Opinião e Análise

Rebeca Drummond de Andrade Müller

Não de hoje, nossas instituições têm ensaiado um flerte perigoso com o argumento da arrecadação pela arrecadação. É o dinheiro pelo dinheiro. Com base nela, leis inconstitucionais não apenas nascem, como permanecem com os seus efeitos no tempo, sob a proteção da modulação pelo Supremo Tribunal Federal, e modificações tributárias são realizadas sem freios para acompanhar a crescente despesa pública. Esses mesmos ares têm soprado em direção ao pacote econômico lançado pelo Governo Federal, com destaque para o retorno do Voto de Qualidade.
A edição da Medida Provisória n. 1.160/2023 foi responsável por, dentre outros, revogar o art. 19-E da Lei nº 13.988/2020, dispositivo que determinou que, em caso de empate, a demanda administrativa sobre a determinação e exigência do crédito tributário se resolveria a favor do contribuinte, encerrando a dinâmica que permitia que o voto do Presidente de Turma do Carf, sempre um representante da Fazenda, tivesse peso duplo.
Logo de partida, vale perceber que a citada medida provisória veicula norma cujo conteúdo é processual, o que é expressamente vedado pelo art. 62, §1º, b da Constituição. No <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>, ao votar nas ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415, nas quais se discute o Voto de Qualidade, o ministro Marco Aurélio bem delimitou se tratar de norma daquela natureza.
Vencida essa primeira e notória fragilidade jurídica, importa se ater a alguns dos argumentos que acompanham a justificativa para essa recente mudança, quais sejam (i) sem o Voto de Qualidade, cerca de R$ 59 bilhões deixariam de ser exigidos por ano; (ii) com base em manifestação do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">TCU</a> (Acórdão 336/2021), a extinção do Voto potencializaria o risco de corrupção no Carf; (iii) o Brasil é um dos únicos países com colegiado de segunda instância administrativa com composição paritária, ou seja, representantes dos contribuintes e da Fazenda Nacional compõem o órgão em igual número.
Nos convém iniciar de trás para frente, acompanhando a desordem que, infelizmente, é tão comum ao nosso sistema.
É interessante que, para algumas regras relacionadas à tributação internacional, mais benéficas ao contribuinte, utilizadas pela maioria dos países e recomendadas pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>, o exemplo de outras jurisdições é prontamente rechaçado pelo Fisco.
Por outro lado, além de nossa estrutura tributária ser igualmente única, nem tudo o que vimos mundo afora aqui se encaixa, o que exige de nós análises com cuidados redobrados para esses transplantes jurídicos. Em paralelo, temos a forma mais moderna de votação, a urna eletrônica, e argumentar que apenas o Brasil e mais dois países a utilizam não faz dela um item a ser descartado, mas que, sim, o nosso país é pioneiro.
Sobre o potencial risco de corrupção dentro da esfera administrativa, e outros pontos, é imprescindível a leitura da Nota Pública divulgada pela Associação dos Conselheiros do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carf">Carf</a>, a Aconcarf<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Nossos conselheiros, sejam eles representantes dos contribuintes ou da Fazenda, são profissionais capacitados, que brindam o órgão com diferentes pontos de vistas, necessários à democracia, revestidos da mais alta técnica contábil e tributária.
A nossa geração pagou e segue pagando um preço muito alto pelo fato de atores vinculados a instituições fundamentais do Estado brasileiro terem passado a violar direitos e garantias valendo-se do cômodo álibi segundo o qual deveriam ter uma carta branca de todos nós, uma vez que estavam enfrentando a corrupção.
Não convence ninguém sustentar uma discussão dessa envergadura com a justificativa de que o brusco retorno do Voto de Qualidade evitaria “potencial risco de corrupção”. Primeiro, porque não se tem elementos para essa afirmação, sobretudo com as rígidas modificações implementadas após a Operação Zelotes, deflagrada em 2015.
O fim da sistemática do Voto ocorreu em 2020 e a verdade é que, na iminência das votações, pelo Legislativo, do projeto que seria convertido na Lei nº 13.988, há indicações, conforme demonstra o estudo desenvolvido por Jorge Mussa Guerra Demes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, de que o Carf tenha dado prioridade aos julgamentos que pudessem ser resolvidos pelo Voto de Qualidade, como se em uma corrida contra o tempo estivesse, antes que a nova regra fosse implementada a favor do contribuinte.
Sobre números, ainda mais grave é a falta de transparência de dados que deveriam ser abertos à sociedade. Como relembra Demes, no âmbito do levantamento estatístico realizado pelo Insper<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a Administração negou o acesso aos valores dos créditos tributários decididos pelo Voto de Qualidade, os quais revelariam os montantes decididos em favor da Fazenda.
As informações somente foram reveladas à Unafisco e ao Sindifisco, para municiá-los no ingresso, como amici curiae no STF, nas ADIs que discutem a alteração feita pelo mencionado art. 19-E da Lei nº 13.988/2020.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Ademais, se fôssemos nos impressionar com esse álibi retórico da corrupção, ele deporia contra a própria Administração Tributária. E isso quem indica é também o TCU. Ao tratar da auditabilidade do Sistema Tributário Nacional, no TC 021.258/2018-0, foi verificado que “A Receita Federal é o segundo órgão da administração pública que mais demite servidores por fraude e corrupção”. Logo, o melhor seria encerrar com esse tipo de armadilha argumentativa.
O mesmo ocorre com o viés da arrecadação pela arrecadação, último ponto de nossa abordagem. Uma crise entre o Direito Tributário e o “interesse público” tem se intensificado e é agora retomada pelo Voto de Qualidade. Flexibiliza-se o sigilo em nome daquele, impõe-se, sob o custo de direitos fundamentais, novas regras lançando mão de supostos e aterrorizantes impactos fiscais.
Ao proferir voto naquelas mesmas ADIs em que ingressaram como amici a Unafisco e o Sindifisco, o ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luis-roberto-barroso">Luís Roberto Barroso</a> deixa claro que “não se pode confundir interesse público com o interesse defendido pela Fazenda no processo administrativo fiscal”. É esse o recado que deve prevalecer, pois não se trata, o Carf, de um órgão corporativista a serviço da arrecadação. O seu dever é o de buscar a verdade material, que ora pode estar ao lado do Fisco, ora do contribuinte. Não há heróis e mocinhos, mas fatos, tipificação e o Direito.
Arrecadar sem respeitar direitos essenciais a uma democracia fiscal constitucionalizada como é a nossa, se aproxima muito aos modelos antigos de expropriação. São séculos de retrocesso.
Ainda, se comprovada a relação com a base de cálculo que influenciará no Bônus de Eficiência da Receita Federal, como indica o Decreto n. 11.312, editado quase no apagar das luzes de 2022, em seu parágrafo único do art. 1º, precisaremos trazer à discussão o art. 37 da Constituição e princípios como o da moralidade e o da impessoalidade em face da manutenção do Voto.
Não há, portanto, argumentos jurídicos que justifiquem a proporcionalidade da incursão sobre direitos e garantias dos contribuintes, os quais figuram em posição de fragilidade na relação com o Estado. Por esse motivo, regras de desempate, à semelhança daquela sobre infrações, prevista no art. 112 do CTN, devem ser resolvidas a favor do cidadão, e não do Fisco.
Contribuintes não são inimigos do Estado, e nem o Estado deveria ser inimigo dos contribuintes. A História mostra que aos trancos e barrancos chegamos até aqui, solidificando uma longa jornada de regras e limitações ao poder de tributar frente a um passado condenado pelo caráter repressivo e excessivo da política fiscal, tal como ocorria ao tempo da coleta da derrama pela Coroa portuguesa.
Apoiar-se em projeções que mostram cifras vultosas isoladas, sem o devido contexto, aliando-as a potenciais perdas arrecadatórias, apenas demonstra a clara violação à Constituição Federal. Enquanto não for oportunizado, pelo Legislativo, o amplo debate para aperfeiçoamento do instituto, sentando-se à mesa, em patamar de igualdade, os representantes de todos os lados, a regra a permanecer é a que favorece o contribuinte. O voto jamais poderá ser baseado em quantidade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível pelo link: <a href="https://www.aconcarf.org.br/post/nota-defesa-conselheiros-contribuintes">https://www.aconcarf.org.br/post/nota-defesa-conselheiros-contribuintes</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Confira: https://repositorio.idp.edu.br/bitstream/123456789/2950/1/TCC_%20JORGE%20MUSSA%20GUERRA%20DEMES_DIREITO_2020.pdf
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Estudo realizado pelo Núcleo de Tributação, coordenado por Vanessa Rahal Canado, e realizado por Bruno Vasconcelos e Maria Raphaela Matthiesen. Disponível em: <a href="https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/05/Analise_recorrencia_votos_qualidade_Carf_11052020.pdf">https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/05/Analise_recorrencia_votos_qualidade_Carf_11052020.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415.

STF voto de qualidade carf

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JOTA

Enquanto não for oportunizado pelo Legislativo, a regra a permanecer é a que favorece o contribuinte

O voto é de qualidade, não de quantidade

No amplo debate do voto de qualidade, em patamar de igualdade, a regra a permanecer é a que favorece o contribuinte.