Opinião e Análise

Ludmilla Rocha Cunha Ribeiro

A nova ordem mundial – inclusive baseada na economia informacional – colocou o uso da tecnologia e a utilização de dados em posição central, fazendo com que os dados em si, sua estruturação, tratamento, análise e utilização passassem a ser monetizados. A revista inglesa The Economist, na edição de 6 de maio de 2017, afirmou em sua capa que “The world’s most valuable resource is no longer oil, but data (o recurso mais valioso do mundo não é mais o petróleo, são os dados)".
O tratamento de dados não é mais novidade e não se restringe às gigantes do setor, como Alphabet, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft. Seu uso é cada vez mais frequente pelo próprio Estado, inclusive para atender aos princípios da publicidade e da transparência para obtenção, detenção e utilização de dados coletados em suas operações. No entanto, não se pode descurar que o crescente número de dados minerados, bem como sua aglutinação em bases estruturadas e seu próprio manejo, pode, não havendo uma regulação adequada, representar uma ameaça à privacidade dos cidadãos. 
Não é de hoje que o cidadão tem seus dados colhidos em suas atividades de consumo de produtos e serviços privados e públicos. É rotineiro o fornecimento de informações de identificação e a autenticação do cidadão não apenas nas relações on-line, mas, também, em uma primeira fase, em estabelecimentos físicos. Essa extração de dados individuais cria verdadeiros dublês dos cidadãos, os chamados data double, capazes de remontar virtualmente cada indivíduo, permitindo que os gestores de dados acabem sabendo mais de uma pessoa do que ela própria. 
O Brasil, para fazer frente a essas questões, aprovou em agosto de 2018 a Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais</a> (LGPD), que se apresentou como um framework para a salvaguarda de dados. Entretanto, a legislação apresenta muitas lacunas e algumas antinomias como veremos mais adiante. Importa que o uso de dados é um ferramental indispensável para um governo transparente, embora necessite de limites para que não haja violação dos direitos dos cidadãos. 
Norberto Bobbio apresenta a democracia como o regime do poder visível, sendo o caráter público a regra e o segredo, a exceção. Ressalta-se que, por ser o regime democrático representativo, ele não haveria como representar sem se tornar visível, além de estabelecer um paralelo da visibilidade com a proximidade. Isso porque o que não pode ser público é injusto, pois, caso fosse público, a reação que causaria impediria sua realização. Exemplo: a corrupção, que é sempre realizada de forma secreta. Os regimes autocráticos são ocultos, invisíveis. Toda forma de dominação é oculta e se esconde através do segredo e do disfarce. Assim, o poder é mais eficaz quanto mais se sabe, vê e conhece sem se deixar ver.[1]
A transparência está presente de forma direta e indireta em várias leis brasileiras, a começar pela Constituição Federal de 1988, que dedicou alguns de seus dispositivos à transparência e/ou publicidade da Administração Pública, como, por exemplo, na possibilidade de impetração de um habeas data (art. 5º, LXXII), ou no caput do art. 37, ao elencar a publicidade como um dos princípios da Administração Pública. 
Há, ainda, o direito ao acesso à informação, previsto no art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal de 1988, regulado pela Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011.[2] Esta lei, conhecida como Lei de Acesso à Informação, prevê a publicidade como regra geral e o sigilo como exceção (art. 3º, I). A norma trouxe outras diretrizes, tais como divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações (II); utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação (III); fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na Administração Pública (IV); e desenvolvimento do controle social da Administração Pública (V). A atuação da Administração, prevista no art. 8º, dentre outros, exige a divulgação pelos órgãos e pelas entidades públicas, independentemente de requerimentos, de um mínimo de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.[3]
A lei revelou a preocupação do legislador com as informações pessoais que estejam sob custódia de entes públicos, disciplinando de forma mais rígida o acesso a essas informações que, supostamente, não são de interesse geral. As informações pessoais relativas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem terão seu acesso restrito, pelo prazo máximo de 100 anos, a agentes públicos autorizados e à própria pessoa a qual se refiram (art. 31, §1º, I). Ademais, a divulgação e/ou acesso de terceiros a tais informações é apenas admitida diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem, salvo em casos especificados pela lei (art. 31, §1º, II).[4]
Apesar de a Constituição Federal de 1988 não utilizar a expressão “privacidade”, declara serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Doutrina e jurisprudência arrolam inúmeras definições para privacidade, dentre elas, a capacidade de o indivíduo controlar a circulação de informações a seu respeito.
Um dos aspectos mais relevantes para a garantia do direito à privacidade é a proteção dos dados pessoais. É sabido que a informação, independentemente de sua espécie, é um bem jurídico imaterial de valor extraordinário, e que os Estados, as associações, as empresas são tão ou mais poderosos conforme disponham de grandes volumes de informação.[5]
Não se pode descurar que o crescente número de dados minerados, bem como sua aglutinação em bases estruturadas, representa não apenas um aumento quantitativo, mas qualitativo, possibilita um manejo dessas informações, que podem, não havendo uma regulação adequada, representar uma ameaça à privacidade dos cidadãos.[6]
Nesse sentido, a Lei 13.709, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, criada para salvaguarda de dados, apesar de ainda carente de supressão de muitas lacunas, revela o direcionamento que a matéria deverá tomar. O art. 23 da LGPD menciona que o tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito público, órgãos e entidades do poder público deverá ser realizado para o atendimento de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público.
Os impactos do Big Data, que pode ser definido como a nova geração de tecnologia e arquiteturas projetadas para extrair valor de grandes volumes de dados, transformam de forma profunda diversos setores da sociedade, saúde, administração pública, sistema financeiro e securitário, telecomunicações, manufatura, energia (smart grid) e transporte. A captura e utilização de dados pessoais é tema complexo que merece profunda análise, até mesmo no que tange à regulamentação da LGPD, como o papel do Estado com regulador e agente operador de tratamento de dados.
É certo que o tratamento de dados pessoais dos cidadãos pelo Estado, como visto anteriormente, pode resultar em maior eficiência em serviços e políticas públicas, o que pode ocasionar o fim daquilo que conhecemos hoje como democracia.7 Com o enfrentamento destas questões, pode-se chegar à conclusão da necessidade de alteração legislativa ou de regulação efetiva para normatizar a atuação do Estado como controlador de dados pessoais, mesmo quando se tenha como objetivo cumprir o princípio da transparência.
A utilização de novas ferramentas tecnológicas pelos órgãos públicos, especialmente em um cenário de ausência de legislação específica aplicável, pode criar riscos significativos para os direitos fundamentais dos cidadãos, como privacidade, liberdade de expressão, além da presunção de inocência e da proteção de dados. 
Como vimos, a regulação existente é falha e não viabiliza a proteção dos direitos fundamentais. Um ponto que merece atenção, e que causa preocupação, é a possibilidade de se expandir a possibilidade do acesso aos dados pessoais daqueles vinculados ao Estado. Para tanto, seria necessária uma regulação com previsões claras e que levasse em consideração os aspectos práticos do uso da tecnologia, dos princípios que norteiam a atividade interpretativa e disciplinam o tratamento, o uso e a coleta de dados, bem como a garantia dos direitos dos titulares dos dados às informações acerca do tratamento. 
Logo, para se chegar a uma regulação que efetivamente proteja e garanta os direitos dos cidadãos, é importante que se tenha um debate multissetorial diante da ampliação do uso de dados pessoais pelo Estado, para atingir a publicidade e a transparência desejadas, principalmente quando assessoradas por sistemas tecnológicos que tratam dados pessoais.
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[1] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
[2] BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2011.
[3] SCHIRATO, 2013.
[4] SCHIRATO, 2013.
[5] SUÁREZ, José María Álvarez-Cienfuegos. La defensa de la intimidad de los ciudados y la tecnología informática, Colección Divulgación Jurídica, Navarra: Aranzadi, 1999. p. 13.
[6] QUINN, Elias Leake. Privacy and the new energy infrastructure. Rochester, NY: Social Science Research Network, 2009.
[7] PEREZ, 2020.

dados lgpd

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JOTA

Regulação existente é falha e não viabiliza a proteção dos direitos fundamentais

Transparência, privacidade e proteção de dados

Regulação existente é falha e não viabiliza a proteção dos direitos fundamentais na proteção de dados pessoais