Opinião e Análise

Gisele Reis

Entre os princípios basilares do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/processo-penal">processo penal</a>, estão o contraditório e a ampla defesa que se consagram no direito do réu de só ter uma pena imposta mediante a observância de um devido processo legal democrático, o qual deve ser pautado na paridade de armas entre acusação e defesa. A Constituição Federal, guardiã dos direitos fundamentais do cidadão, assegura isso nos seguintes termos:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a></blockquote>
Essa garantia decorre do princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade), também consagrado na Carta Magna, na parte em que assegura que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (inciso LVII do art. 5º). É fruto da adesão brasileira a tratados internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, cujo art. 11.1 estabelece: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A jurisdição penal é exercida sobre a verdade processual, aquela produzida pelas partes nos autos do processo, em que cada um busca demonstrar ao Estado-Juiz que uma das versões ficou provada ou restou duvidosa.
Portanto, uma vez cometido um ilícito penal há um trajeto a ser percorrido. Esse percurso até a sentença final é um importante instrumento de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. A condenação pela gravidade que ela representa na vida de uma pessoa, inclusive com consequências que irão reverberar por toda a sua trajetória, só tem cabimento quando inexistem dúvidas acerca da existência do crime e de sua autoria.
Ao processo penal cabe equilibrar a pretensão punitiva do Estado e as garantias e os direitos fundamentais do acusado, individualmente considerado. Para além do mero cumprimento de uma sucessão de atos processuais com intimações e oportunidade de manifestação das partes, o direito ao processo justo exige do julgador uma escuta ativa de todos os atores envolvidos no sistema de Justiça criminal. Essa postura do Poder Judiciário é a única via que garante de forma substantiva a efetivação do contraditório e da ampla defesa. Não basta que o réu tenha a oportunidade de ser ouvido, é preciso que suas manifestações sejam levadas em consideração, acolhidas ou não, no momento da decisão.
A atuação da defesa, além de necessária para a concretização do processo penal democrático, é de fundamental importância nesse contexto e jamais pode ser vista como um desserviço. Ao contrário e bem longe disso, a advocacia exerce função essencial à Justiça e tem participação ativa na construção de importantes jurisprudências em matéria penal. A defesa técnica, “mais do que uma garantia do sujeito passivo, é condição de paridade de armas, imprescindível para a concreta atuação do contraditório”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Precedentes de altíssima relevância foram e são construídos nos tribunais superiores a partir da atenta intervenção do advogado na defesa de direitos e garantias individuais dos acusados.
Essa atuação não se reduz ao mero cumprimento de uma etapa formal, ao contrário, revela-se como garantia da dialética processual, com o objetivo de assegurar ao acusado não só participar formalmente do processo, mas de fazê-lo de forma efetiva, com o poder de influenciar na formação da convicção do magistrado. Ainda nesta perspectiva, a fundamentação da decisão judicial é mais que uma exigência da Constituição da República, revela-se como um direito fundamental do réu ter suas teses apreciadas na sentença.
A par do que deveria ser, no dia a dia dos que atuam na garantia dos direitos daqueles que são investigados e acusados no âmbito penal, há uma verdadeira inversão da lógica processual. A sensação é que o processo já nasce sentenciado, que a verdade dos autos só tem uma faceta e tende para o lado da acusação, enquanto que a defesa é que precisa provar a inocência do réu, fazendo esforço hercúleo para conseguir ao menos ter suas peças lidas ou ser de fato ouvida na sustentação oral.
Não raro, as sentenças penais reproduzem em seus fundamentos apenas o ponto de vista da acusação sem confrontá-las com as dúvidas, esclarecimentos, ilegalidades, nulidades e demais irregularidades suscitadas pela defesa, as quais sequer são totalmente enfrentadas na decisão.
Os atores principais envolvidos num processo criminal representam interesses diametralmente opostos e, para que a paridade de armas não seja apenas fictícia, cabe ao juiz assegurá-la.
O sistema de justiça está abarrotado, o Poder Judiciário tem que lidar com inúmeras demandas, são milhares de sentenças sendo reproduzidas numa espécie de automação industrial. Os detalhes nas entrelinhas passam despercebidos. Reconhecimentos por fotografia, inclusão de ator de Hollywood no banco de imagens de suspeitos, são apenas alguns exemplos. O interesse estatal na punição do acusado acaba se sobrepondo às garantias e direitos que lhes são previstos democraticamente.
O advogado presta serviço público e exerce função social que traz impacto não apenas para o caso concreto em que atua, mas para toda a sociedade. Atua na defesa dos direitos e garantias fundamentais, da ordem e das instituições democráticas. Inobstante tal mister, no início deste mês, na sessão de julgamentos de um habeas corpus na 2ª Câmara Criminal do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjmt">Tribunal de Justiça do Mato Grosso</a>, um desembargador fez críticas à atuação do advogado e disse que ele estava prestando um desserviço ao cliente. Em outro caso, no ano passado, durante uma audiência de interrogatório no Tribunal do Júri no Guará/DF, o juiz afirmou, na presença da defesa técnica, que não estava prestando atenção no que era dito pelo réu.
Não são raros os casos em que a defesa é silenciada mesmo tendo a oportunidade de subir à tribuna ou se manifestar por escrito nos autos. Essas narrativas e posturas demonstram o grau de prestígio que tem sido dado aos advogados e principalmente àqueles que aguardam uma decisão judicial que poderá impactar um dos bens mais preciosos que é a liberdade. Sobre o papel primordial que a advocacia exerce, a doutrina pontua que:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">“No Brasil, a advocacia, a figura do advogado e sua instituição de representação se misturam como função essencial a administração da justiça, seja como garantia da democracia consubstanciada na liberdade e igualdade por intermédio da máxima amplitude do contraditório e da ampla defesa ou do acesso ao judiciário”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></blockquote>
É no mínimo preocupante ter que reafirmar em pleno século XXI que a atuação da defesa é fundamental e não pode ser tolhida por práticas autoritárias. O processo penal democrático não poderá atingir a sua máxima efetividade sem que a defesa tenha liberdade, autonomia e independência para atuação. O art. 6º do Estatuto da Advocacia e a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)</a> estabelecem que inexiste hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A garantia do devido processo legal pressupõe dar voz às partes de forma ética e paritária e levá-las em consideração no momento da sentença, sob pena dessa participação ficar apenas no faz de conta. Aplicar o Direito ao caso concreto sem perpassar pelas teses defensivas deslegitima e compromete a idoneidade do processo na solução de uma controvérsia penal.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto, Brasília, DF, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm</a>. Acesso em: 11 abr. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas.Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <a href="https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos">https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos</a>. Acesso em 11 abr. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> 18 LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 473.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ((CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2. ed. 2018)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Planalto, Brasília, DF, 4 de julho de 1994. Disponível em: <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8906.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8906.htm</a>. Acesso em: 11 abr. 2022.

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

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JOTA

A garantia do devido processo legal pressupõe dar voz às partes de forma ética e paritária

O enfrentamento das teses defensivas no processo penal democrático

A garantia do devido processo legal pressupõe dar voz às partes de forma ética e paritária e levá-las em consideração no momento da sentença.