Opinião e Análise

Raphael Gomes

A pior decisão de uma <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agencias-reguladoras">agência reguladora</a> ainda será melhor do que a melhor decisão política sobre assuntos eminentemente técnicos de setores regulados. Essa é a certeza que tenho, após 25 anos de atuação no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/setor-eletrico">setor elétrico</a> – e não tenho dúvida de que essa é a crença da maioria dos profissionais que atuam em setores nos quais a tecnicidade exige que suas normas sejam elaboradas e seus conflitos sejam dirimidos por entidades que entendam a fundo suas especificidades.
A Teoria da Regulação, um dos pilares do Direito Administrativo moderno, foi desenvolvida para justificar a necessidade de criação e manutenção de agências reguladoras independentes, capazes de exercer funções de controle e supervisão em setores estratégicos da economia. Sua origem pode ser rastreada até o modelo norte-americano das Regulatory Agencies, surgido no início do século 20 como resposta institucional às complexidades econômicas e tecnológicas que exigiam uma regulação mais especializada e menos suscetível às pressões políticas.
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No contexto dos Estados Unidos, as agências reguladoras foram concebidas para operar de maneira autônoma em relação aos Poderes Executivo e Legislativo, com a missão de garantir que as políticas públicas fossem implementadas de forma contínua e consistente, independentemente das mudanças políticas e das flutuações nos ciclos eleitorais. Essa independência é essencial para assegurar que as decisões regulatórias sejam baseadas em critérios técnicos, minimizando o risco de captura regulatória e garantindo a imparcialidade necessária para a promoção do bem-estar público.
No Brasil, a inspiração no modelo norte-americano levou à criação de agências reguladoras como a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a>, que desempenham um papel crucial na gestão e supervisão de setores econômicos de grande impacto social, como o setor elétrico. A autonomia e independência dessas agências são vistas como garantias fundamentais para a estabilidade regulatória, fator indispensável para a atração de investimentos e o desenvolvimento sustentável do país. Sem essa autonomia, as agências reguladoras poderiam se tornar vulneráveis às influências políticas de curto prazo, comprometendo a qualidade e a eficácia de suas decisões.
O modelo regulatório brasileiro, ao adotar esses princípios, trouxe consigo uma série de benefícios tangíveis, incluindo a profissionalização do processo regulatório, a criação de mecanismos de transparência e accountability, e o fortalecimento da confiança dos agentes econômicos nas instituições regulatórias.
A independência das agências, especialmente em setores como o de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/energia-eletrica">energia elétrica</a>, é vista como um elemento central para a manutenção da segurança jurídica e da previsibilidade regulatória, ambos cruciais para a realização de investimentos de longo prazo, que são típicos do setor de infraestrutura.
Entretanto, ultimamente, a autonomia das agências reguladoras brasileiras vem sendo ameaçada por atos do Poder Executivo. Um exemplo recente dessa tendência é o Ofício 368/2024-GM-MME, que representa uma interferência direta na Aneel, questionando sua autonomia e ameaçando sua capacidade de atuar de maneira independente. Este ofício, ao expressar a intenção de intervenção, coloca em risco a estabilidade regulatória que é vital para o setor elétrico, gerando incertezas que podem desestimular investimentos e comprometer a segurança energética do país.
Além disso, o <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/d12150.htm">Decreto 12.150</a>, que institui o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, representa uma ameaça ainda mais profunda e concreta à autonomia das agências reguladoras. Embora o decreto seja apresentado sob a justificativa de fortalecer a capacidade institucional das agências, na prática impõe uma série de diretrizes e objetivos que acabam por representar uma restrição à liberdade de atuação dessas entidades. Ao submeter as agências a diretrizes definidas pelo Executivo, o decreto mina a independência que é a pedra angular do modelo regulatório brasileiro.
Particularmente preocupante é a possibilidade jurídica que o decreto inaugura para a utilização do instrumento denominado Recurso Hierárquico Impróprio (RHI), contra as decisões das agências reguladoras. Considerando que não há relação hierárquica entre as agências reguladoras (autárquicas especiais, que compõem a administração pública indireta) e os respectivos ministérios (órgãos da administração pública direta), a publicação desse decreto, com diretrizes regulamentadas pelo chefe do Poder Executivo, acaba por abrir espaço para a utilização do RHI.
Este mecanismo compromete a autonomia decisória das agências, podendo criar incentivos para omissões e/ou decisões não lastreadas unicamente em elementos técnicos. A introdução desse recurso representa um retrocesso no arcabouço regulatório brasileiro, que ao longo das últimas décadas, procurou assegurar que as decisões regulatórias fossem baseadas em critérios técnicos.
Não bastasse o claro desalinhamento material entre o arcabouço constitucional e legal, o citado decreto ainda padece de mais uma ilegalidade: é fundamentado na alínea “a” do inciso VI do art. 84 da Constituição Federal.
Em primeiro lugar, o citado dispositivo constitucional fala em “organização e funcionamento da administração pública federal”. Todavia, o Decreto 12.150 regulamenta a criação da Estratégia Nacional de Melhoria Regulatória que, na verdade, não trata da organização e/ou funcionamento das agências, mas sim de diretrizes e objetivos que interferem em seu processo decisório.
Em segundo lugar, o decreto ignora a existência da Lei 13.848/2019, conhecida como Lei das Agências Reguladoras, que, em seu art. 3º, assevera que “A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira”.
Esta proteção é essencial para que as agências possam cumprir sua missão de regular de forma justa e eficiente os setores sob sua jurisdição. A Aneel, instituída pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9427compilada.htm">Lei 9.427/1996</a>, é um exemplo de como essa autonomia é fundamental para o setor elétrico, onde a previsibilidade regulatória é crucial para a realização de investimentos vultosos e de longo prazo.
A tentativa de se impor limites à autonomia das agências por meio do Decreto 12.150 e do Ofício 368/2024-GM-MME, quando contrapostos com os princípios da Teoria da Regulação, revela uma clara contradição com os fundamentos que sustentam a regulação independente. Esses atos representam uma ameaça direta à estabilidade regulatória, que é vital para o desenvolvimento econômico e para a proteção dos direitos dos consumidores. Ao se permitir que decisões técnicas sejam revistas por instâncias políticas, abre-se a porta para a politização da regulação, algo que a Teoria da Regulação sempre buscou evitar.
Para quem atua há mais tempo em setores regulados, o Decreto 12.150 pareceu um indesejado “deja vú”, fazendo voltar a lembrança do Parecer Normativo da AGU AC-51, de 2006, que, mesmo após o Supremo Tribunal Federal consolidar entendimento acerca da autonomia das agências reguladoras, advogou pela possibilidade de interposição de recurso hierárquico impróprio contra atos das agências. Esse parecer, ao se alinhar com as recentes ações do Executivo, reforça a necessidade urgente de um debate profundo e sério sobre o futuro do modelo regulatório no Brasil.
Em resumo, o enfraquecimento da autonomia das agências reguladoras não apenas compromete a qualidade da regulação, mas também ameaça a própria segurança jurídica e a confiança dos agentes econômicos no sistema regulatório brasileiro.
Se o objetivo é assegurar a continuidade e o aperfeiçoamento do sistema regulatório, é imperativo que a autonomia das agências seja não apenas preservada, mas fortalecida. Caso contrário, corremos o risco de transformar nossas agências reguladoras em meros instrumentos de conveniência política, esvaziando-as de sua função principal e comprometendo o desenvolvimento econômico e social do país. A manutenção da independência das agências é essencial para garantir que o Brasil continue a atrair investimentos, promover o desenvolvimento econômico e assegurar que os interesses públicos sejam protegidos de forma justa e equitativa.

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JOTA

Ofício do MME e recente decreto do Executivo representam interferência direta na Aneel

Decreto 12.150: autonomia das agências reguladoras em risco?

Ofício do MME e recente decreto do Executivo são interferência direta na Aneel e colocam em risco autonomia de agências reguladoras