Na mitologia grega, conta-se que as mulheres tinham o direito ao voto na época do Rei Cécrope. Quando este fundou Atenas ali brotaram oliveiras e uma fonte de água. O Oráculo de Delfos disse que a oliveira significava Atenas e que a fonte de água era Poseidon e determinou que os cidadãos deveriam escolher entre Atena ou Poseidon para nomear a cidade. Homens e mulheres votaram e Atena venceu por um voto.
Poisedon, com toda a sua ira, atacou a cidade com ondas gigantes. Para apaziguar o deus, as mulheres de Atenas aceitaram três severos castigos: perder o direito ao voto, que seus filhos não teriam o nome da mãe e que ninguém as chamaria de atenienses. Pela mitologia grega, no momento que Atenas, conhecida como berço da democracia, nasce, surge consigo a subordinação feminina e a exclusão das mulheres dos lugares públicos.
No decorrer da história, por séculos, as mulheres foram excluídas da esfera pública. Na modernidade, quando os discursos constitucionais se estruturam, em especial desde os primeiros teóricos do contrato social, a esfera de justiça é vista como domínio de chefes de família masculinos, responsáveis por criar as bases legítimas da sociedade. Já as mulheres foram confinadas à esfera privada, sendo responsáveis pelo cuidado e criação desenvolvidos no âmbito doméstico[1].
O Estado teve – e ainda tem – um papel fundamental na reprodução e manutenção dos papeis de gênero, que, por centenas de anos, impediram as mulheres de exercer profissões, cursar ensino superior, votar ou exercer cargos políticos. As conquistas são recentes, tanto que o primeiro país a garantir o voto para mulheres foi a Nova Zelândia, em 1893, e o último a Arábia Saudita, em 2011, e muitos desafios ainda pendem.
No Brasil, a redemocratização do Estado brasileiro trouxe consigo uma promessa de igualdade e transformação social. A Constituição de 1988, além de ser marco jurídico na transição democrática, elenca um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, pautando-se na igualdade sem distinções de qualquer natureza, destacando especificamente a igualdade de gênero (art. 5º, I), a fim de garantir a todos a plena participação democrática.
A qualidade democrática costuma ser medida por quatro dimensões[2]: 1) a vigência dos direitos políticos e da liberdade civis, 2) a governabilidade, 3) a representação e 4) a participação cidadã. Diversas promessas de 1988 ainda demandam concretização em todas estas frentes. Em especial, no sistema político-eleitoral brasileiro, ainda buscamos construir um país mais igualitário e representativo como forma de melhorar a sua qualidade democrática.
Para que o direito à igualdade seja efetivamente exercido é necessária a mudança de paradigmas nas relações públicas, que por sua vez são consequentes e geram consequências no âmbito privado, modificando-se os papeis exercidos apenas por homens e ratificados pelo Estado. Segundo Nancy Fraser, o político “fornece o palco em que as lutas por distribuição e reconhecimento são conduzidas”[3], sendo certo que participação das mulheres no cenário político institucional é indispensável para a efetiva transformação das estruturais sociais.
Mais que opinar sobre questões de gênero de forma a garantir que alcancem as mesmas condições que os homens, no âmbito político, as mulheres atuam de forma ativa em assuntos de interesse geral, sobre questões inerentes à promoção de uma sociedade justa e solidária e isso nos mais diversos setores da vida pública, como na economia, nos setores de transporte, de saúde, de previdência entre tantos outros. Há diversos estudos que relacionam o aumento da representação feminina nos parlamentos a políticas públicas relevantes, como a alocação de mais recursos para a saúde e a educação.[4]
No Brasil, o ingresso das mulheres nesses espaços de poder ocorre de forma lenta. A primeira mulher eleita para um cargo público foi Alziras Soariano em 1928 como prefeita na cidade de Lages (RS). Já Carlota Pereira de Barros foi primeira deputada federal (1933) e Professora Antonieta de Barros, filha de escravos, a primeira negra parlamentar (1934). Contudo, apenas em 1979 tivemos a primeira senadora, Eunice Michiles, e em 1995 a primeira governadora, Roseana Sarney. Somente no século 21, o Brasil elegeu sua primeira mulher presidente, Dilma Rousseff em 2010.
Ainda assim, passados mais de 30 anos da edição da Constituição de 1988, mulheres na política continuam sendo a exceção. O mais recente relatório da Inter-Parliamentary Union sobre a situação das mulheres na política em 1º de janeiro de 2020 aponta que o Brasil ainda está na lanterna.[5] Dos 191 países avaliados, ostentamos a vergonhosa 140ª posição. Estamos atrás de países que restringem direitos femininos, como o Marrocos (103ª), a Arábia Saudita (111ª), o Chade (134ª), o Egito (136) e o Gabão (139ª).
Este cenário nos mostra que caminhamos, mas ainda há muito por fazer. Um dos principais desafios é identificar as verdadeiras causas do déficit de representação feminina na política, a fim de que sejamos capazes de atuar para remover – quando menos, atenuar – os obstáculos. E, nessa análise, não se deve enxergar a mulher como sujeito universal: a desigualdade que sofrem as mulheres é particularizada e potencializada por outras diferenças, como a raça e a orientação sexual. O universo feminino é plural, complexo e diverso. Independente destes recortes múltiplos, há um consenso que há obstáculos majorados para as mulheres adentrarem no campo da política.
É preciso, preliminarmente, afastar argumentos infundados para a baixa representatividade política feminina. A alegação de que o eleitorado discrimina as mulheres não prevalece atualmente. Em recente pesquisa feita pelo Instituto Vox Populi,[6] apontou-se que o eleitorado considera as mulheres mais competentes, confiáveis, honestas e responsáveis ao ocuparem cargos públicos. Já a suposta justificativa de que mulheres não se interessam por política é refutado pelo percentual de filiação nos partidos: as mulheres em 2018 representavam 44,5% dos filiados dos partidos políticos e correspondiam a 64% dos novos filiados[7].
A permanente sub-representação das mulheres no legislativo brasileiro (atualmente em 14,6%[8]) decorre de entraves políticos institucionais, sociais e culturais mais profundos, que, nem por isso, podem ou devem ser naturalizados.
A desigualdade nos papeis de gênero no âmbito da família e das relações privadas questão ainda é uma importante amarra social que impede a efetiva participação das mulheres na política.
Como os afazeres e responsabilidade domésticas ainda continuam a cargo da mulher, ela dispõe de menos tempos para atividades político-partidárias. O grau de desigualdade na divisão sexual do trabalho combinado com múltiplas jornadas de trabalho impactam diretamente o engajamento da mulher comum na vida política.
Assim, para que haja uma igualdade de homens e mulheres nos lugares públicos, é necessária a mesma igualdade em âmbitos privados, o que corrobora a própria problematização da dicotomia. É imprescindível uma reformulação na divisão sexual do trabalho, sendo atribuído também aos homens as responsabilidades domésticas e parentais para que as mulheres adentrem o campo político em condição de paridade com as figuras masculinas.
No âmbito político-institucional, a tentativa de aumentar o número de mulheres nos parlamentos, por meio das cotas de 30% para candidaturas e outras medidas estabelecidas pelo STF e pelo TSE, como a distribuição proporcional de recursos dos fundos partidário e eleitoral (FEFC) para mulheres brancas e negras,[9] e a cota de mulheres em órgãos de direção partidária,[10] tem sido marcada por tentativas de burla e pela recalcitrância no seu cumprimento e efetivação. Exemplos evidentes são as candidaturas fictícias ou laranja, e o desvio de finalidade no uso dos recursos públicos destinados ao custeio das candidaturas femininas, que são canalizados ilicitamente para financiar candidaturas masculinas.
Mais recentemente, a atenção dos pesquisadores tem se voltado para a prática de atos que podem ser definidos como violência política de gênero, que também é efeito da tentativa de manutenção dos homens em seu lugar de privilégio. Para a deputada federal Margarete Coelho “violência política de gênero são ações ou condutas agressivas cometidas por uma pessoa ou instituição através de terceiros que causem dano físico, psicológico ou sexual contra uma mulher que esteja no exercício de representação política ou sua família para restringir o exercício de seu cargo ou induzi-la a tomar decisões contra sua vontade, seus princípio ou contra a lei”[11].
Ou seja, é considerada violência política de gênero desde agressões e constrangimento em redes sociais à recusa de direcionar recursos para campanhas femininas e até mesmo violências físicas sofridas por mulheres no exercício de seu mandato ou em pleito eleitoral.
Os exemplos da realidade são tantos que o tema se tornou objeto do Projeto de Lei – PL nº 4.963/2020 apresentado pela deputada federal Margarete Coelho no último dia 20 de outubro, que estabelece normas para prevenir, sancionar e combater a violência política contra mulheres ou em razão de gênero. O PL define violência política como qualquer ação, conduta ou omissão de violência física, sexual, psicológica, moral, econômica ou simbólica, realizada de forma direta ou através de terceiros, que represente uma ameaça à democracia ao causar dano ou sofrimento a mulheres ou a qualquer pessoa em razão do seu gênero, com o propósito de restringir, impedir ou dificultar o exercício de seus direitos políticos. Além disto, a Lei propõe a inclusão de artigos no Código Eleitoral para que se tipifique a prática[12].
A crise provocada pelo novo coronavírus apenas aprofunda as discriminações, potencializando o peso diferenciado da carga que recai sobre os ombros femininos. A divisão sexual do trabalho faz com que os efeitos da interrupção das atividades escolares e dos serviços domésticos prestados por terceiros escancarem ainda mais a discriminação. Isto, por certo, também terá seus reflexos no pleito eleitoral que se avizinha, aumentando a pressão social que atua sobre a mulher que busca se candidatar.
Nesse cenário, são ainda mais fundamentais políticas públicas, de modo imediato e mediato, que também vinculem o campo privado e garantam a efetiva consecução da promessa constitucional da igualdade substancial no campo político. Chegou a vez da mulheres de Atenas!
Episódio desta semana do ‘Sem Precedentes‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa a judicialização precoce da vacinação contra a Covid-19 no STF. Ouça:
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[1] DUPRAT, Deborah. Igualdade de Gênero, Cidadania e Direitos Humanos in CASTILHO, Ela Weicko Volkmer et al (orgs). Perspectivas de Gênero e o sistema de Justiça Brasileiro. Brasília: ESMPU, 2019, pp. 199-214, p. 200.
[2] CORBETTA, José; PEREZ-LIÑAN, Aníbal. Calidad de la democracia. Un análisis de la trayectoria argentina. Revista Instituciones y Desarrollo, Barcelona, n. 10, 2001, pp. 149-169, apud COELHO, Margarete de Castro. O teto de cristal de democracia brasileira: abuso de poder nas eleições e violência política de contra mulheres. Belo Horizonte: Fórum, 2020.
[3] FRASER, Nancy. Democratic justice in a globalizing age: age thematizing the problem of the frame. In: KARRANGIANNIS, N. (eds). Varieties of world making: beyond globalization. Liverpool: Liverpool Press, 2005. apud DUPRAT, Deborah. Igualdade de Gênero, Cidadania e Direitos Humanos in CASTILHO, Ela Weicko Volkmer et al (orgs). Perspectivas de Gênero e o sistema de Justiça Brasileiro. Brasília: ESMPU, 2019, pp. 199-214, p. 210.
[4] Veja, por exemplo, Bertocchi, Graziella (2011) “The enfranchisement of women and the welfare state”. European Economic Review, 55: 535–553; Chattopadhyay, Raghabendra, Duflo, Esther (2004). “Women as policy makers: evidence from a randomized policy experiment in India”. Econometrica 72 (5):1409–1443.
[7] COELHO, Margarete de Castro. O teto de cristal de democracia brasileira: abuso de poder nas eleições e violência política de contra mulheres. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 156.
[9] Supremo Tribunal Federal, ADI nº 5617, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, j. em 15.03.2018, e o Tribunal Superior Eleitoral, Consulta nº 0600252-18/DF, sob a relatoria da Min. Rosa Weber, j. em 22.05.2018; e Consulta nº 0600306-47.2019.6.00.0000, sob a relatoria do Min. Luís Roberto Barroso.
[10] TSE, Consulta nº 0603816-39, de relatoria da Ministra Rosa Weber, j. em 19.05.2020
[11] COELHO, Margarete de Castro. O teto de cristal de democracia brasileira: abuso de poder nas eleições e violência política de contra mulheres. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 256.
[12] O art. 4º do PL 4693/2020 – a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), passa a vigorar com a inclusão dos seguintes artigos:
“Art. 237-A. Para o exercício de seus direitos de participação política, o Estado garantirá às mulheres e às pessoas de qualquer gênero igualdade de oportunidades e tratamento, não discriminação e equidade no acesso às instâncias de representação política e no exercício de suas funções públicas”
“Art. 301-A. Usar de violência política contra as mulheres ou em razão de gênero, com o propósito de restringir, impedir ou dificultar o exercício de seus direitos políticos.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e pagamento de 250 e 300 dias-multa”
“Art. 323-A. Produzir divulgar, transmitir ou retransmitir propaganda eleitoral que contenha violência política.
Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e pagamento de 150-200 dias-multa
Parágrafo único. As Penas cominadas neste artigo serão calculadas em dobro se a violência for divulgada pela internet ou por meio de serviços de mensagem privada.
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