Opinião e Análise

Ana Karenina Silva Ramalho Andrade

Em março de 2022, o Código de Processo Civil (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cpc">CPC</a>) completou seis anos de vigência. Foi tido como uma grande aposta no aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, devido à introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, de instrumentos capazes de proporcionar uma Justiça, a um só tempo, célere, isonômica e segura.
Passado esse tempo, já é possível se extrair os primeiros impactos e interpretações do referido diploma legal por parte do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">Superior Tribunal de Justiça (STJ)</a> e do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal (STF)</a> e, a partir deles, avaliar se realmente está atingindo as expectativas criadas.
Uma das promessas do CPC é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/irdr">IRDR</a>), instrumento jurídico criado com o escopo de gerir e decidir os casos repetitivos e, concomitantemente, formar precedentes obrigatórios.
Afinal, o IRDR é instrumento efetivo na racionalização e pacificação de demandas repetitivas? Antes da abordagem, é preciso analisar os pilares sobre os quais foram erguidos o IRDR e as decorrentes interpretações proferidas pelo STJ e pelo STF. Esses são os contornos que nos levarão à resposta.
A opção legislativa pela introdução do IRDR, como técnica inovadora<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, teve a finalidade de auxiliar no dimensionamento da litigiosidade repetitiva, focando a atuação jurisdicional na melhoria quantitativa e, especialmente, qualitativa, conferindo racionalidade aos julgamentos das demandas seriadas, com o objetivo de alcançar a igualdade e a segurança jurídica na prestação jurisdicional.
É correto afirmar que o IRDR tem o potencial de consagrar o princípio da igualdade entre os jurisdicionados, na medida em que a fixação de uma tese jurídica obrigatória, de índole material ou processual, assegura que idênticas controvérsias jurídicas obtenham as mesmas interpretação e aplicação<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O novo instituto, pelo seu desenho normativo, visa assegurar a previsibilidade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, a partir do momento em que firma o seu entendimento, ocasionando a estabilidade da prestação jurisdicional e, desse modo, viabilizando a concretização do princípio da segurança jurídica.
É importante destacar que a nova técnica de julgamento de questões repetitivas, o IRDR, só realizará os princípios da igualdade e da segurança jurídica, legitimando-se, se os operadores do direito aplicarem o arcabouço jurídico delineado para o citado instituto, considerando que tais princípios são vetores a serem alcançados.
E como saber se tais pilares estão sendo concretizados?
Na intenção de traçar um raio-X do IRDR, a USP Ribeirão Preto realizou pesquisa<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> sobre a utilização do instituto nos três primeiros anos de vigência.
Entre tantas informações reveladas, destaca-se a quantidade de incidentes inadmitidos em razão da discussão sobre a necessidade de existência de causa pendente, ou seja, em fase anterior à de mérito. Isso prejudica parcialmente a mensuração da aplicação efetiva do IRDR, como instrumento concretizador da igualdade e da segurança jurídica.
Cresce, então, a relevância da análise dos primeiros impactos provocados pelas interpretações do STJ, referentes à necessidade de causa pendente para admissibilidade do IRDR e, por via de consequência, do Recurso Especial (REsp) em IRDR. A discussão gira em torno da natureza jurídica do IRDR, como causa piloto, procedimento modelo ou natureza sui generis, derivadas da interpretação do parágrafo único do art. 978 do CPC.
O tema ainda é bastante controvertido e, apesar da relevância, ainda sem definição. O STJ teve a oportunidade de analisar a controvérsia em algumas oportunidades, porém não foi conclusivo sobre a natureza jurídica do IRDR, o que será desenvolvido adiante, a partir da análise dos recentes julgamentos.
No tema 1030<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, a 1ª Seção do STJ julgou o REsp em IRDR suscitado a partir dos Juizados Especiais Federais (JEF). Apesar da questão peculiar, a afetação foi admitida e a admissibilidade não foi enfrentada de forma expressa, o que denota, implicitamente, o acolhimento do procedimento modelo.
Por sua vez, em situação idêntica, da 1ª Seção, no Representativo de Controvérsia n. 1.881.272/RS<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, a indicação da afetação não foi admitida, ao argumento de que não estaria presente o requisito de causa decidida em única ou última instância, previsto no art. 105, II, da CF de 1988.
Recentemente, em outra oportunidade, no julgamento do RESp Repetitivo n. 1937821/SP<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, a 1ª Seção analisou a controvérsia em recurso cujo julgamento foi cindido na origem. O STJ, pelo órgão fracionário, não obstante, concluiu pela afetação do citado recurso, mesmo sendo hipótese de julgamento em tese, ou seja, originário de um procedimento modelo.
O fundamento utilizado para a admissão foi a priorização da uniformização da jurisprudência, alinhada à necessidade de estabilidade e de coesão, na qualidade de vetores do CPC, que possibilitam o julgamento do IRDR mesmo nas hipóteses de abandono e desistência do caso.
Ocorre que, para admitir a afetação, um dos votos fez uma distinção em relação ao RESp 1.881.272/RS, argumentando que neste não houve causa decidida no tribunal, por ser originário do JEF.
Já na hipótese do REsp 1.818.564/DF, a 2ª Seção enfrentou o tema e decidiu, por maioria, pela afetação do tema em IRDR suscitado em procedimento modelo.
Entendemos, no entanto, que o foco deveria ter sido apenas, nos casos acima, a forma de julgamento (procedimento modelo), irrelevante a origem da cisão (JEF ou o próprio tribunal).
Analisando os casos, verifica-se a presença de cisão de julgamento nas quatro hipóteses (utilização do procedimento modelo), mas com reflexos práticos diferentes. Quando se aceita a possibilidade de instauração do IRDR, a partir do procedimento modelo, com a admissão do REsp e a solução da controvérsia, atinge-se o ideal do CPC, de priorização da uniformização da jurisprudência, e o instituto concretiza os princípios da igualdade e segurança jurídica, tanto no JEF, como na Justiça comum e em todas as regiões federais, sem distinção.
Por outro lado, na situação em que o REsp proposto em IRDR não é conhecido, por ausência de causa decidida, o tema julgado no TRF torna-se vinculante na sua região, podendo gerar, na falta de uniformidade nacional, desigualdade e insegurança jurídica em casos análogos verificados em outras jurisdições, prejudicando o objetivo para o qual foi concebido o IRDR.
Isso acontece porque a definição da natureza jurídica do IRDR está sendo dada pelos TRFs ou TJs ao admitir ou inadmitir<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> tais incidentes e, ao chegar ao STJ, a controvérsia é analisada à luz do cabimento do REsp.
Além do mais, a ausência de um julgamento em concreto não seria um impeditivo para o julgamento do recurso, uma vez que a implementação do sistema de precedentes fez uma releitura de alguns preceitos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, destacadamente a causa decidida, em que um precedente vinculante não pode ser equiparado a um conflito intersubjetivo. Inclusive, é isso que possibilita a continuidade do incidente mesmo nas hipóteses de desistência do processo pelas partes.
Para evitar essas situações, faz-se necessária e urgente a definição da natureza jurídica do IRDR pela Corte Especial do STJ, por ser matéria processual e de índole infraconstitucional. Como forma de obter o máximo de desempenho do novel instituto, não pode ser desconsiderada a natureza do procedimento modelo, em certas hipóteses, como no caso da desistência do processo e suscitação a partir do JEF, porque só assim será atingida a uniformidade de entendimento jurisprudencial prometida pelo IRDR.
Por todo esse cenário, o IRDR ainda não teve a oportunidade de mostrar todo o seu potencial, porque ainda estamos discutindo sobre o que é o instituto.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A principal referência estrangeira na qual se baseia o IRDR é o procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão. A Exposição de Motivos do novo CPC deixa clara tal inspiração na seguinte passagem: “Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.” BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto/Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. – Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010. p. 21.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2017 p. 39
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3] </a><a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/i-relatorio-observatorio-irdr-usp-ribeirao-preto.pdf">http://observatorioirdr.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/sites/400/2019/12/I_Relat%C3%B3rio_Observat%C3%B3rio_IRDR_USP_Ribeir%C3%A3o-Preto.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&amp;termo=201901071581&amp;totalRegistrosPorPagina=40&amp;aplicacao=processos.ea">https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&amp;termo=201901071581&amp;totalRegistrosPorPagina=40&amp;aplicacao=processos.ea</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/stj-202001549247-tipo-91-133102053.pdf">https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&amp;documento_sequencial=133102053&amp;registro_numero=202001549247&amp;peticao_numero=202100IJ1863&amp;publicacao_data=20211126&amp;formato=PDF</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&amp;termo=202000120791&amp;totalRegistrosPorPagina=40&amp;aplicacao=processos.ea">https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&amp;termo=202000120791&amp;totalRegistrosPorPagina=40&amp;aplicacao=processos.ea</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> No julgamento do REsp n 1.631.846 - DF, a Terceira Turma do STJ entendeu que a decisão que inadmite IRDR é irrecorrível.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> No tema 1.141, o STF reconheceu o interesse recursal da parte beneficiada por tese firmada em IRDR, com fundamento na possibilidade de o recurso extraordinário possibilitar a extensão a tese em todo território nacional.

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JOTA

Reflexões sobre a natureza jurídica do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas

O IRDR é tudo aquilo que se esperava?

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