Opinião e Análise

Livia Brito

Kaliane Lira

Mariana Avelar

Roberta Negrão Costa Wachholz

De forma simplificada, o ato administrativo é uma manifestação formal da vontade do administrador. Ele expressa essencialmente uma “vontade do Estado” que modifica, extingue ou cria obrigações. Ao longo do tempo, a atuação do Estado foi se alterando. Passou de um contexto histórico em que se buscava limitar a sua atuação em face do particular, isto é, afirmar as liberdades individuais e conter o protagonismo estatal. Houve um momento de garantia de direitos sociais por parte do Estado, que passou também a ser prestador de serviços, até se alcançar o Estado democrático de Direito, de afirmação de direitos difusos, de maior participação dos cidadãos e de constitucionalização do direito administrativo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Por conta dessa alteração de contexto, é preciso também revisitar a doutrina de direito administrativo, considerando-se que a visão do ato administrativo, em si, diante dessas mudanças de contexto, também se altera, o que deveria por mudar, por consequência, a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos.
O momento de surgimento e estruturação do direito administrativo fez com que carregasse consigo uma carga autoritária, de afirmação do poder do Estado. Isso fez, também, com que posteriormente a doutrina realizasse a distinção entre ato administrativo vinculado e ato discricionário, de modo a eliminar a arbitrariedade contida em sua origem.
Além disso, também doutrinariamente passou-se a realizar uma distinção quanto ao controle judicial desses atos. O contexto histórico exigia, também, o fortalecimento do princípio da separação de poderes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, de modo que se passou a entender – com certo consenso na doutrina – que os atos vinculados e os atos discricionários se submeteriam ao Poder Judiciário apenas quanto ao seu controle de legalidade.
O que se afirma, com razoável consenso, é que o mérito administrativo estaria excluído do controle judicial. Assim, apenas seria possível ao Poder Judiciário realizar o controle de legalidade dos atos administrativos, isto é, apenas o controle judicial dos elementos objetivos do ato, tais quais competência, forma e finalidade.
Nesse sentido, o que resulta da construção doutrinária e jurisprudencial é que o ato administrativo não pode ser examinado quanto ao seu mérito pelo Judiciário, razão pela qual o juízo de conveniência e oportunidade, diretamente ligado ao mérito dos atos discricionários, apenas poderiam ser submetidos a esse controle quanto aos critérios objetivos e não quanto ao mérito.
Inúmeros são os julgados<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> que repelem o conhecimento de determinada questão por se entender que não cabe ao Poder Judiciário exercer o controle de conveniência e oportunidade de determinado ato administrativo discricionário. Em outras palavras, quando se afirma que o ato discricionário não está sujeito a controle judicial, quer-se dizer que o juiz não pode substituir a vontade do administrador, isto é, não pode apreciar o elemento subjetivo – mérito – daquele ato.
Não se pretende, de modo algum, afirmar que o juízo discricionário do ato administrativo deve necessariamente estar submetido ao controle de legalidade do Poder Judiciário, sob pena de efetivamente estar-se vulnerando o princípio da separação de poderes. O que se pretende é, na verdade, jogar luzes naquilo que realmente se define como mérito administrativo e que deve estar excluído do controle judicial.
A partir do ponto de vista da necessidade de que seja preservada a separação de poderes, é certo que a atividade jurisdicional não pode substituir a decisão de mérito administrativa. Não se deseja substituir um processo de formação de motivos que culmina com a decisão administrativa mais conveniente e oportuna por uma decisão judicial de caráter revisional, que poderia decidir, em instância superior, a correção ou não da atividade administrativa.
Independentemente disso, é difícil conceber que o administrado, ou seja, os cidadãos, os particulares, poderiam estar sujeitos aos atos discricionários, sem qualquer controle além do controle de legalidade, visto que, no limite, o ato discricionário poderia vir a se tornar um ato arbitrário.
Diante disso é que uma leitura atual e constitucional dessa mesma construção doutrinária e jurisprudencial permite que os atos discricionários sigam soberanos em seu juízo de conveniência e oportunidade, mas permitindo um controle de legalidade mais em linha com os princípios do Estado Democrático de Direito.
Nessa linha, o mérito administrativo pode ser entendido de forma mais restrita, de modo a ampliar a possibilidade de controle dos atos discricionários. O que se propõe é que a conveniência e a oportunidade do ato, que antes eram concebidas como elementos do mérito, possam ser admitidas como elementos a serem submetidos ao crivo do Poder Judiciário, visto que se encontram fora do mérito administrativo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Destaque-se que o exame judicial dos atos administrativos nesses casos se dá por meio de duas teorias: (i) teoria do desvio de poder, em que o administrador atua para atingir finalidade diversa daquela prevista em lei; e (ii) teoria dos motivos determinantes, segundo a qual os motivos indicados pelo administrador o vinculam, ainda que a motivação do ato não seja obrigatória, cabendo ao juiz examinar os pressupostos fáticos do ato em consonância com os motivos.
A relevância dessa discussão se encontra no fato de que o Poder Judiciário, no paradigma do Estado Democrático de Direito, adquiriu papel central na realização da justiça, isso porque, entende-se por justiça a aplicação da norma mais adequada para a solução de determinado caso concreto. A sociedade não mais se satisfaz com a aplicação simplesmente formal da norma ao caso. Deve-se ter em mente um sentido de realização dos princípios e valores constitucionais.
Como o direito administrativo carrega em si uma carga de direito estatal, que favorece sua imutabilidade, no sentido de que a todo tempo se busca preservar a autoridade do Estado, cabe à ciência do direito, à pesquisa e à doutrina, se debruçando sobre os fenômenos sociais, criar novos modelos, estabelecer novos conceitos que busquem se adequar às necessidades contemporâneas, já que estas também se modificam ao longo do tempo.
Rechaçar, por si só, o exame de determinado ato discricionário pelo único motivo de impossibilidade de controle de conveniência e oportunidade dos atos administrativos pode vir a gerar um excessivo desnivelamento entre as posições de administrador e administrado. Não se quer dizer que a Administração deva receber o tratamento de um particular, mas apenas que o paradigma democrático que é, por si só dialético, não mais comporta tamanho desequilíbrio de forças que torne o administrado refém do administrador.
A ordem constitucional atual não mais comporta que o Judiciário se esquive de examinar determinados temas, ainda mais diante da possibilidade de se corrigir eventuais injustiças ou aplicações equivocadas do direito. Por isso é que não mais se admite a ausência de motivação dos atos administrativos, especialmente com relação aos atos administrativos discricionários. Somente assim será possível que se realize o desejável controle judicial na forma efetiva com que ele deve acontecer.
Não se pode confundir discricionariedade com arbitrariedade. A aplicação à atuação administrativa da teoria dos motivos jurídicos determinantes e da impossibilidade de existência dos conceitos jurídicos indeterminados tem o potencial de reduzir o espaço cabível para a discricionariedade pura e simples no direito administrativo.
O juiz, portanto, dentro desse papel e desse dever de atuação conforme a Constituição não pode mais se esquivar de examinar conceitos jurídicos indeterminados como conveniência e oportunidade. Cabe ao julgador destrinchar tais conceitos para que só então examine onde deve incidir a apreciação da legalidade em sua concepção ampla.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MEDAUAR, Odete. Administração Pública: do ato ao processo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação que se impõe. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A título de exemplo: AgInt no RMS n. 65.919/MA, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 4/10/2021, DJe de 6/10/2021; AgInt no RMS n. 62.035/MG, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 28/9/2020, DJe de 30/9/2020; AgInt no REsp n. 1.588.745/SC, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 30/3/2020, DJe de 1/4/2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Concepções desenvolvidas por CRETELLA JUNIOR, José. O Mérito do ato administrativo. Revista de Direito Administrativo; e FAGUNDES, Miguel Seabra. Revogação e anulamento do ato administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 3, p. 1-12, jan. 1946.

estatua da justica entardecer

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JOTA

Não se pode confundir discricionariedade com arbitrariedade

O papel do Judiciário na revisão dos atos administrativos discricionários

A ordem constitucional atual não mais comporta que o Judiciário se esquive de examinar determinados temas