Opinião e Análise

Raphael Gomes

Rafael Machado

O tema deste primeiro artigo da coluna, em 2023, se apresentou a partir de uma manchete otimista estampada no <a href="https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2023/aneel-sinaliza-novo-recorde-para-expansao-da-geracao-em-2023">site da Aneel</a>, em 20 de janeiro: “Aneel sinaliza novo recorde para expansão da geração em 2023; expansão, se alcançada, será a maior já verificada no Brasil desde a fundação da Aneel em 1997”.
O crescimento projetado para a matriz de geração é da ordem de 10 gigawatts (GW), ou seja, quase uma nova hidrelétrica de Belo Monte (11 GW), a maior usina em território 100% brasileiro, e o suficiente para atender com sobra de 3,5 GW toda carga do Submercado Norte do Brasil.
Ainda segundo a notícia divulgada pela Aneel, usinas solares e eólicas para geração centralizada (ou seja, não destinadas a sistemas de geração distribuída) representam 90% da expansão esperada. A notícia reforça um sinal duplamente positivo para o setor: de um lado, ratifica a resiliência e rápida recuperação após o caos sanitário e econômico vivido entre os anos de 2020 e 2022 e, de outro, reforça o papel das fontes renováveis em nossa matriz.
Ainda que não seja explícito a uma primeira observação, esses sinais trazem consigo também a indicação do papel dos projetos voltados para a geração própria de energia na retomada do setor. Com o boom de outorgas emitidas pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a>, entre 2021 e 2022, autorizando particulares a explorar a geração de energia por conta e risco próprios – os chamados Produtores Independentes de Energia – a vinculação do projeto a um determinado consumidor tem sido essencial para viabilizar o financiamento e a implantação dessas centrais geradoras, evitando que os atos autorizativos se tornem “papéis podres”, sem perspectiva de materialização.
Em outras palavras, considerando a recorrência de chuvas e os consequentes baixos preços do PLD (Preço de Liquidação de Diferenças, o preço praticado para a liquidação das operações do mercado de curto prazo e balizador das operações de compra e venda de energia no mercado), a viabilidade financeira da construção de usinas fica comprometida. Surge, então, a necessidade de vinculação desses projetos a consumidores com ratings positivos e que gerem recebíveis de longo prazo, possibilitando a montagem de estruturas de financiamento para a construção das plantas de geração.
Mesmo no contexto de menor complexidade regulatória da geração distribuída, a destinação de uma usina a um consumidor capitaneou a popularização da GD e democratização do acesso a uma energia mais barata para os pequenos consumidores.
Seja na geração centralizada, via autoprodução, seja na distribuída, é muito mais fácil tirar um projeto do papel quando há um compromisso na ponta da venda indicando para onde irá, contratualmente, a energia gerada e, mais importante, de onde virá a receita para remunerar o investimento e prover os lucros do empreendedor e do investidor. Encurtando a narrativa, a atratividade desses projetos e a expansão da oferta de energia no Brasil têm andado de mãos dadas.
Esta realidade harmoniza com as intenções legislativas envolvidas na criação da figura da autoprodução por equiparação, por meio do art. 26 da Lei 11.488/2007. A estrutura regulatória permite que grandes consumidores usufruam dos benefícios setoriais da autoprodução por meio do investimento e participação societária em Sociedade de Propósito Específico voltada à geração de energia, na parcela da energia gerada que seja revertida para consumo próprio. Na prática, a figura viabilizou empreendimentos conjuntos e economicamente mais eficientes para gerador e consumidor, erguendo grandes usinas na última década.
Mas a figura do autoprodutor equiparado possui algumas limitações. Dentre as principais, a primeira relaciona-se ao fato de que o consumidor deve tornar-se sócio da empresa outorgada de energia elétrica, o que, na maior parte das vezes, está fora de seu core business, sendo uma operação cuja aprovação é delicada para muitos grupos empresariais. Uma segunda barreira é física. O a regulamentação da Lei 11.488 estabelece que, para ser um autoprodutor equiparado, o consumidor deve possuir, em cada uma de suas unidades consumidoras, uma demanda igual ou superior a 3 MW.
Trata-se de uma demanda de energia substancial, que acaba por afastar grandes consumidores com cargas pulverizadas, como redes de supermercados, farmácias, varejos, entre outros.
Com a barreira regulatória e uma certa saturação do mercado consumidor potencial de um projeto de equiparação (a significativa maioria dos grandes consumidores já está engajada em projetos dessa natureza), é a figura do consórcio que centra as atenções e expectativas para capitanear a expansão do parque gerador e atingir o recorde projetado pela Aneel.
No campo da geração centralizada, o consórcio viabiliza a estruturação de projetos de autoprodução sem a exigência de que cada unidade destinatária da energia tenha uma carga mínima pré-definida. Assim, grandes grupos econômicos com diversas filiais, que não atendem, sozinhas, o requisito e 3 MW, podem acessar a otimização econômica da autoprodução. Esse movimento já é visualizado no mercado, puxado por redes de unidades de saúde, empresas de saneamento, grupos de telecomunicação, concessionárias de veículos e bancos tradicionais, por exemplo.
A reunião de empresas em consórcio para contratação com o poder concedente é admitida há muito no ordenamento brasileiro. Mesmo nas concessões de serviço público que vigoram sob o regime da Lei 8.987/1995, há previsão do consórcio. A figura foi mantida no então novo diploma inaugurado pela Lei 9.074/1996 e assim permanece até hoje.
Dentro do setor elétrico, quando a autorização para geração de energia é outorgada a um grupo de empresas reunidas em consórcio, cada consorciada obtém direito a uma parcela da energia gerada pelo empreendimento na exata proporção de sua participação no consórcio. A partir desse regime autorizativo, a energia é automaticamente contabilizada em favor de cada consorciada no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), sem necessidade de celebração de um contrato de compra e venda de energia, o Power Purchase Agreement (PPA) no jargão de mercado.
Do ponto de vista do gerador, a figura do consórcio oferece um novo horizonte de mercado em potencial, ainda não saturado como o da autoprodução por equiparação. Esse mercado ainda pouco explorado pode se mostrar um verdadeiro propulsor da continuidade da expansão da oferta, sobretudo porque há potenciais contratantes com excelente rating a oferecer para viabilizar o financiamento dos parques junto às instituições financeiras.
Na ponta do investimento necessário, os grandes players do mercado financeiro já têm amadurecido a relação com o instituto, e é cada vez maior o número de propostas de projetos desse tipo que rodam no mercado. Apesar de não contar com um PPA, a estrutura de consórcio pode ser tranquilamente desenhada de modo a garantir o fluxo de pagamentos e os mecanismos de proteção e garantia necessários ao desembolso do capex. Do ponto de vista jurídico, não há empecilhos que torne os contratos envolvidos na estrutura menos sólidos que um PPA.
O viés jurídico, aliás, traz consigo também as vantagens de maior flexibilidade contratual para regrar a relação entre as partes. Afinal, a Lei 6.404/1976, a <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/lei-6404-76-lei-das-sa-entenda-principais-regulacoes-22032022">Lei das S.A.</a>, deixa ampla margem à liberdade de contratar quando regra sucintamente a figura do consórcio de empresas em apenas dois artigos contra as dezenas voltadas às relações societárias. A inexistência de relação societária inclui ainda no leque de oportunidades uma maior possibilidade de atender diferentes grupos econômicos por meio do mesmo empreendimento de geração.
Por fim, a democratização do acesso a uma energia limpa e economicamente mais eficiente, que por meio do consórcio deixa de ser exclusividade dos gigantes consumidores industriais, é efeito igualmente digno de nota. A diminuição no custo dessa energia para o setor comercial pode ser um gatilho positivo para aquecimento da economia no cenário macroeconômico com obstáculos a serem superados.
Toda essa teia de causas e efeitos faz do consórcio voltado à geração própria a “bola da vez” na expansão do parque gerador brasileiro, sobretudo o renovável. Não espantaria, portanto, se dos 10 GW de expansão projetada, uma parcela bem substancial venha por meio de consórcios.

luz, energia elétrica

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JOTA

Projetos são a 'bola da vez' na expansão do parque gerador brasileiro, sobretudo o renovável

Os consórcios de geração própria e a democratização do mercado de energia

Consórcios de geração própria são a 'bola da vez' na expansão do parque gerador brasileiro, sobretudo o renovável