Opinião e Análise

Felipe Recondo

O acionamento da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170, de 1983) para enquadrar o jornalista Ricardo Noblat pela publicação de uma charge do cartunista Aroeira remete a um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal há 57 anos.
O ministro da Guerra do governo João Goulart, Jair Dantas Ribeiro, usou a Lei de Segurança Nacional que vigia naquela época para prender, investigar e processar o jornalista Hélio Fernandes por publicar informações sigilosas no jornal Tribuna da Imprensa. Mas o Supremo, em votação apertada, afastou a aplicação da Lei de Segurança então vigente (Lei 1.802, de 1953) contra o jornalista.
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O caso se iniciou quando, em 1963, o ministro da Guerra enviou duas circulares aos comandos em caráter sigiloso. Uma delas para relatar uma campanha que estaria sendo empreendida pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda, contra o presidente da República. “Face à conjuntura político-militar, já exposta, impunha-se ao Chefe do Exército, adoção de uma série da medidas indispensáveis ao restabelecimento do clima de tranquilidade”, explicou o ministro da Guerra, em ofício enviado ao STF.
Ao vazar as informações, inclusive revelando a chave criptográfica que era usada pelo Ministério da Guerra para ligações secretas com os órgãos subordinados, a “existência de elementos informantes no próprio seio da instituição”, nas palavras do ministro da Guerra, levaram-no a determinar a instauração de inquérito policial-militar.
“Não objetiva absolutamente meu ato atentar contra a liberdade de imprensa”, afirmou o ministro. “O que me interessa fundamentalmente é descobrir os elementos que fornecem a um jornalista documentos secretores, atentando contra a segurança de nossa instituição e chama-los à responsabilidade”, acrescentou.
Hélio Fernandes, ao divulgar informações sigilosas, “participa de um fato criminoso, isto é, a comunicação de mensagens consideradas sigilosas, arrogando-se o direito de divulgá-las”.
Assista ao novo episódio do podcast Sem Precedentes sobre coesão do STF ao manter inquérito das fake news:
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O habeas corpus em favor do jornalista foi impetrado pelo advogado Heráclito Sobral Pinto. E o relator foi o ministro Ribeiro da Costa. Inicialmente, em seu voto, o ministro do STF mostrou que o ministro da Guerra seria autoridade incompetente para determinar a prisão administrativa de Hélio Fernandes e que não havia, na ordem de prisão, indicação de dispositivo da lei penal-militar no qual estivesse indiciado o jornalista.
“A Lei de Segurança – já decidiu o Supremo – tem aplicação aos casos de ação delituosa contrária, atentatória da segurança nacional, interna ou externa, mas só para esses casos”, argumentou o ministro Ribeiro da Costa. A afirmação não era precisa. Havia julgados em sentido oposto, e o ministro Victor Nunes Leal mostraria isso posteriormente.
Primeiro a votar depois do relator, o ministro Hermes Lima, nomeado por João Goulart, deu razão ao ministro da Guerra e disse que a prisão do jornalista não atentava contra a liberdade de imprensa. “A imprensa está livre, a imprensa brasileira é a mais livre do mundo”, rechaçou o argumento da defesa de que a prisão atentava contra a atividade do jornalista.
Além de mostrar que a jurisprudência do STF não era totalmente na direção de afastar a aplicação da Lei de Segurança contra jornalistas – em atos praticados em seu ofício - , Victor Nunes Leal afirmou que o ministro da Guerra agiu corretamente e dentro de suas responsabilidades. “O jornalista não pode ter somente as vantagens, regalias e privilégios que a lei lhe outorga, mas também os ônus do imenso poder que a democracia deposita nas suas mãos”, ressaltou. Na mesma direção se manifestaram os ministros Gonçalves de Oliveira e Vias Boas.
O ministro Cândido Motta Filho deu o voto de empate (após voto no mesmo sentido do ministro Hahnemann Guimarães). E ressaltou algo que hoje é corrente no tratamento das informações publicadas pela imprensa.
Ao publicar as mensagens enviadas pelo ministro da Guerra, o jornalista “não procedeu como um civil a serviço de espionagem ou da traição dos interesses nacionais , mas na missão , que essencialmente sua, de revelar ao público o que julga de interesse público. E esse aspecto mais se aviva quando o certo é que o ultra-secreto, o secreto ou o reservado nos boletins são avisos aos destinatários e a mais ninguém”. Ele concluiu: “Para conter o abuso do homem de imprensa, há a lei de imprensa, que coloca a liberdade de dizer ao lado da responsabilidade de dizer”.
Coube ao presidente – e também relator do caso – Ribeiro da Costa desempatar o julgamento. Hélio Fernandes foi colocado em liberdade e não pôde ser processado, pela publicação das mensagens, pela justiça militar. Se houvesse crime, seria de imprensa.
Atualmente, não há uma lei de imprensa no Brasil. O Supremo julgou que a lei que vigia desde a ditadura militar não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Ainda não houve nenhuma contestação no STF quanto à compatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a Constituição em alguma ação de controle concentrado (ADI, ADPF, ADO ou ADC).
Em julgamento realizado em 2016, os ministros Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski apontaram a incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a Constituição. Contudo, Barroso ressaltou que o Congresso deveria atualizar a legislação, adequando-a aos novos tempos. “Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira. Há, no Congresso, apresentada de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e das Instituições, que a substitui de maneira apropriada”, afirmou Barroso.
E referendou Lewandowski: “Vossa Excelência tem razão. E há um aspecto importante, ao meu ver: com a superação da Carta de 69, a maior parte do fundamento constitucional da Lei de Segurança Nacional caiu por terra. Portanto, hoje certamente ela não seria recepcionada pela nova Ordem Constitucional em sua maior parte”.
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* A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna será publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao atual decano, Celso de Mello, que, pela função e temperamento, funciona como a memória do tribunal. Quem assiste às sessões já se acostumou às suas referências que, não raro, vão até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

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JOTA

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