Opinião e Análise

Raphael Gomes

Carolina Delamare

Em textos passados desta coluna, já falamos da tão esperada abertura do mercado livre de energia, denominado de ACL (Ambiente de Contratação Livre). Disponibilizar ao consumidor comum, de baixa tensão e demanda, a escolha de com quem contratará diretamente a energia para abastecer sua unidade consumidora será um marco no processo de modernização e liberalização do setor, a concretização da liberdade de consumo no clássico sentido do “Free to Choose” a que Milton Friedman se referiu há mais de 30 anos.
Já do lado da geração, a abertura pode significar, a depender da redação final do texto legal que lhe encampe, mais um importante incentivo para investimentos em usinas voltadas ao ACL, em vista da ampliação do mercado consumidor. Na prática, e abstraídos alguns detalhamentos técnicos em benefício da clareza de entendimento, dizer que uma usina é voltada ao ACL significa que a usina não comprometeu – total ou parcialmente – sua energia com leilões públicos, realizados pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aneel">Aneel</a>. Dito de outro modo, a viabilidade financeira de uma usina no ACL depende da negociação e celebração de contratos de venda de energia, livremente negociados com consumidores.
Não há abertura, modernização ou liberalização do mercado de energia sem um cenário favorável à sedimentação dos investimentos de geração no ACL. Da mesma forma, a efetividade e velocidade desse processo está intimamente ligada à emissão de sinais regulatórios claros e adequados. Em outras palavras, os diversos e distintos atos do regulador, desde a edição de normas até a fiscalização da conduta dos agentes e a decisão de casos concretos, devem ser como integrantes de um coral: várias vozes entonando um único som com sentido e harmonia, apto a servir de farol para as tomadas de decisão dos agentes econômicos.
Dado o sempre longo e doloroso processo de transformação, no “coral regulatório” do setor elétrico brasileiro, os integrantes por vezes parecem cantar partituras diferentes. Se de um lado o investimento no ACL é promovido e até utilizado como chancela da política regulatória, com previsão de ampliação da potência instalada em mais de 13 GW até o final de 2023 (contra os menos de 5 GW do ACR)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, de outro, ainda há decisões que acabam por aprofundar a dicotomia entre ACL e ACR (Ambiente de Contratação Regulada) e são contraintuitivas ao aparente incentivo que se deve dar ao Mercado Livre. A direcionamento dado pela Aneel para o problema do reconhecimento das situações de restrição de geração (constrained-off) de usinas eólicas e fotovoltaicas é um bom exemplo.
As situações de constrained-off acontecem quando uma usina está disponível e programada para gerar energia, mas é impedida de fazê-lo por impedimentos técnicos (relacionados ao sistema e não à usina) ou comando do Operador do Sistema Elétrico (ONS). O ONS atua sob fiscalização da Aneel e é o braço do agente regulador responsável por comandar centralizadamente a geração simultânea de energia da esmagadora maioria das usinas em território nacional. Nas situações de constrained-off, portanto, a energia não é gerada em razão de evento alheio ao agente e podem acontecer, sem nenhuma distinção, tanto em relação às usinas contratadas no ACL quanto às contratadas no ACR.
A restrição de geração, totalmente fora do controle do agente, impacta diretamente seus compromissos contratuais e resultados financeiros. O constrained-off é um risco imposto ao gerador sem possibilidade de contingenciamento, e a sua consequência de primeira ordem é alterar negativamente a equação econômico-financeira da atividade. Quando uma situação de constrained-off ocorre, teoricamente o gerador teria direito a ser ressarcido. Todavia, a regulação estabelece determinados critérios e situações nas quais o constrained-off pode ou não ser objeto de ressarcimento ao gerador.
Nesse sentido, em maio deste ano, a Aneel afastou o reconhecimento de situações de constrained-off de usinas fotovoltaicas para eventos ocorridos no ACL<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, seguindo o mesmo racional já estabelecido quando da regulação do tema para usinas eólicas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Com esse posicionamento do regulador, tanto para as usinas eólicas quanto para as usinas fotovoltaicas, o reconhecimento de situações de constrained-off pela agência será possível somente para as restrições ocorridas com relação às usinas contratadas no ACR.
Considerando que o ressarcimento por constrained-off objetiva mitigar o risco de restrição de geração, igualmente imprevisível e inevitável independentemente de a usina estar no ACL ou no ACR, a solução dada ao problema pelo regulador traz controvérsias tanto do ponto de vista jurídico, quanto econômico.
A situação cria situação aparentemente anti-isonômica, uma vez que o preceito jurídico que justifica o reconhecimento de constrained-off, de que ninguém pode ser responsabilizado por aquilo que não deu causa, independe do ambiente de contratação. A alegação de que o gerador, no ACL, possui ingerência em relação à venda de sua energia, em contraposição ao gerador no ACR, não nos parece ser a melhor alocação de riscos para o caso.
Isso porque esse entendimento levaria à conclusão de que o gerador no ACL deve deixar grande parcela de sua usina descontratada, para se “proteger” quanto a um risco futuro e incerto de restrição de transmissão, a qual não deu causa. Obviamente tal fato vai elevar o risco e o “preço” da energia.
Embora a ninguém seja dado negar os avanços proporcionados pela Aneel no que tange à estruturação e organização do setor elétrico, especialmente quanto à abertura do mercado livre e outros meios de democratização e liberalização do setor, a “solução” encontrada para as situações de constrained-off acaba por privilegiar usinas contratadas no ACR em comparação ao ACL. O resumo da ópera é a interrogação: afinal, no setor elétrico todos os ambientes de contratação são iguais ou alguns são mais iguais que outros?<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Dados do Ralie - Acompanhamento da Expansão da Geração, disponível no site da ANEEL: <a href="https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/relatorios-e-indicadores/geracao">https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/relatorios-e-indicadores/geracao</a>. Acesso em 23.06.2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Despacho ANEEL nº 1.407/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Resolução Normativa ANEEL nº 927/2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros" é a adulteração do sétimo mandamento do Animalismo, no romance satírico "A Revolução dos Bichos", de George Orwell.

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JOTA

Uma análise sobre o reconhecimento de eventos de restrição de geração de energia pela Aneel

A clareza no sinal regulatório do setor elétrico

Uma análise sobre o reconhecimento de eventos de restrição de geração de energia pela Aneel no setor elétrico