Opinião e Análise

Marcela Mattiuzzo

Renata Zuccolo

No último dia 3 de maio, o presidente do Senado transformou em projeto de lei o material produzido pela Comissão de Juristas para regulação da inteligência artificial (IA) no Brasil. A comissão trabalhou ao longo de todo o ano de 2022 e entregou como resultado uma proposta muito distinta daquelas que até então estavam sendo debatidas no Congresso e que tinham, primordialmente, um caráter eminentemente principiológico.
O <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233">PL 2338/2023</a>, portanto, busca oferecer o que pode ser efetivamente chamado de um marco regulatório sobre o tema, criando obrigações para desenvolvedores, direitos para as chamadas “pessoas afetadas” e, com inspiração clara nos debates que vêm sendo travados na União Europeia, uma classificação de risco dos sistemas de IA. Com esse movimento, inaugura-se um novo capítulo da discussão sobre o assunto.  
Nesse cenário, é importante refletir acerca de como tem sido conduzido o debate jurídico sobre IA no Brasil e, ainda mais relevante, qual a importância de se discutir esse tema. O que é primordial entender é que, em grande medida, a IA foi tratada, ao menos por enquanto, de forma tangencial ou superficial.
Tome-se como exemplo o desenvolvimento da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (<a href="https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/transformacaodigital/arquivosinteligenciaartificial/ebia-documento_referencia_4-979_2021.pdf">EBIA</a>). Publicada em 2021, ela foi duramente <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2021/04/estrategia-de-ia-brasileira-e-patetica.shtml">criticada</a>, em especial pela <a href="https://direitorio.fgv.br/sites/default/files/2022-08/ebia-pt-br.pdf">ausência</a> de objetivos claros, metas e meios de atingimento de resultados, inexistindo também papéis bem definidos dos vários atores envolvidos no processo. Ao fim e ao cabo, o resultado é um overview interessante, mas certamente pouco substancial ou aprofundado, sobre o tema, podendo ser visto muito mais um benchmarking de experiências que uma proposta concreta que pudesse embasar iniciativas legislativas e/ou a adoção de políticas públicas.  
O fato é que o Brasil ainda não se engajou numa reflexão mais ampla sobre qual será o seu papel (ou sobre qual pretende que seja seu papel) nesse campo. Enquanto China e EUA claramente disputam a liderança do ponto de vista do desenvolvimento tecnológico e a Europa continua caminhando no sentido de tornar-se o “celeiro regulatório” do mundo, se esforçando para consolidar a lógica do efeito Bruxelas, numa tentativa de influenciar como a tecnologia será construída sem ser necessariamente a jurisdição na qual o investimento ocorre de forma direta, o Brasil patina nas reflexões sobre quais serão suas prioridades e posicionamento.
É evidentemente ingênuo supor que há capacidade de o país tornar-se uma potência comparável a China e EUA – num país em que as taxas de industrialização tem caído vertiginosamente, acreditar em protagonismo no desenvolvimento de IA de forma ampla é praticamente uma miragem. Da mesma forma, o potencial de replicar por aqui o que se tem tentado fazer em Bruxelas – acreditando na capacidade do mercado consumidor como um polo que não pode ser ignorado pelo setor privado e que, portanto, leva a uma necessária conformação das empresas às regras criadas pela União Europeia – parece limitado. Ainda que o mercado brasileiro certamente não seja desprezível, parece ilusão que tenhamos a capacidade de influenciar e transformar os parâmetros regulatórios aqui implementados em standards mundiais pela mera relevância quantitativa.  
Mas estaríamos então fadados a, de um lado, tornarmo-nos apenas consumidores da tecnologia desenvolvida em outros lugares e, de outro, replicar, com algumas pequenas adaptações, os regimes jurídicos criados e implantados em outras jurisdições? O prognóstico não precisa ser tão pessimista. Há espaços nos quais o Brasil pode desempenhar papéis relevantes, mas o que é inafastável é que o aproveitamento deste potencial passa necessariamente por uma reflexão mais estruturada sobre as capacidades que serão mobilizadas, bem como uma visão mais realista sobre a importância de uma organização centralizada desse processo.
Acreditar que bastará a aprovação de uma lei para que o setor privado se organize e implemente um modelo de sucesso que afaste eventuais preocupações de ordem pública é fantasioso, mas também denota uma escolha política: abrir mão de qualquer potencial de construção de uma efetiva estratégia para o tema, e de assim mobilizar as políticas públicas nesse processo de construção.  
Algumas reflexões nos levariam a concluir que um caminho potencialmente promissor é investir naquilo que o Brasil tem de efetivamente diferente e onde estão suas vantagens competitivas. Um exemplo nesse sentido pode ser o próprio debate sobre sustentabilidade. Além de possuir fauna e flora de extensões e relevância consideráveis, que inexistem em outros locais, o país tem um agronegócio desenvolvido e potencial considerável de evolução. Esse poderia ser um campo promissor para a inteligência artificial, e desenvolver sistemas algorítmicos focados nesse segmento seria particularmente proveitoso.  
Outra discussão importante, e que pode vir a ser definidora, diz respeito a como serão desenhadas políticas que suportam toda a estrutura competitiva do mercado, como a política de defesa da concorrência, no que diz respeito à IA.  
Por um lado, o uso de IA pelos agentes públicos já se mostrou uma ferramenta importante, por exemplo, para as autoridades brasileiras de defesa da concorrência, tanto para garantir uma maior celeridade na análise de operações e na produção de estudos econômicos que dependam de um volume considerável de <a href="https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/aprovada-sem-restricoes-compra-da-unicesumar-pela-vitru-contou-com-tecnicas-de-inteligencia-artificial-para-analise-de-microdados">dados</a>, quanto para auxiliar na detecção e/ou no combate de potenciais infrações à ordem econômica, em especial pelo uso do chamado <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/projeto-cerebro-cade-usa-inteligencia-artificial-no-combate-a-carteis-29102019">Projeto Cérebro</a>. E, como sabemos, ainda há muito que pode ser desenvolvido nessa área.  
Por outro lado, diversas preocupações vêm sendo externalizadas por autoridades de defesa da concorrência ao redor do mundo (muitas vezes capitaneadas por Bruxelas) de que o uso de IA por agentes privados, sem qualquer regulamentação, poderia estar favorecendo concentrações excessivas de mercado ou outros efeitos negativos, como por exemplo, criação de barreiras para que outras empresas pudessem exercer suas atividades ou inovar. Recentemente, na esteira do lançamento de ferramentas como ChatGPT e Bard, a presidente da Federal Trade Commission nos EUA também <a href="https://www.nytimes.com/2023/05/03/opinion/ai-lina-khan-ftc-technology.html">externou preocupações</a> com o uso desta tecnologia, sustentando a necessidade de enforcement vigoroso.  
Um fato é inegável, a inteligência artificial veio para ficar. São inúmeros os seus desafios e potencialidades, mas se o Brasil deseja ter um algum protagonismo nessa discussão, não há como se escapar de um debate estruturado e aprofundado. A propositura do PL 2338 é uma oportunidade nesse sentido, que esperamos seja aproveitada pelo poder público e pela sociedade civil, ainda que sua própria capacidade de relevância implica em uma compreensão mais completa de qual é o papel desse tema para o país e em reflexão estratégica sobre oportunidades e potencialidades.

Marco da Inteligência Artificial

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

PL 2338 é oportunidade para debate aprofundado, que esperamos seja aproveitada pelo poder público e pela sociedade civil

IA: entre potencialidade e concretude

PL 2338 é chance de debate aprofundado sobre inteligência artificial, que esperamos seja aproveitada por poder público e sociedade civil