Opinião e Análise

Raphael Gomes

Bruno Crispim

Nos últimos meses, tivemos importante ajuste na jurisprudência administrativa da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a> sobre o reconhecimento de eventos de caso fortuito e força maior no setor de transmissão de energia elétrica, o que vinha causando instabilidade regulatória e risco de judicialização.
Muito se propaga sobre a necessidade de estabelecimento de um ambiente de negócios seguro e previsível no país, baseado na segurança jurídica e regulatória. Em projetos de infraestrutura (de capital intensivo e longo tempo de maturação) essa máxima é ainda mais importante, já que o investidor necessita ter a garantia de que o contrato firmado com o poder público será respeitado, com a manutenção da confiança nas instituições e a inalterabilidade das “regras do jogo” fundamental.
Da mesma forma, é indiscutível a evolução de nosso ambiente negocial com a internalização da Teoria da Regulação (do direito americano), na qual as agências reguladoras (autarquias especiais, pertencentes à administração pública indireta e sem relação hierárquica direta com os órgãos e entidades governamentais) tem o papel de regular e fiscalizar setores altamente técnicos da economia com independência em relação aos agentes políticos.
Todavia, a necessidade de decisões técnicas por parte das agências reguladoras — no caso que iremos tratar, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) — não afasta a necessidade de suas decisões estarem calcadas em conceitos jurídicos já consagrados.
Sem entrar em tecnicidades específicas do setor, as concessionárias de serviço público de transmissão são remuneradas por meio da RAP (Receita Anual Permitida). A qualidade do serviço (continuidade/confiabilidade) é aferida pela Aneel e pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), podendo impactar no recebimento de sua RAP.
Obviamente que nem toda indisponibilidade ocasiona redução da RAP, já que as normas legais, regulatórias e contratuais vigentes excetuam algumas hipóteses de indisponibilidade, consideradas como não imputáveis às concessionárias, como é o caso dos eventos de caso fortuito e força maior.
É o caso dos eventos de sabotagem, vandalismo, queda de balões e pipa, e tiros de arma de fogo em linhas de transmissão que, historicamente, eram reconhecidos pela Aneel como eventos que afastam o nexo causal, excluindo a responsabilidade das concessionárias.
Essa alocação de riscos é prevista nos contratos de concessão. Ocorre que a Aneel veio, ao longo dos anos, abrandando conceitos jurídicos já consagrados e considerando tais atos como “fortuito interno”.
A mudança de entendimento da Aneel acompanhou a alteração de sua regulação, que deixou de ter a menção expressa a “situações de sabotagem, terrorismo, calamidade pública, de emergência e por motivo de segurança de terceiros” (inicialmente o tema era tratado na Resolução Normativa nº 270/2007, que foi revogada pela <a href="https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/23165930/do1-2016-07-01-resolucao-normativa-n-729-de-28-de-junho-de-2016-23165750">Resolução Normativa nº 729/2016</a>). Todavia, a omissão das hipóteses não as desqualifica como excludentes de responsabilidade.
Ocorre que, a partir de sua nova regulação, a Aneel mudou abruptamente seu entendimento, passando a ser mais restritiva quanto ao reconhecimento de excludente de responsabilidade e, em seguida, passou a negar todos os pedidos sob a alegação de que se trataria de “risco do negócio” de transmissão.
Segundo a doutrina, caso fortuito ou de força maior é um fato extraordinário, externo à conduta do devedor, previsível ou não, cujas consequências sobre o adimplemento de determinada obrigação são inevitáveis. A definição legal consta no art. 393 do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm">Código Civil</a>, que define o caso fortuito ou de força maior como o “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
Ora, quem arriscaria dizer que eventos como sabotagem, vandalismo, queda de balões e pipa e tiros de arma de fogo em linhas de transmissão não seriam eventos insuperáveis e fatos externos ao comportamento das transmissoras?
A indisponibilidade da rede de transmissão nesses casos decorre da ação voluntária de terceiros, muitas vezes originários de atos criminosos, que estão absolutamente fora da esfera de controle e atuação das concessionárias.
O entendimento que vinha sendo empossado pela Aneel prescindia de fundamentos jurídicos e fáticos corretos.
O conceito de “fortuito interno” é próprio do Direito consumerista, trata-se de responsabilidade extracontratual em razão do risco da atividade, enquanto a responsabilidade tratada nesse caso é contratual, decorrente de contrato de concessão firmado com o poder concedente.
Trata-se da impossibilidade de incumbir às transmissoras o dever de fiscalizar dezenas de milhares de quilômetros de linhas de transmissão, fazendo as vezes do poder de polícia do Estado, que é indelegável.
O argumento da Aneel de que o reconhecimento da excludente de responsabilidade transfere o risco para o consumidor não condiz com a realidade. A materialização do dano (seja por vandalismo, furto etc.) causa prejuízos ao concessionário, que deve pagar pelo conserto e retomada do serviço. O que não se admite é que, além de tais perdas financeiras, ele ainda perca receita decorrente de ato que não deu causa, o qual, juridicamente, é caracterizado como excludente de responsabilidade.
A alocação de riscos tem como princípio transferir riscos para as partes que possuam melhores condições de gerenciá-los. Riscos que não podem ser controlados devem ser alocados preferencialmente ao poder concedente, já que lhes transferir ao particular aumentaria os custos para o consumidor.
A boa notícia é que, após diversas reuniões e apresentação de fundamentos sólidos, tanto pelas concessionárias quanto pela sua principal associação, nos últimos meses a Aneel retomou sua jurisprudência em relação aos atos de vandalismo, armas de fogo e balões não tripulados.
Ainda havia insegurança em relação aos atos de sabotagem e balões tripulados, nos quais parte da diretoria da Aneel alegava que seria de responsabilidade das concessionárias a identificação e regresso contra os responsáveis.
Entretanto, em sua reunião do dia 23 de agosto, a diretoria colegiada da Aneel enfrentou os casos de sabotagem e balões tripulados, tendo firmado entendimento de que tais atos também afastam o nexo causal e, portanto, excluem a responsabilidade das concessionárias de transmissão.
O entendimento da Aneel não só é satisfatório para as concessionárias como também para os consumidores no longo prazo, uma vez que a assunção de tal risco seria imputado no preço nos futuros leilões.
Esse caso demonstra a importância do equilíbrio nas decisões das agências reguladoras, não só em relação à matriz de risco a ser atribuída, mas também no correto balanceamento entre a tecnicidade das decisões e o não afastamento de conceitos jurídicos consolidados e que dão segurança jurídica para operadores e investidores em um setor tão importante da economia como o setor de energia elétrica.

Linha de transmissão

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JOTA

Decisões da Aneel precisam equilibrar tecnicidade e conceitos jurídicos consagrados

Os eventos de caso fortuito e/ou força maior no setor de energia elétrica

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