Opinião e Análise

Cristina Maria Gama Neves da Silva

Emma Roberta Palú Bueno

Belva Lockwood, a primeira mulher a ser admitida para advogar perante a Suprema Corte Americana, também foi a primeira a se candidatar para presidente dos Estados Unidos, isso em 1884. Após 136 anos, até hoje os Estados Unidos não foram comandados por uma mulher. Apesar desse quadro tão vergonhoso quanto a sua apuração de votos, na noite de sábado grande parte do país, e também do mundo, se comoveu com o discurso da advogada e senadora Kamala Harris, que segundo as projeções, será a primeira. Harris com muita emoção disse que ela será a primeira, mas certamente não a última.
O voto feminino norte-americano, após 72 anos de luta, somente foi conquistado em 1920 com a edição da 19ª Ementa a Constituição Norte-Americana<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>. A primeira mulher eleita no âmbito federal foi Jeannette Rankin, do Partido Republicano, para representar o Estado de Montana no U.S. House of Representatives, isso em 1916. A atual composição do legislativo americano (onde não se computam as vitórias do pleito de 2020) faz com que os EUA ocupem a posição 82 de 191 países analisados pela Inter-Parliamentary Union<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" sizes="(max-width: 1080px) 100vw, 1080px" srcset="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png 1080w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico-300x300.png 300w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico-1024x1024.png 1024w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico-150x150.png 150w, https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico-768x768.png 768w" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Não é demais lembrar que diferente do Brasil, nos EUA o voto não é obrigatório, sendo as eleições muito mais do que apenas uma forma de escolha de eleitos, mas também uma maneira de avaliar quem importa para a nação. Isso porque desde a Constituição Federal de 1776 o voto ainda é visto por muitos como privilégio de alguns e não um direito de todos, ou seja, não são todos os homens e mulheres norte-americanos que tem esse direito. As lutas que negros e mulheres tiveram que travar ao logo dos séculos para terem seu direito de votar reconhecido foram significativas na quebra do teto de cristal que aconteceu nos Estados Unidos. Além disso, a eleição americana ocorre em um dia útil, mais especificamente em uma terça-feira, o que impede grande parcela da classe trabalhadora de exercer a sua faculdade de votar.
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<li lang="en-US">+JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/suprema-corte-dos-eua-governo-biden-09112020">Suprema Corte dos EUA e o governo Biden</a></li>
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Essa eleição trouxe conquistas históricas, tanto por ter elegido a primeira vice-presidente mulher (negra e filha de mãe indiana e pai jamaicano), quanto pelo recorde estadunidense de 75 milhões de votos. Mas, além disso, o ano de 2020 certamente é um marco para as mulheres norte-americanas. 
Segundo o Center for American Women and Politics (CAWP<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>) o número de mulheres que irá compor o próximo Congresso Americano será de 135, o que representa 25% do total de assentos, maior representação feminina no legislativo da história americana. Apesar das congresswomen serem em sua grande maioria do Partido Democrata, foi no partido Republicano que houve o maior aumento. Comprado com a atual composição de 22 assentos, as projeções indicam que o 117º Congresso americano terá 32 representantes republicanas, o que significa um aumento de 45,5%, sendo que 2 desses lugares serão ocupados por mulheres negras. 
<blockquote class="western jota-article__eye" lang="en-US">Além dos números em si, que naturalmente merecem ser comemorados, houve a vitória inédita como a de Sarah McBride, primeira transexual eleita senadora estadual, cuja vitória vem como parte de uma onda de mais de 500 candidatos LGBTQ. </blockquote>
McBride, de 30 anos, foi eleita com 86% dos votos para compor o Senado Estadual de Delaware e está acostumada a quebrar barreiras, já que em 2012 foi a primeira estagiária transexual da Casa Branca na administração do Presidente Obama. Segundo a senadora eleita, a escolha de seu nome será capaz de mostrar que a democracia norte americana é grande o suficiente para abarcar toda a população transexual. A democracia mais antiga do mundo mostrou que sua liderança passa sim a ter uma nova face.
Além de ter sido a eleição com mais mulheres indígenas concorrendo a cadeiras no Congresso – dezoito - outro recorde que as mulheres obtiveram nessa eleição é o maior número de mulheres indígenas (native american) na composição do Congresso Americano. As democratas Deb Haaland e Sharice Davids, do Estado do Novo México e do Kansas, em 2018 foram as primeiras mulheres indígenas a serem eleitas nos Estados Unidos. Na próxima legislatura, estarão acompanhadas da republicana Yvette Herrel e Teresa Leger ambas do Novo México. Com isso, o Estado do Novo México será o primeiro estado norte-americano a ter apenas mulheres não-brancas como suas representantes.
Em um ano em que o movimento civil Black Lives Matter tomou as ruas americanas, Cori Bush mostrou ser uma das vitórias dessa luta. Cori Bush, mãe, enfermeira e ativista, será a primeira mulher negra a representar o estado do Missouri no Congresso Americano. A democrata Bush venceu seu adversário republicano, até as atuais projeções, com 79% dos votos<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>. 
Apesar do estopim das manifestações deste ano terem ocorrido diante da morte de George Floyd, o movimento ganhou força em 2014 com o assassinato do policial de 18 anos Michael Brown, quando Bush foi uma das articuladoras e organizadoras dos protestos de Fergusson, uma das maiores e mais impactantes manifestações do movimento e que a impulsionaram para o que resultou na eleição de quem quer ser a voz dos que ainda não a tem. 
Cori somará ao grupo das congressistas democratas mais progressistas, Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Rashida Talib e Ayanna Pressley. 
<blockquote class="western jota-article__eye" lang="en-US">Mas uma força que não pode ser esquecida e acima de tudo deve ser celebrada é a de Stacey Abrams. Ativista afro-americana do estado sulista da Geórgia, terra de Martin Luther King e um estado tradicionalmente conservador, Abrams foi uma das responsáveis pela quebra da hegemonia republicana que perdurou por lá desde 1992. </blockquote>
Candidata derrotada pelo republicano Brian Kemp para o governo daquele estado em 2018 por apenas 55.000 votos, a advogada liderou uma luta contra leis eleitorais que obstaculizam o direito ao voto entre os cidadãos afro-americanos mais desfavorecidos. Em 2018 mais de 53.000 inscrições de eleitores foram desconsideradas por questões burocráticas, como diferenças entre os nomes em seus documentos e o dos registros eleitorais, sendo que 70% desses cadastros eram de negros.
Segundo cálculos oficiais do partido Democrata, o trabalho de Stacey Abrams em organizações como a Fair Count (Contagem Justa) e Fair Fight (Luta Justa) para tornar o voto um direito e não um privilégio, resultou no registro de pelo menos 800.000 novos eleitores, grande parte negros que não votariam se não fosse por isso. A eleição de Harris, McBride, Halland, Herrel e tantas outras mulheres nos mostra que a cara da liderança dos EUA mudou, que as mulheres passam a ter vez e voz, que toda a conquista de anos começa a se transformar em realidade, ainda que a linha de chegada quando se fala de igualdade de gênero e de participação feminina na política não esteja logo ali. Se você não pode ser o que você não pode ver, como diz Stacey Abrams – as eleições norte americanas mostraram que as mulheres não só podem ser como serão o que quiserem ser nos Estados Unidos. 
Não se pode negar que as mulheres tiveram um papel fundamental nas eleições americanas, quebraram um teto de vidro que ainda não havia sido superado, seja pelo seu poder de voto, pelo seu poder de permitir que cada vez mais cidadãos possam votar, seja pelas vitórias e milestones conquistados nas eleições de 2020. 
A vitória de Kamala Harris é o resultado do engajamento e da força de tantas mulheres que foram cruciais, inclusive, para a indicação de Biden como candidato. Há muito o que ser comemorado, mas muito ainda a ser alcançado. Isso nos dá uma certeza, de Lockwood à Harris, de Rankin à Ocasio, muito se caminhou, mas muito ainda há que se caminhar. Nas palavras da eterna e saudosa Justice Ruth Bader Ginsburg, “mulheres devem estar em todos os lugares onde as decisões estão sendo tomadas”.
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O episódio 42 do podcast <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a> analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=xRgH-5h1gH8&amp;feature=emb_title
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> "The right of citizens of the United States to vote shall not be denied or abridged by the United States or by any State on account of sex. Congress shall have power to enforce this article by appropriate legislation."
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> <a href="https://www.ipu.org/resources/publications/infographics/2020-03/women-in-politics-2020">https://www.ipu.org/resources/publications/infographics/2020-03/women-in-politics-2020</a> Acesso em 9/11/2020
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> <a href="https://cawp.rutgers.edu/">https://cawp.rutgers.edu/</a> Acessado em 9/11/2020
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> <a href="https://edition.cnn.com/2020/11/04/politics/cori-bush-blm-activist-congress-trnd/index.html">https://edition.cnn.com/2020/11/04/politics/cori-bush-blm-activist-congress-trnd/index.html</a> Acessado em 9/11/2020
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JOTA

De Lockwood à Harris, de Rankin à Ocasio, muito se caminhou, mas muito ainda há que se caminhar

Sim, elas podem: mulheres na política norte-americana

Mulheres na política norte-americana: De Lockwood à Harris, de Rankin à Ocasio, muito se caminhou, mas muito ainda há que se caminhar