Opinião e Análise

Anna Clara Gontijo Balzacchi

Marcelise Azevedo

Mais de dois anos após o início de uma pandemia que mobilizou todo o planeta e que teve como uma das poucas formas de combate o isolamento das pessoas, colocando todos e todas confinados em suas casas, já é possível começarmos a avaliar o que representou esse momento dramático. Neste artigo, especialmente, buscaremos pontuar as transformações para as mulheres nas suas vidas familiares, pessoais e no mundo do trabalho.
Importante destacar, desde logo, que em um mundo pautado pela lógica neoliberal, individualizar ainda mais a responsabilidade com os cuidados e com a própria sobrevivência caiu como uma luva. O neoliberalismo consiste em uma engenharia social, não só de ordem econômica, mas multidisciplinar, que confere liberdade, direito intrinsecamente humano, às empresas e ao mercado, mas responsabiliza individualmente o ser humano por suas próprias condições de vida, por meio da moral, pois os indivíduos deveriam parar de procurar “proteção” nos braços paternos do Estado-providência a fim de assumir a “responsabilidade” por suas vidas.
Assim, se no neoliberalismo o mercado é fundamento da liberdade e, consequentemente, a demonização do social, a doutrina vai de encontro com a Constituição da República de 1988, na medida que esta funda-se na dignidade da pessoa, na sociedade política, democrática e inclusiva, o que inclui o direito fundamental ao trabalho digno. Não é possível falar, dentro do sistema capitalista, de dignidade da pessoa humana sem um direito do trabalho regulado, uma vez que é por meio do trabalho que se tem acesso a subsistência.
E, em nossa sociedade patriarcal, o isolamento social foi um castigo para as mulheres mães e especialmente as mães trabalhadoras. Colocadas em casa sem nenhum auxílio, perderam a rede de apoio formada por outras mulheres – a avó, a tia, a prima, a amiga, a professora. Junto à divisão sexual do trabalho, que estrutura nossas vidas e encarrega as mulheres do cuidado doméstico e com as crianças, as mulheres se tornaram, além de mães, também professoras, faxineiras, cozinheiras, recreadoras 24 horas por dia sem se desincumbir da necessidade de cumprir suas jornadas de trabalho remunerado e manter o sustento de seus lares.
Mesmo com tanto esforço, as mulheres foram punidas pelo mercado com o desemprego – muitas vezes justificado por suposta queda de produtividade, facilmente explicável com tanto trabalho, produtivo e reprodutivo, para ser feito ao mesmo tempo. Evidentemente, as mulheres não conseguem produzir tanto quanto antes da pandemia. São inúmeras as pesquisas e reportagens demonstrando como a desigualdade de gênero impactou a produção das mulheres, seja a produção acadêmica, seja as horas trabalhadas para as empresas, conforme estudo da Universidade de Washington<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que aponta a redução em duas horas trabalhadas por semana pelas mulheres, enquanto as horas trabalhadas pelos homens permaneceram inalteradas.
Claro que esses cálculos levam em conta o chamado trabalho produtivo, aquele trabalho que a sociedade reconhece como trabalho porque é o que “leva dinheiro para casa”. A verdade é que as mulheres estão trabalhando muito mais do que antes, estão exaustas <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. E adentram o terceiro ano da pandemia exaustas e desempregadas, indicam os dados sobre desemprego.
No primeiro trimestre de 2021, período em que a pandemia alcançou seu maior pico no Brasil, a taxa de desemprego entre mulheres atingiu seu auge na série histórica da PNAD do IBGE, com 17,9% de mulheres desempregadas, enquanto entre os homens a taxa era de 12,2%. Ao longo do tempo, esse dado não mudou muito. No início do primeiro semestre de 2022, quando deveria ter ocorrido a retomada da economia pós-pandemia, a taxa de mulheres desempregadas chegou a 13,9%, e a dos homens 9%.
Ou seja, uma vez que as mulheres não estão mais produzindo tanto quanto antes, o mercado de trabalho resolveu que a melhor solução seria dispensar as mulheres, deixá-las ainda mais desamparadas, empobrecidas. Afinal, a lógica do mercado é sempre maximizar a produção e diminuir os custos.
E isso não é uma surpresa. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), nesta pandemia infindável, nos momentos em que a economia apresentou leve recuperação, esta não incluiu as mulheres. Dos 480,3 mil vínculos empregatícios formais perdidos em 2020, 96% pertenciam a mulheres <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Todos esses dados pioram de acordo com a cor da pele da mulher, de sua escolaridade, quantidade de filhos e a idade deles. Não por acaso, 37% das mulheres não querem ter filhos <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, os ônus do cuidado que a sociedade impõe e que foram amplificados pela pandemia são demasiadamente grandes. Não se trata de cuidado só com os filhos, é o cuidado com a casa, com os doentes, com os idosos – 50% das mulheres brasileiras cuidaram de alguém na pandemia.
Exaustas e empobrecidas, a pergunta que fica é: o que nós que sobrevivemos à pandemia iremos fazer? Como podemos cumprir o projeto constitucional de igualdade e possibilitar o acesso a uma vida digna para as mulheres? E ainda, o que a legislação fez para tentar amainar tantos sacrifícios e perdas das mulheres dentro do mundo do trabalho?
Aparentemente, a escolha considerada recentemente foi isolar e tornar as mulheres ainda mais vulneráveis. Em março, o governo federal editou dois decretos direcionados às mulheres, o Decreto nº 10.987, instituindo o Programa Mães do Brasil, com o fim de amparar as mulheres no exercício da maternidade desde a concepção até os cuidados com os filhos, e o Decreto n° 10.988, que institui a Estratégia Nacional de Empreendedorismo Feminino — Brasil para Elas e o Comitê de Empreendedorismo Feminino. A análise do conteúdo das referidas normas aponta se tratar de uma verdadeira armadilha.
O Decreto n° 10.987 foca o "fortalecimento dos vínculos familiares", no exercício integral da maternidade, além dos direitos das crianças nascidas e "por nascer". Já o Decreto nº 10.988, que incentiva o empreendedorismo feminino, apenas vem reforçar a individualização da responsabilidade, longe da teia protetiva do emprego formal.
Sob o enganoso nome de empreendedorismo feminino, as mulheres seguem fazendo o que sempre fizeram para sustentar suas famílias: deram um jeito, "se viraram", caminhando para o lado da absoluta desproteção, permanecendo à margem da proteção mínima que a legislação trabalhista ainda oferece.
Porém, importante destacar, não foi com a pandemia que as mulheres começaram a buscar alternativas ao mercado formal, elas sempre venderam cosméticos, comida, fizeram unha, faxina. Ou seja, o chamado empreendedorismo feminino é apenas uma nomenclatura contemporânea utilizada para disfarçar os esforços de sobrevivência das mulheres no Brasil desde o tempo das chamadas escravas de ganho.
[caption id="attachment_366548" align="aligncenter" width="886"]<img class="wp-image-366548 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/image-5.png" alt="" width="886" height="640" /> Crédito: Marc Ferrez/Coleção Instituto Moreira Salles[/caption]
Juntos, ambos os decretos formam um combo de controle reprodutivo, individualizando ainda mais a responsabilidade praticamente integral das mulheres pelo sustento e cuidado, confinando-as em seus lares, com as supostas desculpas de que assim teriam flexibilidade, autonomia, palavras mágicas no mundo neoliberal, mas que só significam que elas estão sozinhas e desprotegidas, que elas têm que "se virar" para viver a maternidade integralmente e colocar comida na mesa todos os dias.
Queremos acreditar que tempos de crise como o que vivemos servem para repensar o mundo e retomar questões que ficaram para trás na história. O primeiro seria reconhecer a importância do cuidado e valorizá-lo. Ora, se todos nós estamos hoje vivos, é porque fomos cuidados por mulheres, ao menos em algum momento da vida. Uma nova ética que signifique melhor remuneração para trabalhadoras do cuidado, enfermeiras, professoras, babás, bem como o reconhecimento do chamado trabalho reprodutivo, aquele feito em casa e que a priori não gera renda. A priori porque pesquisas mostram que esse trabalho não remunerado gera uma contribuição de US$ 10,8 trilhões à economia global <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, trilhões que as mulheres deixam de ganhar.
O segundo passo seria a redução da jornada de trabalho. O mundo do trabalho foi moldado por homens, para homens, que não precisavam chegar em casa e exercer outras tarefas como cuidados com a prole, providências de alimentação e higiene. Como pontua Silvia Federici, “o capitalismo explora os homens, mas deu a eles uma serva”. Consequentemente, a jornada de oito horas, com possibilidade de horas extras, foi pensada para aquele que chega em casa e encontra comida pronta, casa limpa, filhos banhados e pode, ao fim da jornada de trabalho, descansar em casa.
Com efeito, a presença das mulheres no mercado de trabalho não significou uma mudança na divisão sexual do trabalho, um aumento da participação dos homens nas atividades domésticas, mas uma adequação das mulheres ao mercado de trabalho. O que houve, no caso das mulheres brancas e brasileiras, foi uma delegação do trabalho doméstico predominantemente para as mulheres negras, mas também para as brancas pobres. Essas mulheres, por sua vez, promoveram um rearranjo do cuidado com outras mulheres em suas famílias e comunidades.
A redução de jornada para homens e mulheres possibilitaria uma melhor conciliação entre o trabalho produtivo e o reprodutivo para ambos os sexos, com uma maior participação dos homens nas atividades domésticas e uma maior equalização das desigualdades do mercado de trabalho. Mulheres conseguiriam competir com homens por bons cargos e melhores salários em condições mais equivalentes.
Evidentemente que não deve ser uma redução de jornada que signifique a precarização, com redução de salário, trabalho flexível, infinitas horas extras, mas que permita que todos tenham tempo de, além de ganhar dinheiro, melhorar a qualidade de vida, cuidar de si mesmo, do próximo, da casa, reduzir adoecimentos, melhorar o convívio intrafamiliar e social, enfim, contribuir na construção de uma sociedade mais saudável.
Ter como política pública prioritária a busca pelo emprego pleno e protegido, aquele que por meio de sua teia protetora possibilita a segurança financeira e, consequentemente, psicológica das mulheres, deve ser uma meta importante quando pensamos na legislação trabalhista e no próprio Direito do Trabalho.
Repensar o mundo do trabalho e sua regulamentação, reorganizá-lo, levando-se em consideração a perspectiva das mulheres, o trabalho doméstico e o cuidado é essencial para a superação da crise escancarada pela pandemia, para a redução das desigualdades, do empobrecimento das mulheres e do desemprego, além da retomada do projeto constitucional de justiça social e centralidade da pessoa humana.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/07/14/desigualdade-de-genero-impacta-produtividade-na-pandemia.ghtml">https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/07/14/desigualdade-de-genero-impacta-produtividade-na-pandemia.ghtml</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://oglobo.globo.com/celina/pesquisa-mostra-que-70-das-mulheres-estao-mais-cansadas-hoje-do-que-antes-da-pandemia-24558737">https://oglobo.globo.com/celina/pesquisa-mostra-que-70-das-mulheres-estao-mais-cansadas-hoje-do-que-antes-da-pandemia-24558737</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/12/07/com-96-das-vagas-perdidas-por-mulheres-pais-destroi-480-mil-postos-formais-em-2020.ghtml">https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/12/07/com-96-das-vagas-perdidas-por-mulheres-pais-destroi-480-mil-postos-formais-em-2020.ghtml</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> No Brasil, 37% das mulheres não querem ter filhos no futuro, diz pesquisa... - <a href="https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/25/diafragma-esta-em-alta-conheca-os-pros-e-contras-do-metodo-contraceptivo.htm?cmpid=copiaecola">https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/25/diafragma-esta-em-alta-conheca-os-pros-e-contras-do-metodo-contraceptivo.htm?cmpid=copiaecola</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Dados da Oxfam: <a href="https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/">https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/</a>

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JOTA

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