Opinião e Análise

Raphael Gomes

Amanda Malicia

Enquanto os olhos do mundo estão voltados ao Qatar, que sedia neste ano a Copa do Mundo, o país se torna pioneiro em realizar um torneio neutro em emissões de carbono. Em meio aos imensos estádios lotados, espetáculos e grandes partidas, nos questionamos: como é possível um evento dessa magnitude ser neutro em emissões de carbono com tanta demanda? Para responder essa pergunta, é importante entendermos o que são os créditos de carbono, como funcionam e como são comercializados.
Em 1997, devido às emissões excessivas de gases do efeito estufa (GEEs), alguns países se uniram para assinar o Protocolo de Kyoto, que foi um acordo internacional realizado com a finalidade de diminuir a concentração de gases do efeito estufa na atmosfera. Nesse acordo, ficou estabelecido que países com uma economia mais desenvolvida deveriam reduzir a quantidade de CO2 emitida na atmosfera, posto que os efeitos negativos da alta concentração deste gás não se restringem somente ao local onde foram emitidos, possuindo escala global.
Em outras palavras, esses países, listados no Anexo I do Protocolo de Kyoto, passaram a ter a obrigatoriedade de diminuir a emissão de carbono a certo nível preestabelecido. Para isso, a fim de incentivar esta redução, foi criado o crédito de carbono, isto é, para cada tonelada de carbono não emitida, é atribuído um crédito de carbono, sendo que o Protocolo de Kyoto estabelece três mecanismos que regulam o destino destes créditos:
<ul>
<li>a Implementação Conjunta, que é uma forma dos países incluídos no Anexo I de transferir ou adquirir de qualquer outro país unidades de emissões resultantes de projetos visando a redução das emissões de poluentes;</li>
<li>o Comércio de Emissões, que possibilita que os países do Anexo I comprem ou vendam créditos de outros também do Anexo I, podendo atingir a meta mediante a compra de créditos de nações que superaram as suas;</li>
<li>e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que permite que os países de fora do Anexo I vendam reduções certificadas de emissão (RCEs) aos países do Anexo I, a fim de colaborar com a conquista de suas metas.</li>
</ul>
Além destes três mecanismos, há outros dois que não são regulados pelo Protocolo de Kyoto: o Mercado Voluntário, em que instituições se comprometem a reduzir a emissão de poluentes, de tal maneira que os créditos de podem ser gerados em qualquer lugar do mundo e são auditados por uma entidade independente do sistema das Nações Unidas; e a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD+), a qual consiste em aprimorar técnicas que diminuam a concentração de GEEs por meio da proteção de florestas.
Já o Acordo de Paris, assinado em 2016, 11 anos após a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, reafirmou os compromissos dos países em diminuir a emissão de GEEs e, diferentemente do Protocolo de Kyoto (que impunha obrigatoriedade apenas aos países do Anexo I, considerados mais desenvolvidos), trouxe metas diferentes a todas as nações de forma mais rigorosa.
Atualmente, com grande influência dos acordos citados anteriormente e diante dos avanços em relação aos estudos de impactos ambientais e mudanças climáticas, o sistema financeiro passou por uma mudança de enfoque, de forma que o ESG (environmental, social, and corporate governance) toma um lugar de destaque, passando a ser considerado pelo mercado financeiro para análise de risco e retorno de investimentos, vez que funciona como espécie de indicador de perenidade do negócio e longevidade de lucro de uma corporação.
Dessa forma, podemos afirmar que no cenário atual, o mecanismo mais utilizado é o Mercado Voluntário, onde não existe de fato a obrigatoriedade, mas existe a procura pelo comprometimento pela redução e/ou compensação de gases emitidos.
Além dos citados mecanismos, também existem os créditos de carbono no International REC Standard (I-REC), que é um sistema que comercializa certificados de energia renovável. Mas é importante compreender a forma pela qual se dá a expedição destes certificados, dada a relevância que possui para a confirmação do desenvolvimento de fontes de energia limpas e renováveis.
Toda energia gerada, independentemente de ser proveniente de energia limpa ou não, é injetada no Sistema Interligado Nacional (SIN). Sendo assim, mesmo que uma empresa produza energia limpa, não tem como comprovar que esta seja de fato de uma fonte renovável após ser inserida no SIN, uma vez que não é possível “rastrear” a energia inserida. Por conta disso, surgiu a demanda pelos I-RECs.
Os Certificados de Energia Renovável (RECs, em inglês) são de extrema importância para atestar que quem solicitou sua emissão utilizou fontes de energia que colaboram com a redução de GEEs na atmosfera. Dado isso, levando em consideração que o crédito de carbono é uma forma de diminuir a quantidade de gás carbônico na atmosfera, toda energia advinda deste mercado possibilita a expedição de um Certificado de Energia Renovável seguindo os padrões I-REC, o qual, no Brasil, é emitido pelo Instituto Totum.
Dentre as etapas de criação de um certificado no padrão I-REC, o gerador abre uma conta comercial para manter, negociar ou aposentar os certificados I-REC emitidos. Além disso, a negociação de I-REC vem se mostrando um mercado com negociações relevantes e grandes oportunidades no Brasil e no mundo. De acordo com a consultoria McKinsey, em 2021, o mercado global de crédito de carbono gerou US$ 1 bilhão.
Já no Brasil, a movimentação foi de US$ 25 milhões, no mesmo período, sendo que aqui aproximadamente 83% da oferta interna de energia de 2022 foi proveniente de energia renovável (hidráulica, biomassa, eólica e solar), enquanto no restante do mundo a média foi de 27%. Dentro deste cenário é possível imaginar o quanto isso pode movimentar o mercado de I-REC e quanto capital está deixando de ser acessado por geradores de energia renovável que ainda não atuam nesse mercado.
Nesse sentido, pensando nas oportunidades de negócios oriundas dos I-RECs, como nosso país atualmente está lidando com o assunto?
Podemos dizer que em termos de regulação, o Brasil está ligeiramente atrasado, isto é, ainda não existe uma legislação específica, sendo que alguns projetos de lei que tratam do assunto seguem parados em sua tramitação. Em maio deste ano, o <a href="https://in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.075-de-19-de-maio-de-2022-401425370">Decreto 11.075/2022</a> foi publicado estabelecendo algumas diretrizes para o assunto, restando ainda algumas questões a serem melhor detalhadas. A dependência de planos ainda abertos, as metas a serem definidas, os padrões a serem consolidados, dentre outros, ainda geram inquietação no mercado.
De todo modo, não se pode negar que o surgimento da norma reflete avanço em relação ao tema, preenchendo, ainda que não totalmente, um hiato cuja superação era muito aguardada. Em outros países já existem métricas e sistemáticas para calcular quantos créditos de carbono determinado projeto pode gerar. Entretanto, como ainda não existe no Brasil um mercado regulado que determine as exigências e padrões para emissão de gases de efeito estufa e geração dos créditos de carbono, as auditorias são realizadas por empresas externas.
Além disso, mesmo com uma legislação ainda em fase de progresso, considerando os números expostos e o crescimento e relevância que o crédito de carbono está tendo, seja pela sua eficiência quanto pela preservação do meio ambiente, o BNDES, como forma de apoio ao desenvolvimento do mercado voluntário, divulgou em novembro um projeto para a aquisição de créditos de carbono regulares.
O programa do BNDES tem o escopo de comercializar instrumentos de compensação de carbono, por meio de projetos que visem a redução de emissão ou então a captura de carbono, como é feita, por exemplo, nos projetos REDD+. Neste projeto, o BNDES escolherá propostas por meio de Chamadas Públicas, seguindo a transação espontânea de créditos bilateral ou unilateral existente no mercado voluntário.
Após a contextualização do tema e considerando a pressão que recai sobre o mundo corporativo hoje em dia para que sejam observados critérios ESG, fica mais fácil entendermos a motivação do Qatar em concretizar toda infraestrutura necessária para abarcar um evento dessa magnitude realizando o torneio de forma neutra em emissões de carbono. Para isso, por meio do mercado de crédito de carbono, o Qatar elaborou o projeto Global Carbon Council, que inclusive obteve a colaboração de 38 projetos brasileiros no projeto para a compensação das emissões de carbono.
Em que pese a causa ambiental ter sido bem endereçada nesse Mundial, é importante observar que ela é apenas um dos pilares da diretriz ESG, de modo que esse artigo não analisa, obviamente, a observância dos demais aspectos.
De toda forma, seja pelos aspectos ambientais, seja pela questão financeira que envolve transações de grande vulto e que podem alavancar não só companhias, mas também melhorar as contas do próprio país, é essencial que a regulação dos créditos de carbono no Brasil seja concluída por meio de uma legislação consistente capaz de tratar um assunto tão complexo e técnico, de modo que os projetos e o desenvolvimento de tal mercado caminhem juntamente com outros países acompanhando a evolução do tema.

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JOTA

Em termos de regulação, o Brasil está ligeiramente atrasado

O que a Copa no Qatar pode nos ensinar sobre o mercado de créditos de carbono?

Brasil está atrasado em regulação, com projetos de lei que tratam do mercado de créditos de carbono parados no Congresso