Opinião e Análise

Felipe Recondo

Leitão de Abreu era chefe do gabinete civil da Presidência da República, no governo Médici, quando fez uma visita ao presidente do Supremo, ministro Eloy da Rocha. O motivo era essencialmente a data: 3 de junho era o dia do aniversário do presidente do STF. Seria, portanto, uma visita de cortesia.
O tribunal havia julgado, na semana anterior, o habeas corpus 48.728, impetrado pela defesa do delegado Sérgio Paranhos Fleury, acusado de montar e operar o Esquadrão da Morte, um grupo de extermínio integrado por policiais que atuavam em São Paulo. Fleury comandava o Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) paulista na época dos fatos.
O procurador-geral da República, Xavier de Albuquerque, deu parecer favorável ao trancamento da investigação. O que revelava o interesse do governo militar em defender Fleury, na opinião de alguns dos ministros. Aliomar Baleeiro disse, depois do julgamento, que era “transparente interesse do governo pelo assassino”.
O habeas corpus foi denegado pela maioria dos ministros, sendo vencidos – porque concediam o HC de ofício – os ministros Antônio Neder, Amaral Santos e Thompson Flores.
Na sua visita a Eloy da Rocha, o julgamento foi um dos assuntos da conversa. E o presidente do Supremo depois relatou aos colegas o que ouviu de um dos homens mais importantes do governo Médici: se ele, Leitão de Abreu, fosse ministro do Supremo, também teria votado contra o habeas corpus.
Este episódio não poderia estar no mais novo volume da coleção Memória Jurisprudencial do STF por ser anterior à indicação de Leitão de Abreu para o tribunal – o que ocorreu apenas em maio de 1974.
O livro sobre Leitão de Abreu foi escrito por seu neto, Rodrigo Abreu, servidor do Supremo. E traz outro episódio relevante da história do tribunal - este com a participação do ministro Leitão de Abreu.
A soma desses dois casos são exemplo do que Rodrigo Abreu conclui ser a atuação do avô no Supremo. No Executivo, homem importante da ditadura militar de Médici. No STF, ao chegar ao tribunal, defendeu junto aos colegas um perfil mais ativista da Corte.
"(...)talvez a maior contribuição de João Leitão de Abreu na sua passagem pelo Supremo Tribunal Federal tenha sido a postura acentuadamente liberal que assumiu nos seus votos. Figura central no governo do General Médici, nomeado pelo General Geisel e reconhecidamente influente na estrutura do poder formatado naqueles tempos de cerceamento às liberdades do homem e da sociedade, revelou, pelos seus votos, ter sido, sempre, uma força de moderação aos impulsos autoritários doutros e um refúgio para os valores dignificantes da espécie humana:, escreveu Rodrigo Abreu.
O julgamento do caso Chico Pinto, deputado processado pela ditadura por ter feito discurso crítico à visita ao Brasil do ditador chileno, Augusto Pinochet, para a posse do general Ernesto Geisel na Presidência da República, em 1974.
“O que desejamos, senhor presidente, é apenas deixar registrado nos anais, o nosso protesto e a nossa repulsa pela presença indesejável dos vários Pinochets que o Brasil infelizmente está hospedando. Se aqui houvesse liberdade, o povo manifestaria o seu descontentamento e a sua ira santa, nas ruas, contra o opressor do povo chileno. Para que não lhe pareça, contudo, que no Brasil todos estão silenciosos e felizes com a sua presença, falo pelos que não podem falar, clamo e protesto por muitos que gostariam de reclamar e gritar nas ruas contra sua presença em nosso País”, disse o deputado da tribuna da Câmara.
O ministro da Justiça, Armando Falcão, representou ao então procurador-geral da República, Moreira Alves, para que fossem adotadas as medidas cabíveis – a abertura de um inquérito. E o PGR denunciou Chico Pinto em seguida: o deputado teria infringido o artigo 21 da Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei 898/1969), ao “ofender publicamente, por palavras ou escrito, Chefe de Governo de Nação estrangeira”. O crime tinha pena prevista de reclusão, de 2 a 6 anos.
O processo foi distribuído para a relatoria de Xavier de Albuquerque, que agora era ministro do STF. O tribunal marcou o julgamento da ação penal (AP 219) para o dia 10 de outubro de 1974. Mas no dia anterior, os ministros se reuniram em conselho para discutir reservadamente o caso. Xavier de Albuquerque disse aos colegas que tinha o voto ainda em aberto, mas sabia que as provas eram objetivas, pois o discurso era público. Não havia contestação. Mas o ministro considerava um exagero a pena prevista na lei de segurança, sem contar as consequências decorrentes da condenação, que seriam a perda do mandato e a inelegibilidade.
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Havia discordância entre os ministros. Conforme o relato de Aliomar Baleeiro, Thompson Flores, Antonio Neder, Rodrigues Alckmin e Luiz Gallotti consideravam que o mais adequado seria aplicar a Lei de Segurança Nacional. Mas a maioria do tribunal encontrou uma saída: desclassificar o crime, afastando a aplicação lei de segurança, e aplicando o Código Penal.
Chico Pinto acabou condenado a seis meses de detenção por ter ofendido chefe de governo estrangeiro. Não seria aplicada a LSN, porque a ofensa não colocou em risco a segurança do país. Como votou cada ministro não é possível saber, pois o julgamento foi secreto. Mas a imprensa na época e o serviço de inteligência do governo fizeram suas apurações.
O Jornal do Brasil, no dia 21 de outubro, publicou um placar – impreciso – do julgamento: “Foi a seguinte a votação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, no dia 10, quando condenaram o Sr. Francisco Pinto a seis meses de prisão: Votaram a favor do enquadramento na Lei de Segurança Nacional, que daria ao deputado uma pena mínima de dois anos de prisão, os ministros Cordeiro Guerra, Leitão de Abreu, Antonio Neder e Thompson Flores. Acompanharam o voto do relator Xavier de Albuquerque, desclassificando a crime para o Código Penal, com seis meses de pena, os ministros Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Oswaldo Trigueiro, Djaci Falcão e Rodrigues Alckmin”.
Leitão de Abreu enviou então uma carta ao jornalista Carlos Castello Branco com uma correção do que publicado pelo jornal. Castello a publicou-a na íntegra:
“O episódio judiciário de que resultou a condenação do ex-deputado Francisco Pinto motivou duas informações equivocadas envolvendo o ministro Leitão de Abreu: 1. Noticiou-se que ele se recusara a receber o manifesto de intelectuais em favor do acusado, quando tal não aconteceu; o manifesto foi recebido, em homenagem aos seus portadores e aos seus signatários, entre os quais se incluem alguns dos intelectuais mais prestigiosos do país. 2. O nome do ministro Leitão de Abreu foi incluído no rol dos que votaram a favor da classificação do crime atribuído ao ex-deputado como infração à Lei de Segurança Nacional, quando ele votou pelo enquadramento do réu como infrator do Código Penal, isto é, como sujeito à pena prevista para prática de crimes comuns”.
Rodrigo Abreu traz, no livro, uma informação adicional que reforça as palavras de Leitão de Abreu ao negar ter votado pela condenação de Chico Pinto pela Lei de Segurança Nacional, aderindo à solução salomônica.
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Aliomar Baleeiro, que também aplicou a pena mais branda, enviou a Leitão um exemplar de seu livro “O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido” no dia seguinte ao julgamento, com a dedicatória que revela que ambos concordaram com a conclusão e a gravidade do caso para o STF.
Prof. Leitão:
Ainda sob o impacto de seu voto de ontem, vai esta despretensiosa brochura de divulgação pedir gasalho em suas estantes. O velho STF esteve em um de seus grandes dias.
Seu amigo, A. Baleeiro
Brasília, 11.10.74.
De quem foi a saída salomônica para o caso Chico Pinto? Os autos não revelam. Mas as testemunhas do julgamento sabem exatamente de quem foi a ideia. Este, contudo, é tema para uma próxima coluna.
*A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna é publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao ex-ministro Celso de Mello, que atuou como a memória do tribunal durante seus anos como decano. Quem assistia às sessões se acostumou às suas referências que, não raro, iam até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

Dedicatória de Aliomar Baleeiro para Leitão de Abreu

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JOTA

Livro sobre atuação do ministro foi publicado pelo STF

ExCelso: Leitão de Abreu e um voto nunca dado, mas revelador de sua atuação

Livro sobre atuação do ministro foi publicado pelo STF