Opinião e Análise

Denise Pires Fincato

Vivian Falcão

A história dos sindicatos brasileiros é mais antiga do que muitos imaginam, surgindo as primeiras agremiações ainda no início do século passado. Para além de serem o elo institucional que une e alberga os representados, sua grande contribuição está no fato de dar-lhes voz, escudo e, sobretudo, de em nome destes negociar e pugnar condições de trabalho, o que se torna extremamente relevante no tocante aos sindicatos profissionais, que atuam em favor dos trabalhadores.
As negociações coletivas, em si, adquiriram grande relevância a partir da década de 80, com as mobilizações que pontuaram o processo brasileiro de redemocratização e que fizeram estruturar e organizar a classe trabalhadora em coletivos mais fortes.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O término da obrigatoriedade da contribuição sindical, em 2017, gerou muitos questionamentos acerca de um possível enfraquecimento das entidades sindicais (notoriamente as profissionais) e, ainda, da consequente redução no número de negociações coletivas.
Mas, contrariamente, não foi o que se verificou.
Em maio de 2021 foi publicada pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) dando conta de que houve um aumento de 36% nas negociações coletivas, desde 2017. No detalhe, tem-se que foram firmados 32.833 acordos e convenções somente nos meses de janeiro a abril deste ano, sendo tal volume o maior desde a reforma trabalhista de 2017<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Pois, das negociações coletivas resultam os chamados instrumentos coletivos, os já citados acordos coletivos e convenções coletivas, que se diferenciam entre si por sua abrangência (convenções abrangem mais pessoas que acordos e costumam ser mais genéricas que estes).
Pela regra atual, no caso concreto, existindo ambas e havendo conflito de seu conteúdo, prevalecerá o previsto no acordo coletivo, por estar mais conectado à realidade particular dos negociantes.
A Reforma Trabalhista erigiu a negociação coletiva a status não antes experimentado na ordem nacional: suas previsões passaram a preponderar sobre o próprio texto legal e, ainda, a serem judicialmente inquestionáveis quanto ao seu fundo (ou seja, poderão ser desfeitas apenas nas hipóteses admitidas, quais sejam, incapacidade dos agentes, objetos ilícitos ou formas inobservadas).
As normas coletivas, no entanto, e desde sempre, têm natureza precária, ou seja, não se incorporam indefinidamente ao patrimônio jurídico dos trabalhadores e são transitórias (vigência limitada a 2 anos), sendo atualmente vedada sua ultratividade.
<blockquote class="jota-article__eye">A beleza e utilidade das normas coletivas reside em, justamente, antederem e respeitarem o momento, a necessidade e a possibilidade dos acordantes. E esta é sua função: conceder flexibilidade, segura e necessária, à realidade das relações de trabalho.</blockquote>
Entretanto, não raro, observam-se discursos em mesas de negociação – e até mesmo postulações judiciais – que pugnam pela manutenção de “conquistas históricas” de instrumentos coletivos pretéritos o que se encontra, evidentemente, em afronta e contrariedade à ordem jurídica.
O Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, já reiterou a compreensão de que, após a Reforma Trabalhista restou vedada a ultratividade das normas coletivas, esclarecendo que estas não são incorporáveis aos contratos individuais de trabalho (art. 614, § 3º da CLT) e superando, de vez por todas, o posicionamento anterior que admitia a manutenção de cláusulas normativas tidas como “históricas”, por sua reiteração por mais de 10 anos em instrumentos normativos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Dado o cenário, então, pode-se dizer que a “conquista histórica” seria, exclusivamente, aquela que logrou se incorporar, de forma perene e estável, ao patrimônio jurídico de um trabalhador. É o caso, por exemplo, do 13º Salário (gratificação natalina), dos períodos de férias, da redução da jornada de trabalho, entre outros<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
As negociações coletivas são ferramentas pós-modernas, por natureza e essência. Desde muito se compreendeu que, por via de sua efetivação, trabalhadores e empregadores poderiam criar condições de relacionamento peculiares e temporárias, válidas enquanto lhes fosse conveniente e possível mantê-las.
As negociações coletivas dos tempos atuais estão no quadro das relações líquidas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, como bem aponta Zygmunt Bauman<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.  Na sociedade líquida, terminam-se as utopias, não se pensa a longo prazo, não há projetos de longa execução, não há vínculos empregatícios – quanto mais com décadas de duração. Nela, disruptiva que é, reinam a desregulação e a desordem.
Nessa linha, é comum a referência ao acrônimo inglês “VUCA”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> para caracterizar o mundo (e, nesse mesmo sentido, as relações humanas) após 1990:  volátil, incerto, complexo e ambíguo.
No campo produtivo, empresas têm êxitos estrondosos ou encerram atividades de acordo com avanços tecnológicos ou alterações nos padrões de consumo – estes que são atualmente influenciados por lógicas construídas no ambiente das redes sociais, desprovidas das mesmas razões e padrões de conduta dos humanos de outrora. Startups e grandes empreendimentos coabitam o espaço corporativo, gerando novas experiências de produção e, também, de trabalho (com modelos cada vez menos vinculados ao tipo “subordinado”).
Não fosse suficientemente inquietante e desconfortável o cenário supra descrito, autores como Cascio<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> apontam que o mundo VUCA já cedeu lugar ao mundo BANI<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, outro acrônimo que, a sua vez, pretende dizer a realidade como frágil, ansiosa, não linear e incompreensível. Assim, a volatilidade é potencializada pela fragilidade; incertezas evoluem para ansiedade; a complexidade amplia-se com a não-linearidade e a ambiguidade trona-se total incompreensão.
Nessa linha de raciocínio, não é possível, tampouco eficiente, a atuação de coletivo trabalhista que busque, apenas, atender aos anseios de estabilidade e segurança jurídica das gerações anteriores, que regulavam as relações de trabalho pela via legislativa e buscavam perenizar negócios jurídicos (mesmo que essencialmente provisórios, como os acordos e convenções coletivas).
Esta forma de vida e relação, por sinal, já não existe mais.
Se os tempos são VUCA e BANI, deve-se resgatar que as negociações coletivas são lumiarmente aliadas da segurança jurídica, pois conseguem normatizar as relações de trabalho, de forma particularizada, modulada e maleável, exatamente o que se necessita nesses momentos.
Fazer da negociação coletiva algo diverso do que sempre foi (ou deveria ter sido) é negar sua característica vanguardista. Ou seja, as negociações coletivas, desde o século passado, estão preparadas para funcionar em mundos VUCA e BANI.
O problema foi a distorção histórica de seu uso e, agora, a barreira comportamental de comodismo, ranço ou medo dos atores negociais em enxergar o momento social, ético, econômico e tecnológico completamente diferente das décadas de 80 e 90, o que exige dos negociadores muito mais do que discursos ideológicos e palavras de ordem impregnadas de naftalina.
É preciso ver a realidade como ela é e, a partir desta visão (que também entendemos ser vertiginosa e assustadora), adaptar-se. Os sindicatos precisam mais do que isso, devem reinventar-se. O pensamento retrógrado e o apego a argumentos e práticas do passado só prejudicam aos representados, em especial os trabalhadores, fazendo com que se reforce o senso comum de que os sindicatos podem ter “perdido função”.
Negociadores, dirigentes sindicais e demais atores do cenário das relações coletivas de trabalho: é hora de despertar e visualizar que a reiteração histórica de cláusulas em instrumentos coletivos não é a meta. A meta é construir segurança jurídica dentro do caos – que não é proporcionado pelos empregadores ou pelos governos, mas sim pelas mudanças globais, irresistíveis, inexoráveis, irrefreáveis – com criatividade, empatia e suficiente maleabilidade.
Seguir olhando pelo retrovisor e clamando pelo retorno dos “bons tempos passados” é enterrar o movimento sindical, este sim uma conquista histórica para a justiça social.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Neste sentido, ver a compilação dos dados da pesquisa, disponível no link: &lt;<a href="https://static.poder360.com.br/2021/05/boletim-salariometro-202105-embargo.pdf">https://static.poder360.com.br/2021/05/boletim-salariometro-202105-embargo.pdf</a>&gt;, vinculado ao projeto “salariômetro”, da própria FIPE.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> DCG-1001203-57.2020.5.00.0000, Redator Designado Ministro Ives Gandra Martins Filho, SDC, DEJT 5/11/2020. TST-ES-1000129-65.2020.5.00.0000.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para saber mais, ler: Sindicatos e suas conquistas históricas: conheça as principais conquistas dos sindicatos. Disponível em: &lt;<a href="http://fenatracoop.com.br/site/conteudo/31406/sindicatos-e-suas-consquistas-hist-ricas-conhe-a-as-principais-conquistas-dos-sindicatos">http://fenatracoop.com.br/site/conteudo/31406/sindicatos-e-suas-consquistas-hist-ricas-conhe-a-as-principais-conquistas-dos-sindicatos</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Entendendo-se estas como as que são propensas a mudar de uma hora para outra, às vezes de forma imprevisível.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. passim
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Para saber mais, resumidamente, sobre o mundo VUCA, acesse: &lt;<a href="https://app.startse.com/artigos/mundo-vuca-o-que-e-o-conceito-e-como-se-preparar">https://app.startse.com/artigos/mundo-vuca-o-que-e-o-conceito-e-como-se-preparar</a>&gt;.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CASCIO, J. Facing the age of chaos. Disponível em: &lt;<a href="https://medium.com/@cascio/facing-the-age-of-chaos-b00687b1f51d">https://medium.com/@cascio/facing-the-age-of-chaos-b00687b1f51d</a>&gt;.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Para saber mais, resumidamente, sobre o mundo BANI, acesse: &lt;<a href="https://app.startse.com/artigos/mundo-bani-o-que-e-esse-conceito">https://app.startse.com/artigos/mundo-bani-o-que-e-esse-conceito</a>&gt;.

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As 'conquistas históricas' na perspectiva da sociedade líquida 

Negociação coletiva na pós-modernidade

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