Opinião e Análise

Joyce Dias

Mulher e migrante: “As ucranianas são ‘fáceis’ de pegar por serem pobres”; “A fila de refugiados de guerra tem mais mulheres bonitas do que a ‘melhor balada do Brasil”; “O Brasil não pode ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”; “O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer. Desculpem aqui as mulheres tá?”; “As mulheres brasileiras são uma mercadoria”.
Essas frases foram ditas por homens em cargos públicos, incluindo um ex-deputado e o presidente. A última foi dita por um professor universitário em Portugal.
São apenas alguns exemplos de que mulheres migrantes são vítimas de discriminação, assédio e violência em razão da objetificação do corpo feminino e da interseccionalidade entre gênero e nacionalidade.
O termo “interseccionalidade” tem origem nas feministas negras e foi conceituado por Kimberlé Crenshaw para tratar da interação entre diferentes identidades sociais, em especial raça e gênero. No entanto, outros fundamentos discriminatórios, incluindo nacionalidade, também contribuem para a opressão da mulher.
Esses fundamentos devem então ser analisados de forma conjunta e não isoladamente, compreendendo-se as especificidades a que as mulheres estão sujeitas nos processos migratórios internacionais.
Por muitos anos, a mulher sequer foi considerada como sujeito nesses processos, sendo vista apenas como acompanhante do homem que emigrava. Foi somente a partir da década de 1970 que o tema começou a surgir em pesquisas acadêmicas e políticas públicas, quando se percebeu a relevância da migração feminina independente. Atualmente, <a href="https://www.un.org/en/desa/international-migration-2020-highlights">quase metade de todos os migrantes internacionais em todo o mundo é formada por mulheres e meninas</a>.
Na teoria, a igualdade de gênero e a proibição de discriminação entre nacionais e estrangeiros estão previstas em diversos instrumentos internacionais. O artigo 5º da Constituição assegura a igualdade entre homens e mulheres, bem como garante o tratamento igualitário entre brasileiros e estrangeiros. A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm">Lei de Migração</a> repudia expressamente a xenofobia, e a Lei 7.716/1989 define punição para os crimes resultantes de discriminação.
No entanto, apesar de todo esse arcabouço legal, mulheres que imigram para o Brasil são frequentemente vítimas de discriminação, como se vê, por exemplo, nos casos recentes divulgados na mídia sobre as venezuelanas e as dificuldades que essas encontram no mercado de trabalho e no acesso a serviços públicos essenciais.
Lamentavelmente, são raras (ou quase inexistentes) as decisões judiciais condenatórias pelo crime de xenofobia. Por outro lado, existem julgados recentes que já reconheceram, ao menos, a interseccionalidade entre gênero feminino e nacionalidade.
Em caso em que se garantiu o direito de petição e a possibilidade de prorrogação de visto a uma estudante haitiana, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/trf4">TRF4</a>) reconheceu que, além do racismo sofrido como mulher negra, a discriminação era agravada também pela sua condição de estrangeira africana <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em outro julgado, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região condenou empresa brasileira por alterar local de trabalho de uma empregada senegalesa grávida, reconhecendo a interseccionalidade entre proteção à maternidade e tutela da imigrante. A decisão destacou ainda a meta 8.8 da Agenda 2030 da ONU, que visa a proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Essa proteção no mercado de trabalho tem relação direta com a luta contra a violência doméstica, principalmente em casos em que a situação migratória da mulher é dependente do direito de permanência do marido ou companheiro. Situações de violência raramente serão denunciadas se houver risco de deportação. Por isso, é fundamental que a mulher tenha garantido seu direito de permanência no país após a denúncia.
Esse é um dos problemas que também afeta brasileiras que emigram para o exterior. Há anos, organizações não governamentais defendem a criação de políticas públicas voltadas para brasileiras no exterior, inclusive com a participação de mulheres na sua formulação, que facilitem denúncias de violência de gênero e que possam ser feitas no idioma português e com profissionais especializados. Isso porque mulheres migrantes, muitas vezes, têm dificuldade para acessar sistemas de proteção locais (se existentes) e são discriminadas até mesmo pelas próprias autoridades governamentais.
No entanto, o governo brasileiro praticamente não oferece políticas públicas migratórias com visibilidade às questões de gênero. Não há sequer dados categorizados por sexo no último <a href="https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/portal-consular/artigos-variados/comunidade-brasileira-no-exterior-2013-estatisticas-2020">levantamento do Ministério das Relações Exteriores</a> que estimou que a comunidade brasileira no exterior é de 4,2 milhões de cidadãos em 2020. Essa invisibilidade da mulher brasileira no exterior somente aumenta a sua vulnerabilidade.
Os desafios são ainda maiores em alguns países. Em Portugal, por exemplo, a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial divulgou em seu último <a href="https://www.cicdr.pt/documents/57891/0/Relatório+Anual+2020+-+CICDR.pdf/522f2ed5-9ca6-468e-b05d-f71e8711eb12">relatório de 2020</a> que o fator de discriminação que mais se verifica é “nacionalidade” e a principal expressão usada como fundamento da discriminação é “nacionalidade brasileira”. Recentemente, <a href="https://www.jn.pt/local/noticias/porto/porto/professor-da-faculdade-de-economia-vai-ser-despedido-por-comentarios-xenofobos-e-sexistas--14768433.html">um professor da Universidade do Porto foi demitido por falas sexistas</a>, tais como “as mulheres brasileiras são uma mercadoria”.
Esse último caso é um exemplo da objetificação da mulher brasileira que também leva à discriminação e principalmente ao assédio moral e sexual das brasileiras que emigram. Nesse contexto, é extremamente reprovável a conduta do presidente que contribui para essa objetificação da mulher brasileira ao dizer a jornalistas que “o Brasil não pode ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade” e “o Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer. Desculpem aqui as mulheres tá?”.
Por conta dessas falas, o governo federal chegou a ser condenado em primeira instância, quando a magistrada entendeu que as expressões eram dignas de espanto e repúdio e que assumem ainda maior gravosidade quando inseridas no contexto fático e social em que se situam as cidadãs brasileiras, de intensa desigualdade e privação, motivadas pela supremacia cultural do patriarcalismo e da heteronormatividade cultuados publicamente por agentes públicos <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. No entanto, em decisão monocrática, no reexame necessário, o relator extinguiu o processo sem julgamento de mérito, sem que houvesse então nenhuma condenação <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Enquanto houver impunidade por falas misóginas, discriminatórias e/ou xenofóbicas, principalmente por agentes públicos, mulheres migrantes continuarão invisíveis. Por isso, aplaude-se a decisão recente da Assembleia Legislativa de São Paulo que cassou o mandato do ex-deputado Arthur do Val pelas falas criminosas sobre as refugiadas ucranianas (“as ucranianas são ‘fáceis’ de pegar por serem pobres”; “a fila de refugiados de guerra tem mais mulheres bonitas do que a ‘melhor balada do Brasil”).
É preciso entender a real necessidade de punição das referidas condutas criminosas. Situações de discriminação e assédio de mulheres migrantes são raramente denunciadas por medo das vítimas ou por falta de informação sobre os seus direitos. No entanto, as consequências para as vítimas são imensuráveis.
Enquanto ofensores caminham livremente sem punição, mulheres migrantes, muitas vezes, abandonam ou têm a sua carreira estagnada após sofrerem discriminação ou assédio no ambiente de trabalho. Outras, incluindo vítimas de violência doméstica, dependerão de ajuda de voluntários para garantir seus direitos, enquanto não recebem nenhum apoio do governo do seu próprio país ou do país para onde emigraram.
Mulheres migrantes: temos ainda um longo caminho a percorrer.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> TRF4, Remessa Necessária Criminal n. 5002893-96.2016.4.04.7200/SC, 7ª Turma, DJe 13/12/2016.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> TRT15, Recurso Ordinário n. 0011827-41.2019.5.15.0085, 8ª Câmara, 4ª Turma, DJe 26/05/2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ação Civil Pública Cível n. 5014547-70.2020.4.03.6100, 6ª Vara Cível Federal de São Paulo, DJe 23/06/2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TRF3, Apelação/Remessa Necessária n. 5014547-70.2020.4.03.6100, Des. Rel. Johonsom Di Salvo, DJe 07/12/2021.

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JOTA

 A invisibilidade que aumenta a vulnerabilidade

Mulher e migrante: o direito à não discriminação interseccional

Situações de discriminação e assédio de mulheres migrantes raramente são denunciadas por medo das vítimas ou falta de informação sobre seus direitos