elas no jota

Por um direito econômico com mulheres, para mulheres e além delas

Pensar em mulheres na teoria e na linha de frente é pensar na economia política do desenvolvimento

direito econômico
Crédito: Unsplash

Direito econômico como disciplina e objeto de estudo é resultado das transformações da relação entre estado, política e mercado. Ele é considerado uma “tecnologia” que, no plano das políticas públicas, pode desenhar arranjos que colocam em diálogo direito, economia e ciência política, instrumentalizados para realizar a ordem econômica e as noções de desenvolvimento constitucionalizadas[1]. Como objeto de estudo, o direito econômico permite vislumbrar quem ganha e quem perde nos arranjos jurídicos que envolvem as mais difíceis escolhas políticas e econômicas de nossos tempos.

A despeito da sua relativa novidade no cardápio das disciplinas jurídicas e de ser uma lente arguta para análise dos arranjos de poder, o direito econômico como campo apresenta déficits de representatividade em relação às pessoas que se identificam como parte dele, em seus enquadramentos teóricos, pesquisas e formulações de políticas públicas.

Neste momento em que o Brasil aprovou um projeto de lei garantidor da igualdade salarial entre homens e mulheres[2] e tem debatido tanto a paridade de gênero em carreiras públicas do sistema de justiça[3] quanto a indicação de uma mulher negra para a vaga da ministra Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal, não poderia haver melhor assunto para nossa estreia na coluna Elas no JOTA.

Faltam mulheres nas carreiras públicas, na docência e nos quadros de comando de escritórios de advocacia que atuam com o direito econômico. Dados de relatório produzido pela Women in Antitrust Brasil (WIA), referentes à defesa da concorrência[4] no ano de 2018, revelam que, no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), as mulheres não chegam a compor metade da força de trabalho (47,5%). Naquele ano, não se identificava nenhuma mulher ocupando cargo DAS 5 e apenas 25% delas figuravam em cargos DAS 6 e de Natureza Especial (NE)[5].

Atualmente, apenas uma mulher figura como conselheira do órgão e uma ocupa cargo com nível equivalente à antiga classificação DAS 5. A WIA aponta ainda que as mulheres enfrentam barreiras para ascensão nos escritórios de advocacia da área antitruste, pois, embora cheguem a representar 63% das advogadas juniores, alcançam o patamar máximo de 34% quando está sob análise a posição de sócia[6]. É possível que o quadro seja ainda mais dramático em outros ramos da advocacia relacionados ao direito econômico e em outras burocracias como agências reguladoras setoriais, autoridades do sistema financeiro e alto escalão de empresas estatais.

Na academia, nota-se igualmente a sub-representação feminina na área do direito econômico. A noção de currículo oculto, a saber, de “conteúdos que, embora não formalmente categorizados como saberes a serem aprendidos (ou seja, como conteúdo programático), são informal e sistematicamente reproduzidos num determinado espaço educacional” incluem noções que reforçam estereótipos e dinâmicas de gênero socialmente estabelecidos[7]. Ainda, os dados evidenciam que mulheres têm dificuldade de entrar em certas áreas disciplinares e de ascender na profissão[8].

Nas faculdades de direito, 29,6% dos docentes são mulheres, sendo que elas compõem quase metade do alunato (44%)[9]. Em comparação com outras áreas, direito é aquela que possui o maior fosso entre discentes e docentes[10]. Nas faculdades de economia no Brasil, área com a qual o direito econômico possui amplo diálogo, as mulheres também não chegam a representar 30% dos docentes, apenas 20,8% ocupam as posições de professoras titulares[11].

A ausência de mais mulheres no direito econômico é um déficit que não se encerra em si mesmo. A pluralidade dos debates no campo seria enriquecida se mais vezes a lente de gênero, que também é um instrumento de análise de assimetrias de poder, fosse debatida e incorporada por seus pesquisadores e pesquisadoras, sobretudo nos debates nacionais.

No Brasil, um país marcado por desigualdades salariais (mais de 20% de bônus salarial aos homens, tão somente por assim serem[12]), taxas de violência doméstica alarmantes (503 agressões a cada hora[13]) e uma representação política em percentuais abaixo da média regional e mundial (em 2023, cerca de 17% dos deputados e senadores são mulheres contra a rebaixada média mundial de 26%[14]), pensar em mulheres na teoria e na linha de frente do direito econômico e nas políticas públicas é pensar na economia política do desenvolvimento. É refletir sobre quem senta à mesa e tem voz nas maiores decisões econômicas do país, quem exerce as políticas econômicas, quem se beneficia dessas políticas, e todas as ausências e escolhas daí decorrentes que se interseccionam com outros marcadores de desigualdade no país, como raça, gênero mais amplamente, dentre outras.

Ana Frazão sintetiza da seguinte forma: as decisões relevantes adotadas pelo poder público, decorrem “de uma teoria econômica dominante que nem foi pensada por mulheres nem se destina a elas”[15]. Por consequência, as demandas do movimento feminista e das mulheres, em suas multiplicidades, são muitas vezes vistas como demandas de direitos fundamentais e constitucionais que pouco se relacionam com a estrutura econômica do país.

Mas há mudanças à vista: o renascido movimento de Direito e Economia Política denuncia essa divisão artificial entre demandas próprias do mercado e demandas de Estado. Mercado e Estado não podem ser separados de forma imparcial, pois o primeiro não é anterior nem independente do segundo. Os mercados e as relações econômicas dependem e são moldados pelo Estado, assim como a política cria e molda a economia: “a sociedade de mercado gera conflito político – conflito que é profundamente de raça e de gênero. Uma política que pode engajar este conflito deve estar atenta à interação entre as formas como o Estado cria “o mercado” e as formas como o poder de mercado realimenta a política”[16].

Parafraseando Cook & Roberts[17], nosso receio coletivo é que o direito econômico – isto é, o campo que se ocupa de temas como políticas públicas, concorrência, regulação, integridade, inovação e tantos outros – não adote uma análise de gênero em seu núcleo e aceite implícita, e até explicitamente, o viés androcêntrico que tem caracterizado a disciplina até agora. Tal miopia compromete a própria função do direito econômico, comprometendo sua capacidade de se engajar nas questões fundamentais para as quais ele deveria servir como instrumento de análise e tecnologia.

Somos mulheres no sempre indispensável direito econômico. Algumas de nós estão em carreiras públicas, outras na academia, outras passaram por escritórios de advocacia. Todas nós nos beneficiamos de várias possibilidades que o campo descortina, com a cooperação de mentoras, mentores, pares, alunas e alunos brilhantes. O debate que apresentamos não é exclusivo das mulheres, mas com elas e destinado a enxergá-las. Ele comporta perspectivas plurais e divergentes. Reconhecemos, ainda, que existem diversas outras desigualdades urgentes que, tão importantes quanto, se relacionam e conformam o campo. Nos próximos textos, falaremos de tópicos diferentes que, para alguns, são mais universais. No entanto, para nós, era fundamental começar pelo chão em que pisamos.


[1] COUTINHO, Diogo. Direito Econômico e a construção institucional do desenvolvimento democrático. Revista de Estudos Institucionais. Vol. 2, 1, 2016.

[2] Lei nº 14.611/2023, com origem no Projeto de Lei nº 1.085/2023, de iniciativa do Poder Executivo, aprovada pelo Senado em 01/06/2023.

[3] O Conselho Nacional de Justiça aprovou recente política de ação afirmativa para provimento de cargos nos tribunais brasileiros. Ver: CNJ aprova regra para garantir paridade de gênero em Tribunais de Justiça. CONECTAS: Direitos Humanos, setembro de 2023 Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/cnj-aprova-regra-para-garantir-paridade-de-genero-em-tribunais-de-justica/.> Acesso em 26 set. 2023.

[4] Área associada ao direito econômico, mas que a ele não se equipara, também conhecida por antitruste.

[5] WOMEN IN ANTITRUST. Relatório WIA: representatividade e inclusão feminina no antitruste, referente ao ano de 2018. Disponível em: <https://www.womeninantitrust.org/_files/ugd/0a4ea1_290e563876e34211b86f461f9d76e0fa.pdf.> Acesso em 27 set. 2023.

[6] Idem, p. 25.

[7] GPEIA – Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia. Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?. São Paulo: Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2019, p. 11.

[8] CAMPOS, Isabelle Oglouyan de. Mulheres na Academia. Desigualdades de Gênero no Corpo Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: Cátedra UNESCO de Direito à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2021.

[9] OLIVEIRA, Camila Alves Borges; GERARDI, Dirceu André;  FAJREALDINES, Ezequiel; PIMENTA,  Luiz. Relatório com os primeiros resultados. LabDados FGV Direito SP. Disponível em: <https://www.direitoedesenvolvimento.com/cópia-geral> Acesso em: 28 set. 2023.

[10] Idem.

[11] ROCHA, Fabiana et al. Gender differences in the academic career of economics in Brazil. Cuadernos de Economía, v. 40, n. SPE84, p. 815-852, 2021.

[12] PARADELLA, Rodrigo. Diferença cai em sete anos, mas mulheres ainda ganham 20,5% menos que homens. Agência IBGE Notícias, março de 2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23924-diferenca-cai-em-sete-anos-mas-mulheres-ainda-ganham-20-5-menos-que-homens>. Acesso em: 28 set. 2023.

[13] INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, Dossiê Violência contra as Mulheres: banco de dados. Disponível em: <https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/> Acesso em: 28 set. 2023.

[14] CHADE, Jamil. Presença de mulheres no Congresso brasileiro é inferior à média mundial. Uol, março de 2023. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm> Acesso em: 28 set. 2023.

[15] FRAZÃO, Ana. Economia e gênero: É imprescindível incluir discussões de gênero para a solução dos principais problemas econômicos. Jota, 2022. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/genero-e-economia-0903202>  Acesso em 27 set. 2023.

[16] GREWAL, David Sighns; KAPCZYNSKIi Amy; BRITTON-PURDY, Jedediah. Law and Political Economy: Toward a Manifesto. LPE Blog, 2017.

[17] COOK, Joanne; ROBERTS, Jennifer. Towards a gendered political economy. In: COOK, Joanne; ROBERTS, Jennifer; WAYLEN, Georgina (eds). Towards a Gendered Political Economy, London: Palgrave Macmillan UK, 2000. p. 3-13.