Opinião e Análise

Anna Clara Gontijo Balzacchi

Maria Gabriela Lopes de Macedo

No dia 11 de novembro de 2022 chegou-se ao marco dos 5 (cinco) anos de vigência da Lei 13.467/17, a chamada reforma trabalhista, que trouxe uma quantidade enorme de mudanças e novidades à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Tais mudanças tiveram como justificativa uma suposta modernização das leis trabalhistas, caracterizada pela flexibilização (e até desregulamentação) do Direito do Trabalho, acompanhando a tendência neoliberal que ocorreu em diversos países.
Ocorre que essa modernização levou à flexibilização do princípio da proteção, fundamento norteador do Direito do Trabalho, afetando principalmente as mulheres, que, por serem grupo sensível do mercado de trabalho, viram-se expostas a uma maior precarização pelas alterações da reforma.
A lógica constitucional de 1988 foi a de elevação da proteção do trabalho ao status constitucional, sendo instituídas normas de proteção especiais às trabalhadoras mulheres e grávidas, como a proibição de prática discriminatória, a licença maternidade, a estabilidade gravídica, o afastamento de atividades insalubres, dentre outras. A própria CLT possui capítulos específicos no tema, como a Seção V - "Da Proteção à Maternidade". Os direitos das gestantes são considerados, inclusive, indisponíveis, por protegerem, principalmente, a maternidade<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nesse contexto, a estabilidade gravídica a que tem direito as trabalhadoras, prevista na alínea "b", II, do art. 10 do ADCT da Constituição Federal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, confere garantia de emprego à gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. É vedada, portanto, a dispensa arbitrária da trabalhadora durante o período de estabilidade gravídica, permitida apenas a dispensa por justa causa. O pedido de demissão também é limitado pela necessidade de assistência do sindicato de classe, nos termos do art. 500 da CLT<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Sob essa perspectiva, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), em 2012, por meio da Súmula nº 244, trouxe interpretação norteada pelo espírito protetivo às gestantes, consignando que o desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta a estabilidade e que essa será garantida mesmo na hipótese de contrato por tempo determinado. De 2011, a OJ 30 da SDC do TST também prevê que “a proteção à maternidade foi erigida à hierarquia constitucional”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em 2017 vieram, então, as inovações da reforma trabalhista, flexibilizando diversas garantias laborais, em sentido oposto ao pacto civilizatório humanista da Constituição de 1988, e instituindo, entre outras medidas, o princípio do negociado sobre o legislado (em que os acordos sindicais e inter partes se sobrepõem à lei), afastando-se, assim, do princípio da igualdade em seu sentido material<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A lei 13.467/17 não se preocupou, contudo, em conferir proteção especial às gestantes, de modo que elas se viram mais vulneráveis às inovações instituídas.
Uma das novidades da reforma foi a possibilidade da rescisão por comum acordo. Nos termos do art. 484-A da CLT, o contrato de trabalho pode ser extinto por acordo entre empregado e empregador, sendo devidos aviso prévio e indenização do FGTS pela metade, bem como as demais verbas rescisórias na sua integralidade.
Foi nesse contexto normativo que uma trabalhadora de Rio Verde - Goiás, que firmou acordo de rescisão desconhecendo seu estado gravídico, em 2019, ajuizou reclamação trabalhista requerendo, entre outros pedidos, a sua reintegração em razão de sua estabilidade provisória constitucionalmente protegida. Tal pedido foi parcialmente deferido em sentença, entendendo o juízo que a rescisão só se aperfeiçoaria se a empregada estivesse assistida pelo sindicato, nos termos do art. 500 da CLT. A empresa reclamada recorreu da sentença, que foi reformada pelo Tribunal Regional. Interposto o recurso de revista pela autora, o Min. Cláudio Brandão, em decisão monocrática, conheceu do recurso e deu-lhe provimento por violação ao art. 10, II, “b”, do ADCT, entendendo "ser a estabilidade provisória direito indisponível e, portanto, irrenunciável".
Contudo, a decisão foi reformada pela 7ª Turma, em recente acórdão, do dia 27/10/2022, de relatoria do Ministro Renato de Lacerda Paiva<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Na ocasião, entendeu-se que, na rescisão por acordo, trazida pela reforma trabalhista, não seriam garantidas nem a assistência sindical, por não se tratar de pedido de demissão, nem a vedação da dispensa, pois não seria dispensa arbitrária, mas sim de “transação com reciprocidade de interesses”.
Encobertada pelo requisito formal do art. 896, §9º, da CLT, que prevê a necessidade de violação direta à Constituição ou à jurisprudência sumulada do TST e do STF em processo proposto pelo rito sumaríssimo, a 7ª Turma do TST entendeu que o acórdão regional  não violou diretamente o art. 10, II, “b”, do ADCT, pois o artigo trataria somente de rescisão por justa causa, não conhecendo, assim, do recurso de revista<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Concluiu também que seria inaplicável o art. 500 da CLT, pois não se trata de pedido de demissão.
Ou seja, utilizou-se da falta de previsão legal específica, somada ao excesso de formalismo, para, desconsiderando a razão de ser da própria estabilidade gravídica, acabar por declarar válida a rescisão por acordo, sem assistência sindical, com empregada gestante que, à época, desconhecia seu estado gravídico. Como se vê, a modalidade da rescisão por acordo, na interpretação da 7ª Turma do TST, gerou ônus desproporcional às trabalhadoras que, nessa hipótese, se veem totalmente desprovidas das garantias gravídicas da estabilidade e da assistência sindical.
Ora, se a estabilidade gravídica tem o objetivo de garantir o direito fundamental à proteção da maternidade, além de ser direito indisponível, como poderia ser descartada no caso de rescisão por acordo e sem ao menos assistência sindical? Seria mesmo razoável se entender que há uma transação recíproca de interesses entre uma trabalhadora, que desconhece a gravidez, e seu empregador?
Em verdade, o art. 484-A da CLT não prevê consequências quanto às hipóteses de estabilidades provisórias e direitos indisponíveis. A decisão do TST é, portanto, mais um reflexo da tendência flexibilizadora da reforma trabalhista do que uma consequência direta dela. De fato, percebe-se que a jurisprudência do tribunal caminhou conforme o espírito político da época e não necessariamente de acordo com o espírito constitucional.
A Constituição da República tem como princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade solidária, livre, justa, igual, com a promoção do bem de todos. Esses princípios se revelam em diversas normas ao longo da Carta, mas especialmente por meio da constitucionalização do Direito do Trabalho, que desempenha o papel de promoção da igualdade material e da justiça social<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Quando criada a proteção às trabalhadoras grávidas, não havia nem sequer a possibilidade de rescisão por comum acordo, visto que se trata de uma flexibilização recente da reforma trabalhista. Salta aos olhos e foge à razoabilidade afastar a proteção à trabalhadora grávida por ausência de enquadramento legal expresso na nova hipótese, uma vez que a proteção de direito fundamental se sobrepõe a qualquer alteração legislativa infraconstitucional. A reforma trabalhista não tem o condão de alterar toda a lógica da proteção constitucional de direitos fundamentais.
É completamente ignorada a condição social de uma mulher grávida ao concluir-se que essa abriria mão de seus direitos em uma transação igualitária de interesses com seu empregador, ainda sem assistência sindical. No caso concreto, a trabalhadora esperava seu terceiro filho e recebia um salário mínimo. Ficou poucos meses no trabalho e só resolveu fazer o acordo porque sofreu assédio moral, desconhecendo sua gravidez à época. A transação de interesses ali era entre direitos fundamentais (à integridade psíquica e à própria estabilidade gravídica) e metade das verbas rescisórias, o que nos parece um tanto quanto desequilibrado.
No processo de flexibilização do Direito do Trabalho, percebe-se que as mulheres tiveram sua proteção ainda mais sufocada pela generalidade da lei e foram deixadas de lado em face do puro positivismo jurídico, que prevaleceu no confronto com seus direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Não se atentou, contudo, ao fato de que, num processo de modernização, precisam ser resguardadas as minorias sociais, como é o caso das mulheres, sob pena de afronta à própria ordem econômica<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, que em muito depende também dessas trabalhadoras para seu desenvolvimento, como já reconhecido pelo Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A OIT possui também convenções sobre a proteção da maternidade: N.º 3 (1919), N.º 103 (1952) e N.º 183 (2000). Além disso, a Convenção sobre segurança social, N.º 102 (1952), reconhece as prestações de maternidade como uma das áreas da proteção social.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição: II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa: b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 500 - O pedido de demissão do empregado estável só será válido quando feito com a assistência do respectivo Sindicato e, se não o houver, perante autoridade local competente do Ministério do Trabalho e Previdência Social ou da Justiça do Trabalho.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A OJ 30 da SDC do TST: “Nos termos do art. 10, II, "b", do ADCT, a proteção à maternidade foi erigida à hierarquia constitucional, pois retirou do âmbito do direito potestativo do empregador a possibilidade de despedir arbitrariamente a empregada em estado gravídico. Portanto, a teor do artigo 9º, da CLT, torna-se nula de pleno direito a cláusula que estabelece a possibilidade de renúncia ou transação, pela gestante, das garantias referentes à manutenção do emprego e salário”.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> DELGADO, Maurício Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/17. - São Paulo: LTr,2017.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> RR-11157-62.2019.5.18.0103, 7ª Turma, Relator: Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 28/10/2022.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “Entretanto, os referidos dispositivos constitucionais, bem como a Súmula apontada, não possuem pertinência com o caso em debate, qual seja, simetria entre o pedido de demissão e a rescisão por
acordo entre as partes, nos termos do art. 484-A da CLT, para os fins de aplicação do art. 500 da CLT, no caso de rescisão contratual da empregada gestante. Cabe ressaltar inclusive que o art. 10 da ADCT trata tão somente da hipótese de dispensa por justa causa, hipótese sequer debatida nos autos. Assim, eventual conhecimento do recurso de revista somente seria possível por afronta a dispositivo infraconstitucional ou divergência jurisprudencial, o que não é possível em procedimento sumaríssimo”.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Destaca-se que a Constituição reflete, com alguns anos de atraso, o que Alain Supiot chamou de espírito de Filadélfia, referindo-se à Declaração de Filadélfia adotada na Filadélfia pela 26º Conferência Internacional do Trabalho, que em seu artigo II assentou que “a paz, para ser duradoura, deve assentar sobre a justiça social”, transformando assim a justiça social em diretriz política.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> A dignidade da pessoa humana é o próprio fim da ordem econômica, nos termos do art. 170 da CF, devendo assegurar a todos existência digna e tomar como fundamental o valor social do trabalho. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13 ed. Malheiros Editores. São Paulo. 2008).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> O Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero que reconhece a desvalorização do trabalho de cuidado e as perdas que a desigualdade de gênero causam na economia. Disponível em: &lt;https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf&gt;.
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JOTA

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