Opinião e Análise

Rebeca Drummond de Andrade Müller

Grandes desafios da jurisdição constitucional estão concentrados nos pesos e nas duas medidas da balança da Justiça. Não raro, da hermenêutica exigida a partir de situações concretas que envolvem os contribuintes emerge a carga do interesse público, sem se conseguir delimitar exatamente se esse importante pressuposto atenderia apenas à arrecadação ou se conseguiria ele conviver com o indivíduo e a sua atividade empresarial, ambos imprescindíveis para a subsistência econômica de uma nação.
É nesse mesmo ambiente de ponderação que a era digital coloca novas cartas sobre a mesa. Desta vez, para testar os limites da proteção de dados quando o assunto se refere às informações fiscais, notadamente as que são protegidas pelo sigilo. Na balança está, portanto, a busca da verdade que, sob o olhar de Hannah Arendt, abraça a transparência e o direito à informação, e, do outro lado, a intimidade.
Isso quer dizer que, sempre que falarmos sobre a utilização de dados fiscais pelas autoridades (como, por exemplo, pela via do compartilhamento) a análise perpassará o sopesamento entre o interesse público (busca da verdade, como o combate à sonegação) e os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade.
Com todos esses elementos que cercam a privacidade em seu momento atual, o legado do saudoso professor Danilo Doneda nos relembra que uma das conotações desse direito se manifesta por meio da proteção dos dados pessoais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Por essa mesma razão, revisitamos a privacidade à luz do, conforme Ingo Wolfgang Sarlet e Gabrielle Bezerra Sarlet, Estado democrático Digital de Direito<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Como ponto de partida, a privacidade pode ser dividida em seu sentido estrito e em seu sentido amplo. É naquele – sentido estrito – em que repousa a intimidade, ou o direito de ser deixado só (the right to be let alone), em um resgate do clássico de Samuel Warren e Louis Brandeis<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Nesse âmbito, impera o aspecto individual do ser humano; é onde todos os assuntos e informações pessoais são guardados em segredo, fora do campo de observação de terceiros ou do público<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Já o sentido amplo da privacidade, igualmente um direito subjetivo fundamental, resguarda consigo informações que são revestidas de repercussão social. Elas também caracterizam a individualidade em face da comunidade, mas podem ser de conhecimento de terceiros, como ocorre com os nossos nomes e nosso gênero, dentre outros. Isso não quer dizer, todavia, que essas informações possam transitar livremente como objeto de troca, como se mercadorias fossem, sem o consentimento prévio de seu titular<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, mas sim que graus de proteção de acordo com a sensibilidade de cada uma dessas informações são imprescindíveis.
O nosso primeiro elemento da privacidade revisitada sob a perspectiva constitucional tributária está na concepção de que as informações fiscais, ou mesmo as bancárias, são utilizadas como instrumento do Poder Público, ou seja, elas são acessadas por terceiros, como a Receita Federal, o que as interligam ao direito à privacidade em seu sentido amplo. Desse modo, não é possível invocar a intimidade como o seu escudo protetor.
O segundo elemento se conecta à proteção que o sigilo impõe às informações classificadas como sigilosas. Ele funcionaria como uma ferramenta responsável pela equalização e proteção do direito à privacidade sobretudo em seu sentido amplo. Desse modo, a realidade atual demanda que a inviolabilidade do sigilo (art. 5º, XII da CF) resguarde a negativa de acesso das informações a terceiros não autorizados.
Nessa fórmula, o sigilo não é um direito absoluto, a ser invocado para impedir que as autoridades responsáveis tenham acesso às informações contidas nos dados dos indivíduos. Por esse motivo, o sigilo assume um caráter flexível, o qual, nos moldes dos precedentes do STF<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e do art. 198 do Código Tributário Nacional, tem sido ponderado em face do interesse público, notadamente quanto à proteção da arrecadação, prevista pelo art. 145, §1º da Constituição Federal.
Todavia, há um caminho estreito entre a dicotomia do interesse público e do interesse privado, o que torna perigosa as crescentes incursões da Administração Pública sobre as informações fiscais ao argumento da proteção de um bem maior, baseado na interpretação de que os dados podem transitar entre autoridades com base na flexibilização do sigilo, com destaque para uma suposta mera transferência desse mesmo sigilo entre as respectivas autoridades.
Exemplo prático pode ser visto em tentativas da Receita Federal de obrigar, sem decisão judicial, que informações transmitidas com a finalidade de instruir autos de arbitragem fossem compartilhadas com o órgão ao argumento do interesse público e da citada transferência do sigilo.
É nesse momento em que o interesse público se expande para relembrar o hermeneuta do interesse da coletividade em resistir à devassa de seus dados, em lançar mão da garantia de que o Estado não a perseguirá por motivos políticos e de que a segurança jurídica de fato existe. Daqui surge a comunicação com o direito fundamental e autônomo à proteção de dados, previsto pelo art. 5º, LXXIX da CF.
Do direito à proteção de dados decorre, então, o nosso terceiro e último elemento para a reflexão aqui lançada. Trata-se da imprescindibilidade do princípio da proporcionalidade em cada compartilhamento de informações fiscais sigilosas.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em sua paradigmática decisão sobre a Lei do Censo (Volkszählung), que inspirou o STF no julgamento do compartilhamento de dados de usuários de telefônicas com o IBGE<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, esclareceu que as intervenções na esfera privada do indivíduo são permitidas sob o argumento do interesse público, mitigando-se a autodeterminação, quando houver estrita observância à proporcionalidade.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Tais intervenções são nítidas e justificáveis em campos como o da segurança pública e o do direito tributário. Todavia, o exame da proporcionalidade exigirá cada vez mais esforços dos contribuintes, pois, à semelhança do “interesse público”, se trata de conceito indeterminado.
Apesar disso, a concepção a partir do Estado democrático Digital, iniciado pelo reconhecimento do direito à proteção de dados, inclusive nos meios digitais, demanda que a proporcionalidade seja atingida não apenas por meio de decisões judiciais, mas principalmente de maneira preventiva, por meio do Poder Legislativo.
É, portanto, com o estabelecimento de regramento legal que se edifica os devidos instrumentos e critérios para a mitigação da autodeterminação, não bastando apenas previsões amplas, como a flexibilização do sigilo pelo art. 198 do CTN, que, inclusive, comporta discussão se se trata de rol taxativo ou exemplificativo.
Ainda, elementos básicos como o atendimento à finalidade da informação fiscal coletada e o lapso temporal em que ela estará disponível ainda são vagos, já que, nessa seara, a Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a>) impõe limitações, como as previstas no inciso II do art. 11 da Lei 13.708/2018.
A privacidade, em sua mais recente forma, não aloca em lados opostos a tecnologia e a proteção do cidadão.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> Ela, ao contrário, parte da harmonização entre esses dois importantes valores sob o pressuposto do interesse público. O direito tributário não está de fora dessa concepção.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: fundamentos da Lei Geral de Proteção de Dados. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Termo concebido pelo Professor Ingo Wolfgang Sarlet e pela Professora Gabrielle Bezerra Sarlet. Cf em: <a href="https://www.conjur.com.br/2022-mai-13/direitos-fundamentais-separacao-informacional-poderes-devido-processo-informacional-ordem-juridico-constitucional-brasileira#_ftnref">https://www.conjur.com.br/2022-mai-13/direitos-fundamentais-separacao-informacional-poderes-devido-processo-informacional-ordem-juridico-constitucional-brasileira#_ftnref</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> WARREN, Samuel D; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Harvard Law Review, v. 5, p. 193, 1890. Disponível em: &lt;<a href="https://www.jstor.org/stable/1321160#metadata_info_tab_contents">https://www.jstor.org/stable/1321160#metadata_info_tab_contents</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2012, p. 411
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Sigilo de dados: o direito a privacidade e os limites a função fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, Sao Paulo, p. 439-459, 1993, p. 442.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A exemplo do Tema nº 225 da Repercussão Geral, estabelecido em 2016, que sedimentou, com força vinculante, o entendimento da flexibilização do sigilo a partir da desnecessidade de autorização judicial prévia para o envio de informações sigilosas. Em seguida, em 2019, as mesmas premissas foram adotadas e aperfeiçoadas no Tema nº 990 da Repercussão Geral, cujo paradigma, o RE nº 1.055.941/SP, ficou conhecido como “Caso COAF”.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ADI’s nos 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.393
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> SCHWARZ, Sebastian. Datenschutzrechtliche Normen im Steuerrecht und im Steuerstatistikrecht. Berlin: Auflage, 2017.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014

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JOTA

Os limites da proteção de dados no que se refere às informações fiscais

Privacidade revisitada: entre o interesse público e os contribuintes

Os limites da proteção de dados no que se refere às informações fiscais