Opinião e Análise

Marina de Araujo Lopes

Paula Ferro Costa de Sousa

No curso da história, a posição jurídica da mulher foi sofrendo diversas modificações. Ela não possuía capacidade civil plena como o homem. O primeiro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/codigo-civil">Código Civil</a> do Brasil, editado em 1916, demonstrou com clareza que, mesmo no século XX, a posição de desvantagem da mulher em relação ao homem era uma realidade. Fruto de uma sociedade patriarcal e machista, a submissão ao homem permeava não apenas o regramento existente, mas, principalmente, os costumes da época.
As mulheres casadas eram propriedade dos seus maridos. Tanto é verdade que eram relativamente incapazes para a prática de certos atos da vida civil (artigo 6º, inciso II) e que o marido era o chefe da sociedade conjugal (artigo 233) e exercia o pátrio poder (artigo 380). Além disso, o casamento poderia ser anulado se a mulher já tivesse sido deflorada (artigo 178, §1º); os atos praticados pela mulher poderiam ser anulados se praticados sem o consentimento do seu marido (artigo 178, §7º, inciso VII); as mulheres divorciadas ou viúvas somente poderiam se casar novamente após transcorridos 10 meses (artigo 183, XIV) do desquite ou da viuvez; a mulher condenada na ação de desquite perdia o direito a usar o nome do marido (artigo 324); incumbia ao marido, ou ao pai, requerer a inscrição e especialização da hipoteca legal da mulher casada (artigo 839).
Esses são apenas alguns exemplos constantes do Código Civil de 1916 de como a mulher era tratada em relação ao homem. Ainda em 1916, foi editada a Lei 3.139, que prescrevia o modo como deveria ser feito o alistamento eleitoral. O diploma tratava como eleitores os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos (artigo 2º). A interpretação dada à palavra “cidadãos” direcionava a exclusividade de serem eleitores apenas os homens, mas ainda bem que a nossa sociedade evoluiu! E, com ela, as leis que se seguiram.
Os movimentos sociais de contestação à ordem vigente foram um divisor de águas para que a mulher começasse a alcançar os mesmos direitos que os do homem. O movimento feminista teve papel fundamental nesse aspecto, principalmente na busca pela igualdade política das mulheres.
No ano de 1932, foi editado o<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/codigo-eleitoral"> Código Eleitoral</a> (Decreto nº 21.076), ocasião em que passou a ser permitido às mulheres o direito de votar e de serem votadas. No entanto, apenas para as mulheres e para os homens maiores de 60 anos, o voto não era obrigatório (artigo 121). A Constituição Federal de 1934, passou a prever a obrigatoriedade do voto da mulher, mas o condicionou ao exercício de função pública remunerada (artigo 109).
A Constituição Federal de 1946 retirou a condicionante e dispôs que o voto seria obrigatório para ambos os sexos (artigo 133). Sequenciando essa linha evolutiva, apenas em 1962 foi editado o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121), que altera, quase 50 anos depois, o regramento constante do Código Civil e retira a mulher da condição de relativamente incapaz, passando a uma aparente condição de igualdade com o homem.
Alguns dispositivos alterados evidenciam essa situação: "Artigo 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos" (artigos 240, 247 e 251); "Artigo 242. A mulher não pode, sem autorização do marido" (artigo 251): "I - praticar os atos que êste não poderia sem consentimento da mulher" (artigo 235); "Artigo 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade".
A modificação ao Código Eleitoral, por sua vez, Lei 4.737/65, não trouxe mudanças sobre a posição da mulher em relação ao sufrágio. Apenas manteve a regra já garantida pela Constituição de 1946, que também foi reproduzida na Constituição de 1967.
Outro grande avanço legislativo em prol da garantia dos direitos da mulher, foi a edição da Lei nº 6.515/77, que passou a permitir o divórcio no ordenamento jurídico, ou seja, o rompimento definitivo do vínculo com o marido.
Finalmente, chegamos a 1988, ocasião em que a Constituição Federal – maior instrumento garantidor dos direitos humanos e da isonomia – estendeu o direito de voto a homens e mulheres analfabetos, que podem se alistar como eleitores caso desejem.
Mas mesmo diante de tanta evolução, a pergunta que se faz é a seguinte: a mulher, apesar de ter atingido a capacidade civil, conseguiu atingir a plena capacidade eleitoral?
Para melhor entender o questionamento, é importante delimitar que a capacidade eleitoral é dividida em ativa e passiva. A capacidade eleitoral ativa está adstrita à possibilidade de a mulher exercer seu direito de votar. Já a capacidade passiva, consiste na possibilidade de ser votada, ou seja, candidata a um cargo político.
Nesse aspecto, não restam dúvidas de que a mulher alcançou com plenitude a capacidade eleitoral ativa. Os dados apresentados pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/justica-eleitoral">Justiça Eleitoral</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> amparam essa constatação. Desde as eleições do ano de 2014, as mulheres representam numericamente a maioria dos eleitores do Brasil. Seja porque representam a maioria da população brasileira, seja porque respeitam a conquista do direito ao voto, o fato é que as mulheres, atualmente, exercem efetivamente a capacidade eleitoral ativa.
Do outro lado, infelizmente, a lógica não é a mesma. Nas eleições de 2014, as mulheres representaram 31,1% das candidatas; em 2016, 31,9%; em 2018, 31,6%; e em 2020, 33,5% das candidatas. Os homens representam cerca de 2/3 dos candidatos a um cargo eletivo.
Em relação aos eleitos, a situação é ainda mais desanimadora. Os dados demonstram uma disparidade gigantesca. Em 2014, foram escolhidas 190 mulheres para assumir os cargos em disputa, o que representou 11,10% do total de 1.711 candidatos eleitos. Já no último pleito, as 290 eleitas correspondiam a 16,20% do universo de 1.790 escolhidos, ou seja, um aumento mínimo de 5,10%<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Vejam, as mulheres são 52% da população brasileira, mas são apenas 16% entre os ocupantes de cargos eletivos. Eis que a resposta ao nosso questionamento aqui foi numericamente estampada: a mulher – mesmo após tantos avanços – não conseguiu atingir a plena capacidade eleitoral passiva.
É por isso, inclusive, que o Brasil está no fim da fila dos países com baixa representação feminina na política, ocupando a 142ª posição entre 191 nações citadas no <a href="https://www.unwomen.org/-/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2021/women-in-politics-2021-en.pdf?la=en&amp;vs=1305">mapa global de mulheres na política da Organização das Nações Unidas (ONU)</a> e o 9º lugar entre 11 países da América Latina em estudo da ONU Mulheres<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A igualdade não pode ser vista apenas sob o ponto de vista formal. Hoje existem normativos suficientes que reconhecem que homens e mulheres são iguais. No entanto, do ponto de vista material, ainda existe uma diferença abissal entre o tratamento e o efetivo alcance de direitos.
Essa realidade só poderá ser mudada se mais mulheres ocuparem espaços de poder e de decisão. Mais mulheres exercendo sua capacidade eleitoral significa trazer diversidade ao debate político que hoje se encontra quase homogêneo. A diversidade na participação política beneficia não somente às mulheres, mas a todos.
Um exemplo disso é a constatação trazida por um estudo publicado no Journal of Economic Development<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, em que se verificou que as cidades que elegeram prefeitas mulheres tiveram desempenho melhor na contenção da primeira onda da pandemia de Covid-19 do que aquelas que elegeram homens.
Precisamos abrir mais espaços, apoiar as mulheres que desejam ocupar cargos políticos e encorajar mulheres que pensam em um dia enfrentar uma disputa eleitoral. O<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse"> Tribunal Superior Eleitoral</a> (TSE) tem encarado essa realidade e possibilitado a transformação do cenário atual.
Um dos julgamentos da Corte impulsionou que o<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/congresso-nacional"> Congresso Nacional</a> incorporasse expressamente ao texto constitucional<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> o estabelecimento de uma cota mínima de 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para candidaturas femininas e que o mesmo percentual também fosse considerado em relação ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão.
Estamos avançando, mas ainda existe muita dificuldade de aceitação da figura feminina no espaço público e isso tem de acabar. É dever do Estado, mas também nosso construir uma sociedade justa, verdadeiramente democrática, onde as mulheres ocupem os espaços políticos e de poder e, assim, tenham o pleno exercício da sua capacidade civil e eleitoral no Brasil.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais">https://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais</a>. Acesso em: 17/mai/ 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Marco/numero-de-mulheres-eleitas-em-2018-cresce-52-6-em-relacao-a-2014">https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Marco/numero-de-mulheres-eleitas-em-2018-cresce-52-6-em-relacao-a-2014</a>. Acesso em: 18/mai/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://www.onumulheres.org.br/noticias/estudo-conduzido-pelo-pnud-e-pela-onu-mulheres-sobre-direitos-politicos-das-mulheres-coloca-o-brasil-em-9o-lugar-entre-11-paises-da-america-latina/">https://www.onumulheres.org.br/noticias/estudo-conduzido-pelo-pnud-e-pela-onu-mulheres-sobre-direitos-politicos-das-mulheres-coloca-o-brasil-em-9o-lugar-entre-11-paises-da-america-latina/</a> . Acesso em: 18/mai/2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: <a href="https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0304387821001243?via%3Dihub">https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0304387821001243?via%3Dihub</a> . Acesso em 18/mai/2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Emenda Constitucional 117 (originária da PEC 18/21). Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/864409-congresso-promulga-cota-de-30-do-fundo-eleitoral-para-candidaturas-femininas/">https://www.camara.leg.br/noticias/864409-congresso-promulga-cota-de-30-do-fundo-eleitoral-para-candidaturas-femininas/</a>. Acesso em 24/mai/2022.

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JOTA

Ainda há muita dificuldade de aceitação da figura feminina no espaço público e isso tem de acabar

Mulher: da capacidade civil relativa ao pleno exercício eleitoral

Ainda há muita dificuldade de aceitação da figura da mulher no espaço público e isso tem de acabar