Opinião e Análise

Flavia Annenberg

Em <a href="https://www.jota.info/legislativo/mulheres-em-relgov-o-dia-a-dia-da-profissao-num-ambiente-ainda-muito-masculino-29092021">matéria</a> publicada no dia 29 de setembro de 2021, o repórter Érico Oyama apresentou questões importantes sobre o dia-a-dia das mulheres que trabalham com Relações Governamentais. Nesse "ambiente ainda muito masculino", as mulheres que lidam diretamente com os poderes Executivo e Legislativo são tratadas de forma desigual.
Como bem apontado na reportagem, sofrem com a imposição de padrões estéticos, dúvidas sobre sua capacidade profissional e questionamentos acerca de sua autoridade para tomada de decisões. Também escutam explicações desnecessárias, que passam pelo pressuposto de que sabem menos do que os demais, e são interrompidas enquanto falam.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A discriminação de gênero - ainda pior para mulheres que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, negras, indígenas, idosas ou com deficiência - não é novidade na nossa sociedade, mas pouco se fala sobre isso na fronteira entre a iniciativa privada e o setor público.
O estigma ligado ao lobby, somado ao machismo estrutural, acabam afastando da pauta os problemas que as mulheres enfrentam no ambiente político quando se apresentam como a face externa de uma empresa, organização ou setor. Existe uma naturalização da discriminação, tida como inerente à atividade da mulher que se aventura em um espaço que não teria sido feito para ela.
É preciso, no entanto, falar cada vez mais sobre isso. Além dos obstáculos ilustrados na reportagem já mencionada, há outro elemento grave nesse cenário: o assédio. Enquanto o mundo corporativo já deu passos importantes para combater essa prática e os órgãos públicos têm desenvolvido normas específicas anti assédio, o que acontece na divisa entre esses dois universos fica em uma espécie de limbo.
Empresas costumam ter mecanismos de compliance estruturados para lidar com o assédio, incluindo a existência de canais de denúncia, princípios de não retaliação, processos de investigação, entre outros. Nas instituições públicas, também temos experiências interessantes, ainda que com limitações. Por exemplo, a <a href="https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/cartilha%20combate%20ass%C3%A9dio%20-%20FINAL2(1).pdf">Lei 16.488/2016</a>, que trata dos mecanismos de combate ao assédio na administração municipal de São Paulo.
<blockquote class="jota-article__eye">Já para as mulheres que fazem parte de uma estrutura privada e sofrem o assédio em local regido por outras normas, os caminhos são mais obscuros. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em 2018, com mulheres do "Women in Government Relations", mostrou que 83% das entrevistadas que trabalham ou atuam com relações governamentais no Capitólio não têm certeza de seus direitos para denunciar o assédio e 84% do total temem retaliação.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a></blockquote>
De acordo com o pró-reitor de recursos humanos da Universidade de Georgetown, responsável pela investigação de centenas de casos de assédio sexual, ele recebe "reclamações todos os dias de mulheres lobistas [no nível federal] que sentem que foram assediadas, mas não têm nenhum recurso legal realista para fazer algo a respeito”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Além da falta de alternativas jurídicas, ir a público, segundo ele, também não é uma opção tendo em vista que isso poderia destruir a possibilidade de um político homem querer falar novamente com quem fez a denúncia.
Alguns acontecimentos ilustram esse receio. Por exemplo, a situação em que a disponibilização de uma forma de contato, como e-mail ou telefone, é intencionalmente confundida com intimidade. Mulheres profissionais de relações governamentais têm a experiência comum de, após reuniões de trabalho, receber mensagens constrangedoras com convites indesejados.
À recusa do convite, seguem-se críticas à suposta falta de "capacidade estratégica", como se estivessem negando uma oportunidade de aproximação, e promessas de suspensão de acesso a um determinado ambiente, como um gabinete. Considerando que, nesse trabalho, a construção de diálogo e a discussão de pautas com autoridades públicas são fundamentais, esse tipo de atitude se apresenta como uma espécie de ameaça de isolamento. É uma barreira que, definitivamente, não se impõe aos homens.
Mas quais seriam as soluções? Uma experiência interessante nos Estados Unidos apostou na estratégia de denúncia coletiva: a partir de um caso de assédio contra uma profissional representante de uma empresa, mais de 150 outras mulheres assinaram uma carta "se posicionando contra o assédio sexual cometido por membros do Legislativo da Califórnia e exigindo proteção e responsabilidade"<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. O episódio levou o tema ao debate público e acabou resultando na criação de um site para demonstração de apoio e na aprovação de leis anti assédio em diversos estados.
As ouvidorias e corregedorias dos órgãos públicos também podem servir a essa finalidade. O decreto municipal 57.444/2016, que regulamenta a lei de combate ao assédio da cidade de São Paulo mencionada, determinou a disponibilização aos agentes públicos, de "canal centralizado de atendimento, especializado na orientação e recebimento de denúncias relativas à situação de assédio sexual, assegurado o sigilo de informações".
Hoje, há uma <a href="https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/ouvidoria/fale_com_a_ouvidoria/index.php?p=235139">ouvidoria</a> aberta para receber esse tipo de denúncia. Essa lei definiu, ainda, que "qualquer pessoa pode ser alvo de assédio”, “independente do tipo de vínculo laboral da pessoa assediada com a Administração Pública". Trata-se de solução legal inovadora, que abarca também quem interage com a Administração e não só quem trabalha dentro dela.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Essa alternativa, no entanto, é pouco conhecida e não há dados públicos que permitam entender se ela tem sido usada por pessoas que não pertencem aos quadros do Executivo ou do Legislativo.
Isso mostra como os meios disponíveis são pouco transparentes e, mesmo quando existem, o medo de denunciar ainda é enorme. Afinal, não há salvaguardas que passem a segurança de que a pessoa que denuncia não sofrerá consequências por isso. No artigo "<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/qual-o-custo-do-assedio-sexual-no-ambiente-de-trabalho-22022021">Qual o custo do assédio sexual no ambiente de trabalho?</a>", Thayná Yaredy, Manuela Camargo, Isabela del Monde e Adriana Vojvodic comentam algumas dessas dificuldades estruturais constatadas na auditoria “Assédio Sexual no Ambiente de Trabalho da Administração Pública Federal”, conduzida pelo Government Accountability Office (GAO), entidade de fiscalização superior dos Estados Unidos. Em alguns órgãos, havia problemas de conflito de interesses, inexistência de um ente central para recebimento de denúncias e falta de orientação sobre como denunciar.
Outra saída adotada em alguns locais visa impor uma regra segundo a qual um membro do parlamento ou do governo nunca deve se encontrar com uma mulher sem outra pessoa presente. Apesar da finalidade correta de proteção, críticas apontam para o fato de que isso pode dificultar as interações com mulheres que exercem essa função. Para autoridades, acaba ficando menos trabalhoso se reunir com homens, e, para empresas, pode se tornar mais custoso selecionar mulheres para essa posição considerando a necessidade de deslocamento de duas pessoas ao invés de uma. Além disso, a medida pode dar a entender que seu objetivo é coibir acusações falsas, como se as mulheres inventassem denúncias de assédio. O risco, enfim, é de se colocar a culpa na vítima e não no assediador<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Tendo essas propostas em mente, o mais importante é compreender que as soluções individuais, que encorajam comportamentos do tipo "faça acontecer", são tímidas. Mudanças institucionais tendem a ser mais efetivas e precisam ser debatidas nas esferas política e jurídica.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Ainda caminhamos lentamente, mas não existe mudança sem esse primeiro passo fundamental: falar sobre o assunto.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O livro “Relações Governamentais sob a Ótica Feminina”, comentado no artigo antes de seu lançamento, traz diferentes artigos sobre esses temas.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Women in Government Relations, <a href="https://www.wgr.org/page/Workplace_Anti-Harassment_Resources">Workplace Anti-Harassment in the Government Relations Profession</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Public Affairs Council, <a href="https://pac.org/impact/wheres-congress-states-localities-move-ahead-on-sexual-harassment">States, Localities Move Ahead on Sexual Harassment</a>, março 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Public Affairs Council, <a href="https://pac.org/impact/how-are-women-lobbyists-handling-harassment">How Are Women Lobbyists Handling Harassment?</a>, fevereiro 2018.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Em 2018, a aplicação dessa lei foi estendida à Câmara de Vereadores. Folha de São Paulo, <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/servidor-da-camara-de-vereadores-de-sp-e-exonerado-por-assedio-sexual.shtml">Servidor da Câmara Municipal de SP é exonerado sob suspeita de assédio sexual</a>, março 2018.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Public Affairs Council, <a href="https://pac.org/impact/how-are-women-lobbyists-handling-harassment">How Are Women Lobbyists Handling Harassment?</a>, fevereiro 2018, e <a href="https://pac.org/impact/wheres-congress-states-localities-move-ahead-on-sexual-harassment">States, Localities Move Ahead on Sexual Harassment</a>, março 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> É importante pontuar que, para qualquer caso de "importunação sexual", independentemente de onde ocorre, quem é autor e quem é vítima, há também a alternativa pela esfera penal, por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Lei/L13718.htm">Lei Federal nº 13.718/2018</a>. Fruto da pressão pela tipificação de uma conduta que não era abarcada pelos tipos penais de "assédio sexual", nem de "estupro", a lei criou o crime de “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Nesses casos, pode-se denunciar pelo Ligue 180 e registrar Boletim de Ocorrência.

Mulheres em RelGov: o limbo jurídico-institucional dos casos de assédio

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JOTA

As mulheres que lidam diretamente com os poderes Executivo e Legislativo são tratadas de forma desigual