Opinião e Análise

Gisele Reis

Março não deve ser o único mês em que as reflexões acerca do espaço da mulher na sociedade devem ser debatidas, mas tradicionalmente é um momento em que essas análises sobre a trajetória feminina no contexto social, político e ideológico se intensificam. De fato, não se pode negar que houve avanços significativos a partir da persistência feminista ao longo dos anos na luta pela igualdade de gênero, mas os abismos entre homens e mulheres no que tange ao reconhecimento de direitos e protagonismo social demonstram que ainda há um longo caminho a trilhar.
A história revela que a busca pela emancipação das mulheres tem sua origem a partir do século XIX, fruto de um movimento feminino coletivo contra as péssimas condições de trabalho, exploração econômica, opressão, violência e negação de direitos políticos que decorreram fundamentalmente da concepção cultural de uma sociedade estruturalmente construída sob uma ideologia machista e patriarcal.
Essa circunstância relegou às mulheres invisibilidade, silenciamento, subalternidade e, também, os menores salários. Durante anos, a sociedade impôs obstáculos no campo do mercado de trabalho, impedindo-as de exercerem profissões tradicionalmente ocupadas por homens e é nesse contexto que se insere a advocacia criminal, encarada como um ofício "viril", destinada ao sexo masculino.
A atuação de mulheres na advocacia sempre foi muito desafiadora e multifacetada. Embora os dois primeiros cursos de direito tenham sido criados no Brasil por Dom Pedro I, em 11 de agosto de 1827, somente em 1906, após um longo período de embates jurídicos, é que Myrthes Gomes de Campos foi admitida na Ordem dos Advogados do Brasil, inobstante tenha concluído o curso de direito em 1898. Um fato interessante é que ela começou na profissão atuando como advogada de defesa no Tribunal do Júri.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Esperança Garcia, uma mulher negra e escravizada, demorou muito mais para obter o reconhecimento do seu trabalho. Somente em novembro de 2022, por ato do Conselho Federal da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">Ordem dos Advogados do Brasil</a><a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, ela foi reconhecida como primeira advogada do Brasil. Foram dois séculos e meio de espera. Ela, em 1770, redigiu Habeas Corpus, em formato de carta, ao governador da Capitania de São José do Piauí, pedindo a proteção do Estado, denunciando a violência da sociedade escravocrata contra crianças e mulheres negras. Esse documento histórico na luta por direitos é considerado o primeiro habeas corpus do Brasil<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Não há dúvidas de que a atuação precursora dessas figuras femininas na advocacia criminal ainda inspira muitas outras a atuarem na profissão com o objetivo de assegurar aos réus um julgamento alicerçado na democracia, pautado no devido processo legal, no direito ao contraditório e à ampla defesa, contribuindo, dessa forma, para a correta aplicação do direito.
A área criminal é um ramo da advocacia dedicado a questões muito sensíveis para o indivíduo e para a coletividade. Lida com a proteção de bens jurídicos importantes tais como a  liberdade, segurança pública, a presunção de inocência e com a devida intervenção estatal para estabelecimento da ordem pública e paz social. Ir contra as mazelas de um sistema penitenciário reiteradamente violador de direitos humanos fundamentais, lotado de pretos, pobres e periféricos marginalizados e repudiar os abusos perpetrados contra a população carcerária, exige muita coragem porque caminha na contramão dos que defendem o encarceramento em massa como política criminal e social. Talvez isso explique um pouco a razão pela qual essa área profissional gera tanto incômodo.
Inobstante a nobreza da profissão, ainda se fazem presentes preconceitos com os profissionais desta área e em relação às advogadas que nela atuam, a discriminação revela-se bem maior. Os desrespeitos às prerrogativas são muito frequentes e não são raras as vezes em que questionadas sobre a capacidade intelectual e emocional de lidarem com o direito penal e com todas as questões jurídicas correlatas, inclusive quanto ao fato de frequentarem delegacias e unidades prisionais. Na verdade, são subestimadas por ser mulher.
O trabalho das advogadas criminalistas enriquece o debate jurídico, impacta não apenas no modo como a advocacia é exercida, mas, sobretudo, nas questões jurídicas abordadas, além de contribuírem para um sistema de justiça penal mais justo e democrático.
A atuação da mulher advogada criminalista se revela bastante desafiadora. Seus valores são questionados a todo tempo, as cobranças sobre postura, comportamento e até estética também são muito frequentes. Um triste episódio recente envolvendo a advogada Marília Brambilla chamou muita atenção da comunidade jurídica. O Promotor de justiça em atuação no Tribunal do Júri da comarca de Alto Paraíso/GO a chamou de feia no meio do julgamento afirmando que se fosse beijar alguém ela não seria escolhida. O julgamento foi anulado e o ato misógino, desprovido de ética profissional e desrespeitoso gerou incômodo geral<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A primeira mulher a presidir a Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, Patrícia Vanzolini, também já foi vítima de ofensas e desrespeito. Ao assumir a defesa do empresário Thiago Brennand, acusado de crimes sexuais sofreu inúmeras críticas, inclusive de algumas colegas de profissão, mesmo tendo um histórico de luta a favor dos direitos das mulheres.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
No Brasil, cada vez mais a defesa criminal tem sido exercida por mulheres, todavia advogadas que representam suspeitos ou acusados de crimes sexuais, violência doméstica, feminicídio ou quaisquer outros ilícitos em que figure como vítima uma mulher,  enfrentam estigmas e pressão social mais pesada, em que pese estarem cumprindo seu papel profissional na defesa de uma pessoa (seja homem ou mulher) que pode ou não ser inocente com a missão de concretizar as garantias e direitos fundamentais consagrados na carta constitucional a cada ser humano.
Por mais óbvio que pareça, é sempre bom ressaltar que a advogada ao assumir uma defesa criminal, não defende o fato criminoso e sim o cidadão, que tem, sob a base de um Estado Democrático, a garantia de acesso a todos os meios de defesa. Lamentavelmente, os pré-julgamentos sociais e os anseios punitivistas acabam ofuscando o direito de todo cidadão de ter respeitado seus direitos e garantias assegurados na Constituição Federal e minam o exercício profissional de advogadas empenhadas na correta aplicação da constituição e da legislação, nos casos em que atuam.
Esses episódios vividos por mulheres, advogadas experientes, qualificadas e extremamente competentes representam alguns dos tipos de discriminação e são espécies de constrangimento sofridos por aquelas que optam por exercer livremente sua profissão.
A advogada criminalista exerce função essencial à justiça, segue vencendo sexismos, silenciamentos, abrindo e conquistando espaços, desafiando estereótipos e rompendo paradigmas, mas mantém, sobretudo, o compromisso de exercer a advocacia com respeito, dignidade e independência na missão maior de fazer valer o primado basilar do direito insculpido no inciso LVII do artigo 5º da CF, que assegura que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal;FERREIRA, Tânia Maria T. B.  Myrthes Gomes de Campos (1875-?): Pioneirismo na luta pelo exercício da advocacia e defesa da emancipação feminina. Disponível em: <a href="https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/30908/17997">https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/30908/17997</a>. Acesso em 26/03/2024
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a><a href="https://www.oab.org.br/noticia/60503/esperanca-garcia-e-reconhecida-pelo-conselho-pleno-como-a-primeira-advogada-brasileira">https://www.oab.org.br/noticia/60503/esperanca-garcia-e-reconhecida-pelo-conselho-pleno-como-a-primeira-advogada-brasileira</a>. Acessado em 24/03/2024.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://primeirosnegros.com/esperanca-garcia-o-primeiro-habeas-corpus/">https://primeirosnegros.com/esperanca-garcia-o-primeiro-habeas-corpus/</a>. Acessado em 23.03.2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.metropoles.com/distrito-federal/advocacia-nao-e-para-covardes-diz-advogada-chamada-de-feia-em-juri">https://www.metropoles.com/distrito-federal/advocacia-nao-e-para-covardes-diz-advogada-chamada-de-feia-em-juri</a> Acessado em 23.03.2024
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.youtube.com/watch?v=x4yHl3kvMj4&amp;t=84s">https://www.youtube.com/watch?v=x4yHl3kvMj4&amp;t=84s</a>

estatua da justiça

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JOTA

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