Opinião e Análise

Raphael Gomes

Rafael Machado

Em constante crescimento e evolução, o setor de energia elétrica vivenciou importantes mudanças neste início de década. Passos firmes no sentido da modernização e abertura total do mercado de comercialização, criação de um marco legal para a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/geracao-distribuida">geração distribuída</a>, início de uma regulamentação séria para a geração offshore, empilhamento de recordes quebrados de potência instalada de fontes eólica e solar... Enfim, não há como negar a resiliência desse setor, que cresceu mesmo durante a pandemia sanitária. Investimentos vêm sendo feitos em operações cada vez mais robustas e complexas, consagrando à energia uma prateleira cada vez mais relevante na vitrine para o capital estrangeiro e local, com possibilidade de retornos consistentes e estáveis no longo prazo.
O boom para solicitação de outorgas de empreendimentos de geração por fonte incentivada foi estimulado pela edição da <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.120-de-1-de-marco-de-2021-306116199">Lei 14.120/2021</a> e o fim do benefício do desconto tarifário na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e na Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST). Tendo em vista a retirada do subsídio, a lei estabeleceu regra de transição clara por meio da fixação de dois prazos importantes: 25 anos até o efetivo fim do desconto vigente na TUSD e TUST para os empreendimentos já outorgados, em respeito ao direito adquirido dos agentes de geração existentes; e o de um ano, no qual novos empreendedores pudessem submeter à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a> a solicitação de outorga para seus futuros empreendimentos. Esse segundo prazo ocasionou a “corrida” pelas outorgas.
Como não poderia ser diferente, todos os empreendedores que possuíam a expectativa de investir e construir usinas de energia no país aceleraram suas solicitações de outorgas para garantir o regime jurídico anterior – mais benéfico, o que acabou gerando um acúmulo de pedidos de novas outorgas para a Aneel. Nada mais simples de entender do que a infalível ação da basilar regra de microeconomia: os agentes econômicos reagem a incentivos.
A “pilha de papel” de novas outorgas, cuja potência total, se instalada, sequer poderia ser escoada no sistema ou mesmo consumida num horizonte decenal, cria para o sistema e para o regulador a necessidade de estabelecer critérios para a análise e processamento de tais pedidos, uma vez que não há demanda e nem transmissão para receber a energia de todas essas usinas – caso fossem ser construídas, claro.
A implantação de uma central geradora passa pelo gerenciamento de diversas variáveis complexas que envolvem desde questões de engenharia civil até comércio internacional e financiabilidade do projeto. Esse conjunto de fatores de risco faz com que sejam absolutamente comuns e naturais os pedidos de alteração do cronograma de implantação das usinas.
A principal motivação dos pedidos de alteração de cronograma é permitir ao agente alterar de modo correspondente a data de início da execução do Contrato de Uso do Sistema de Transmissão (CUST), assinado com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). É a partir dessa data que o agente fica obrigado a pagar o Encargo de Uso do Sistema de Transmissão (EUST), principal custo regulatório dos empreendimentos.
Historicamente, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a> sempre utilizou um procedimento meramente “documental” para julgar os pedidos de centrais geradoras que não estivessem contratadas em leilões públicos. Na prática, eram raríssimos os casos de indeferimento da alteração do cronograma. Entretanto, sobretudo desde o mês de março deste ano, a agência reguladora alterou diametralmente o entendimento consolidado e passou a exigir, como condição para o deferimento da alteração de cronograma, a demonstração de “excludente de responsabilidade”. Excludente é, em suma, evento cujos efeitos inevitáveis e ingerenciáveis ao agente causaram o atraso no cronograma originalmente outorgado.
Embora sejam, à percepção do mercado como um todo, plenamente questionáveis, não é a intenção deste texto discutir os méritos jurídicos levantados pela Aneel para a mudança de seu próprio entendimento. O fato que pretendemos destacar é o prejuízo concreto que a mudança repentina, carente de qualquer período de transição, causa ao ambiente de negócios do setor elétrico.
Essa mudança de entendimento por parte da Aneel não afetou somente os empreendedores que buscaram requerer outorga no âmbito da regra de transição da citada Lei 14.120/2021, mas até mesmo geradores com obras iniciadas e que sequer contribuíram para o acúmulo de pedidos de outorgas sob análise da Aneel.
Caso a posição atual da agência reguladora seja mantida, tal fato irá afetar a esfera de direitos dos antigos empreendedores e resultar em uma nova matriz de risco para o setor. Mais uma vez, vale lembrar que nada passa indiferente à precificação. Dentro do novo planejamento de CapEx, pode ser razoável considerar cenários de descasamento inicial de caixa, com saídas para pagamento de EUST sem as respectivas entradas por ainda não haver geração de energia.
No complexo e intricado tabuleiro de um mercado regulado, a mudança gera, por si, um custo abrupto que não estava originalmente incluído nas regras do jogo quando da tomada de decisão do agente por investir nos empreendimentos de geração. O momento atual do setor de energia é um exemplo claro de como uma mudança de entendimento (que sequer foi precedida de alteração regulatória/normativa) resulta no aumento da percepção de risco de se investir no país.
Enquanto isso, no dia em que este texto é escrito, o índice EMBI+ (Emerging Markets Bond Index Plus) Risco-Brasil, calculado pelo banco de investimentos J.P. Morgan desde 1990, marca 316 pontos. No ranking dos 18 países de economias emergentes, ocupamos o 17º lugar. O penúltimo lugar é nosso no ranking de competitividade divulgado pela Confederação Nacional da Indústria, referente ao biênio 2019-2020, que estuda o ambiente de negócios em um grupo de 18 países, bem semelhante ao do EMBI+. Dentre os fatores avaliados, no quesito segurança jurídica o Brasil está na 16ª posição.
O Risco-Brasil, e seu companheiro inseparável, o Custo-Brasil, são velhos conhecidos da economia brasileira. Dentro do recorte do setor elétrico brasileiro, um trauma recente e, ao que parece, quase superado em definitivo, foi a inadimplência sistêmica ligada à repactuação do risco hidrológico. A causa primeira? Alteração abrupta das regras do jogo no começo da década passada. Nesse contexto, os investidores de longo prazo e com robustez financeira e econômica sobrevivem a esse cenário, mas acabam precificando e repassando os custos de transação na cadeia produtiva, como sempre ocorre numa economia de mercado. Em resumo: no final do dia, a conta da insegurança jurídica é debitada no bolso do consumidor.

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JOTA

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