Opinião e Análise

Marina de Araujo Lopes

Paula Ferro Costa de Sousa

A recente série espanhola da Netflix “Intimidad” nos traz a reflexão de como violações à intimidade das pessoas podem ser exploradas, em especial quando se leva em conta um duplo fator: mulher e/ou disputa de cargo eletivo. Dois ingredientes que conduzem a um tratamento diferenciado pela sociedade.
A produção é composta de oito episódios que contam a tragédia ocorrida por duas mulheres: compartilhamento, sem autorização, de vídeos íntimos. A advogada Malen Zubiri, vice-prefeita da cidade de Bilbao e candidata ao cargo principal na próxima eleição, vê sua vida e profissão em ruínas após o compartilhamento e viralização de um vídeo no qual aparece fazendo sexo em uma praia. A operária Ane, que logo no começo é mostrada morta, boiando no mar, viveu um pesadelo ao ter um vídeo íntimo divulgado entre seus colegas de trabalho.
Logo de início, a série deixa claro o ponto central da história: mulheres vítimas de grave exposição íntima tratadas como se culpadas fossem. As duas vítimas sofrem agressões verbais, chantagens e opressão, sobretudo no ambiente profissional em que convivem com homens em sua maioria.
O assunto nos faz perceber como o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/machismo">machismo estrutural</a> e a violência de gênero também estão presentes no cotidiano das mulheres brasileiras, pelo que passamos por uma breve análise das garantias constitucionais da intimidade e da vida privada e do consequente dever de indenizar pelo ato ilícito da divulgação de fotos e vídeos íntimos de mulheres.
A intimidade, a vida privada e a confidencialidade das correspondências — esta última trazemos aqui pelo fato de haver envio de foto íntima em conversa privada em aplicativos de mensagens, por exemplo —, são protegidas pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição Federal de 1988</a> em seu artigo 5º, em especial nos incisos X e XII.
A Constituição de 1988 não garantiu proteção só àqueles bens jurídicos de natureza patrimonial como a propriedade, mas também aos direitos de personalidade como a intimidade, a honra, a vida privada e a imagem, além de, igualmente, conceder o status de direito fundamental ao sigilo das correspondências, sendo devida justa reparação em caso de dano.
Sob o olhar constitucional, é claro que os dados, o envio de mensagens privadas, as fotografias e vídeos recebidos de forma privada, não podem ser publicados ou encaminhados a terceiro que não esteja na cadeia de envio, por dizerem respeito à intimidade e à vida privada do indivíduo, salvo, mediante consentimento dos comunicadores ou autorização judicial.
Nesse espeque, a exposição pornográfica não consentida, é definida como a “disseminação não autorizada de imagem em nudez total, parcial ou mídias que retratam ato sexual”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. E para a conceituação d a expressão “pornografia de vingança”, a ministra Nancy Andrighi do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">Superior Tribunal de Justiça</a>, no Recurso Especial nº 1.679.465/SP, traz as lições da prof.ª Vitória Buzzi:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 70px;">O “termo pornografia de vingança”, tradução da expressão em inglês “revenge porn”, nomeia o ato de disseminar, sobre tudo na internet, fotos e/ou vídeos privados de uma pessoa, sem a sua autorização, contendo cenas de nudez ou sexo com objetivo de expô-la através da rápida viralização do conteúdo, e assim causar estragos sociais e emocionais na vida da vítima.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 70px;">Após traçar o contexto histórico e social da pornografia de vingança no Brasil, essa mesma autora afirma que se trata de uma forma de violência de gênero[...].</blockquote>
Em determinado caso, o STJ consignou que: “No Brasil, a Constituição Federal, no art. 5º, X, estabelece que: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’. A ideia de sigilo expressa verdadeiro direito da personalidade, notadamente porque se traduz em garantia constitucional de inviolabilidade dos dados e informações inerentes a pessoa, advindas também de suas relações no âmbito digital”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O direito à dignidade engloba o direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, à privacidade ou a qualquer outro direito da personalidade, assim como o direito à imagem vincula-se a tudo que é forma estética, ou seja, o corpo, o rosto, perfil da pessoa. Sendo certo, que qualquer agressão que atinja o sentimento pessoal de dignidade que, fugindo à normalidade, cause sofrimento, vexame e humilhação intensos, alteração do equilíbrio psicológico de indivíduo, deve ensejar em indenização.
O <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm">Código Civil</a>, em seu artigo 21, definiu que “[a] vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Os artigos 186 e 927 disciplinam a obrigação de reparação do dano pela prática de ato ilícito. Neste espeque, o que se observa é que o Poder Judiciário tem autorização para condenar a prática criminosa em razão das ofensas à dignidade e à intimidade do emissor.
Nesta linha, a professora Maria Helena Diniz define a responsabilidade civil (2004, p. 7)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> como: “A aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causados a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal”.
Sabemos que, por vezes, a responsabilidade civil é reconhecida por meio da indenização pecuniária por divulgação sem autorização de fotos/vídeos íntimos, não diminui a dor da violência, mas é importante reconhecer que o Judiciário vem entendendo pela necessidade de se exterminar a culpabilização da vítima recorrente nesses casos em decorrência do julgamento de uma sociedade machista. O que se percebe, é que o Judiciário, também para esses casos de exposição pornográfica, tem levado em consideração (a) a reprovação do ato ilícito, (b) grau da lesão experimentada e (c) o valor que deverá compensar a vítima pelos prejuízos morais sofridos.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> condenou um homem a indenizar em R$ 75 mil a ex-companheira, pelas fotos que ele divulgou na internet, após o fim do relacionamento. Nos pampas, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, condenou um homem por exibir fotos íntimas da ex-companheira em redes sociais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios reconheceu a pornografia da vingança e determinou que a vítima fosse indenizada, tendo em vista o ato ilícito da divulgação de imagens íntimas pelo seu ex-namorado<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Os exemplos de julgados acima destacados levam em consideração a exposição pornográfica ocorrida no meio virtual. Da mesma forma que na série "Intimidad", essa prática criminosa tem acontecido nesse ambiente eletrônico e globalizado, o que está cada vez mais se integrando ao cotidiano. Apenas um clique e o potencial de uma divulgação é que o mundo todo possa ver o que você está fazendo naquele exato momento.
Portanto, o compartilhamento de fotografias e vídeos íntimos, sem autorização, no ambiente virtual, possui uma consequência sem medidas, até porque, na sociedade machista que vivemos, homens fazem questão de replicar ao máximo a nudez das mulheres, seja para enaltecê-las, seja para humilhá-las.
Imagine ter que conviver com o fato de uma empresa inteira ter tido acesso a vídeos íntimos seus? Ainda que você mude de emprego, você viverá com a dúvida e insegurança de um dia ocorrer o ressurgimento da mídia, tendo em vista a dificuldade que se tem de exterminar algum conteúdo totalmente da internet. Essa, talvez, seja a pior consequência deste crime.
"Intimidad" traz um problema social que pode custar a vida de muitas mulheres ou que, no mínimo, lhe custam sua saúde mental. Como demonstrado, há mecanismos legais e jurisprudência no Brasil para que essas ações sejam cessadas, mas ainda precisamos que as delegacias sejam mais firmes quanto a estas ocorrências, que o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a> seja mais atendo e combativo e que o Judiciário seja mais contundente no valor das indenizações, tudo para que se promova a conscientização dos mais jovens que estarão cada vez mais conectados a este mundo virtual, da impossibilidade, criminosa e machista dominação da vida sexual da mulher.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SYDOW e CASTRO. Exposição pornográfica não consentida na internet. Belo Horizonte, D'Placido, 2017, 38.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> RMS 60.698/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/08/2020, DJe 04/09/2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 7. p. 7
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Processo em segredo de justiça. Fonte: <a href="https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tj-condena-homem-que-divulgou-fotos-intimas-de-ex-namorada.htm">https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tj-condena-homem-que-divulgou-fotos-intimas-de-ex-namorada.htm#</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Processo em segredo de Justiça. Fonte: <a href="https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/homem-pagara-indenizacao-por-divulgar-fotos-intimas-da-ex-companheira/">https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/homem-pagara-indenizacao-por-divulgar-fotos-intimas-da-ex-companheira/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Segredo de Justiça 0014321-67.2011.8.07.0007, Relator: ANGELO PASSARELI, Data de Julgamento: 13/09/2017, 5ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 27/09/2017. Pág.: 410/413)
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 7. P. 7.
SYDOW e CASTRO. Exposição pornográfica não consentida na internet. Belo Horizonte, D'Placido, 2017, 38
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 48.

‘Intimidad’

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JOTA

'Intimidad' explora compartilhamento de vídeos íntimos sem autorização no contexto de uma sociedade machista

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