.6.64, que declara de maneira peremptória: ‘Se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o procurador-geral da República terá o prazo de 30 dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a arguição perante o Supremo Tribunal Federal’.
Considero o § 1º, do art. 174, do Regimento Interno, cuja letra é a seguinte: ‘Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o procurador-geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário’.
Tenho ouvido da parte de alguns dos eminentes membros desta Corte que exerceram o cargo de procurador-geral da República o argumento de autoridade de que sempre consideraram prerrogativa deste o oferecimento da representação. É de ver-se que defendem com ênfase um ponto de vista assentado não no exercício do cargo de juiz desta Corte, mas no exercício da alta função de chefe do Ministério Público Federal”.
O ministro prossegue, argumentando que, na situação em que o país estava, o Supremo acabava por sofrer mais uma limitação de suas competências.
“A conjuntura em que nos vemos e o papel político do Supremo Tribunal Federal estão a indicar, para a minha simplicidade, que o art. 2º, da lei 4.337, de 1º - 6 – 64, o que estabeleceu para o procurador-geral da República foi o dever de apresentar ao STF, em prazo certo, a arguição de inconstitucionalidade formulada por qualquer interessado.
O nobre dr. procurador apreciou desde logo a representação, não para encaminhá-la, com parecer desfavorável, como lhe faculta o regimento, mas para negar-lhe a tramitação marcada na lei e na nossa Carta Interna. Com isso, ele se substituiu ao tribunal e declarou, ele próprio, a constitucionalidade do decreto-lei 1.077/70.
Essa é para mim uma realidade diante da qual não sei como fugir”.
O ministro Luiz Gallotti o aparteou, dizendo que o regimento estabelecia que o procurador poderia encaminhar a representação. Não a oferecendo, qualquer interessado poderia acionar o tribunal por mandado de segurança, por exemplo.
Adaucto Lucio Cardoso retruca:
“Considero o argumento de Vossa Excelência com o maior apreço, mas com melancolia. Tenho a observar-lhe que, de janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente nem surgirá, ninguém, a não ser o partido político da oposição, que a duras penas cumpre o seu papel,  a não ser ele, que se abalance a arguir a inconstitucionalidade do decreto-lei que estabelece a censura prévia.
Então escritores ou empresas não poderão fazê-lo”, questionou Gallotti. “Vossa Excelência está argumentando com virtualidades otimistas, que são do seu temperamento. Sinto não participar das suas convicções e acredito que o tribunal, deixando de cumprir aquilo que me parece a clara literalidade da lei 4.337, e deixando de atender também à transparente disposição do §1º, do artigo 174 do regimento, se esquiva de fazer o que a Constituição lhe atribui e que a lei 4.337 já punha sobre seus ombros, que é julgar a constitucionalidade das leis, ainda quando a representação venha contestada na sua procedência, na sua fundamentação, pelo parecer contrário do procurador-geral da República.
É assim que entendo a lei, que entendo a Constituição, e é assim também que entendo a missão desta Corte, desde que a ele passei a pertencer, há quatro anos”.
Adaucto Lucio Cardoso ficou isolado no julgamento com seu pessimismo que se mostraria realista. A censura no Brasil teria vida longa.
Proclamado o resultado do julgamento, o ministro pede a palavra. O relato não consta das notas da sessão ou do acórdão. Os detalhes foram publicados pela imprensa:
“Sr. presidente, com esta deliberação que o Supremo Tribunal Federal acaba de tomar, eu entendo – naquilo que o ministro Luiz Gallotti chama de pessimismo – que se suprimiu a ação direta de declaração de inconstitucionalidade sempre que ela contrariar o interesse do Poder Executivo.
O meu ponto de vista, externado nesta sala e que, infortunadamente, ficou solitário é, segundo se viu, segundo se demonstrou, o ponto de vista de quem conhece menos a lei. A minha interpretação das leis não excede a liberalidade delas. Aquilo que eu vi na lei 4.447 e no regimento interno do STF, que há pouco tempo votamos, é coisa extremamente simples, que não induz à presunção de notável saber jurídico que deveria ter como ministro do Supremo Tribunal Federal.
Encontro-me diante de uma realidade incontestável: sozinho contra a totalidade da mais alta corte de Justiça de meu País, defendendo pontos de vista que não mereceram nenhum apoio. Cresce de gravidade a situação em que me vejo porque sinto que com esta solidão mais sobreleva a incapacidade em que me encontro para defender alguma coisa por cujo resguardo eu pretendia pugnar nesta casa.
Tenho a dizer a Vossa Excelência que me retiro do Tribunal, encaminhando a Vossa Excelência o meu pedido de aposentadoria.”
Adaucto Lucio Cardoso colocou a toga sobre o espaldar da cadeira e dirigiu-se à porta do tribunal. Presidia a sessão o ministro Aliomar Baleeiro, que o chamou de volta: "Ministro Adaucto Lucio Cardoso, peço a Vossa Excelência que participe desta sessão".
"Senhor presidente, estou de pleno acordo com a declaração que fiz", respondeu Adauto.
E depois disso, retirou-se do plenário, subindo ao segundo andar do prédio do Supremo,  dirigindo-se ao seu gabinete.
A sessão foi suspensa por sugestão do ministro Oswaldo Trigueiro. E alguns ministros seguiram para o gabinete de Adauto para tentar demovê-lo da decisão. Outros, contudo, não esconderam a revolta com as palavras do colega. E, em vez de tentar convencê-lo a voltar atrás, queriam um pedido de desculpas.
A história segue. Na próxima coluna ExCelso.
*A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna é publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao ex-ministro Celso de Mello, que atuou como a memória do tribunal durante seus anos como decano. Quem assistia às sessões se acostumou às suas referências que, não raro, iam até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

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JOTA

O dia em que Adauto Lucio Cardoso, ministro do STF, renunciou ao cargo em plena sessão em sinal de protesto

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