Opinião e Análise

Gabriela Marcondes Laboissière Camargos

Roberta Monteiro de Paula Guerra

Ainda que possa parecer uma prática distante das mais usuais da sociedade, é crescente o número de testamentos registrados no Brasil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Acompanhando a elevação dos registros testamentários realizados nos últimos anos – notadamente após o período da pandemia –, o Judiciário também busca unificar entendimentos interpretativos acerca do instituto.
Testamentos são conhecidos por serem disposições de última vontade, que devem considerar a máxima preservação do intuito do testador. Para que um testamento seja considerado válido, ele deve observar os pressupostos básicos, sendo estes: a capacidade do testador, atendimento dos limites do que se pode dispor de seu patrimônio e declaração de vontade livre e consciente.
<h3><a href="https://www.jota.info/produtos/poder%20?utm_source=cta-site&amp;utm_medium=site&amp;utm_campaign=campanha_poder_q2&amp;utm_id=cta_texto_poder_q2_2023&amp;utm_term=cta_texto_poder&amp;utm_term=cta_texto_poder_meio_materias">Tenha acesso ao JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político com informações de bastidores que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas. Conheça!</a></h3>
A ausência de uma das formalidades legais deve ser analisada no caso concreto, sempre à luz da preservação de última vontade do testador. Em razão disto, a constatação de vício formal do testamento, por si só, a exemplo, não deve ensejar a invalidação do instrumento, exceto na hipótese de demonstração da incapacidade mental do testador para dispor de seus bens no momento da celebração do ato.
Nesse sentido, é importante notar que há diferentes tipos de disposições testamentárias previstas no Direito brasileiro. O artigo 1.862 do Código Civil elenca as formas de testamento ordinário, podendo ser público, cerrado ou particular.
Em linhas gerais, o testamento público é aquele elaborado por um tabelião no livro de notas, lido na presença do testador e de duas testemunhas que, o aprovando, firmarão assinatura. O testamento cerrado pode ser escrito pelo testador, mas será válido somente se aprovado pelo tabelião e entregue na presença de duas testemunhas, com o colhimento das assinaturas. O testamento particular será a forma de testar a qual traremos maiores detalhes.
<h3>Testamento particular</h3>
Testamento particular é aquele elaborado pelo próprio testador, seja de próprio punho ou mediante processo mecânico. Sendo o caso de testamento particular de próprio punho, ele deve ser lido e assinado pelo testador na presença de pelo menos três testemunhas, que devem o subscrever.
Na hipótese de testamento particular elaborado por processo mecânico, o documento não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de ler o testamento na presença de, pelo menos, três testemunhas, que o assinarão (art. 1.876, do CC). Ainda, o art. 1.880 do CC traz a possibilidade do testamento particular poder ser escrito em língua estrangeira, desde que as testemunhas a compreendam.
Com o falecimento do testador, será publicado em juízo o testamento, com a citação dos herdeiros legítimos, para terem ciência. É neste momento que os herdeiros podem analisar os termos e condições do testamento, bem como opor eventuais nulidades em sua elaboração. Estando presentes os requisitos legais, ouvido o Ministério Público, o juiz confirmará o testamento (art. 737, § 2º, do CPC).
É interessante notar que o Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>), acerca do testamento particular, editou duas relevantes teses, quais sejam:
<blockquote class="jota-article__citation">“No testamento particular escrito de próprio punho, a ausência de testemunhas presenciais, sem qualquer circunstância excepcional justificadora, somada à inexistência de assinatura do testador em todas as folhas tornam o instrumento inválido”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a></blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">“É válido o testamento particular em que o testador, a despeito de não o ter assinado de próprio punho, apôs sua impressão digital.”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a></blockquote>
Usualmente, após a ciência dos herdeiros acerca dos testamentos particulares, iniciam-se tais questionamentos judiciais acerca de nulidades, culminando na necessidade de o Poder Judiciário fazer vez acerca de validades ou invalidades do instrumento. Com a análise da jurisprudência, é possível identificar quais são as nulidades mais evocadas pelos herdeiros.
<h3>Nulidades comumente alegadas no testamento particular</h3>
Incapacidade civil
A capacidade para testar é presumida, de acordo com o disposto no art. 1.857 do Código Civil. Para trazer segurança jurídica ao testamento e ao testador e seu patrimônio, o art. 1.860 do Código Civil proíbe que os incapazes e as pessoas que não tiverem pleno discernimento elaborem um testamento. Além disso, existe uma idade mínima para testar, sendo esta de 16 anos.
Assim, eventual alegação de incapacidade civil deve possuir provas robustas de que o testador, no momento de elaboração do testamento, não se encontrava em condições de exprimir sua vontade acerca de seu patrimônio de forma livre e consciente, compreendendo as implicações de seus atos.
O fato de o testador estar acometido de doenças, tais como mal de Parkinson, ou quadros depressivos, não trazem conclusão direta da incapacidade de testar, tendo em vista que tais condições não necessariamente alteram as faculdades mentais no momento da lavratura do testamento.
Para comprovar a extensão e implicação destas e de outras doenças, devem ser realizadas perícias médicas, que determinarão a eventual ausência de pleno discernimento da situação, e concluir pela existência ou não de capacidade no momento da lavratura do testamento. Confira-se julgado do STJ nesse sentido:
<blockquote class="jota-article__citation">“É inegável a relevância que o Ordenamento Jurídico pátrio emprega em favor de se preservar a vontade de disposição patrimonial dos sujeitos que assim desejarem fazer. Por outro lado, questão de alta indagação na doutrina e na jurisprudência se coloca acerca da demonstração inequívoca de que o testador, ao testar, se encontrava ou não em perfeito juízo, isto é, se tinha pleno discernimento da formalidade que o testamento encerra. [...] A capacidade para testar é presumida, tornando-se indispensável prova robusta de que efetivamente o testador não se encontrava em condições de exprimir, livre e conscientemente, sua vontade acerca do próprio patrimônio ao tempo em que redigido o testamento".<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></blockquote>
Cumpre destacar, ainda, que a capacidade civil analisada pelo Judiciário é aquela no momento de elaboração do testamento. Isto porque eventual superveniência de incapacidade civil após a elaboração do testamento elaborado por pessoa capaz não o invalida, assim como que a superveniência de capacidade não é suficiente para validar o testamento do incapaz (art. 1.861 do CC).
Da mesma forma, o fato de o testador possuir idade avançada no momento da celebração do testamento, por si só, não é determinante para invalidar o testamento. Isto porque o Código Civil não traz nenhuma limitação de idade máxima para a realização de testamento, podendo este ser elaborado a qualquer tempo, desde que o testador não possua nenhuma incapacidade civil, conforme mencionado anteriormente.
Testador coagido
Também é comum a alegação de que o testador foi coagido para deixar parte de sua herança para terceiros, ou para dispor de seus bens de forma que não seja habitual pelos seus costumes. Reiteramos que, como a capacidade para testar é presumida, subentende-se que o testador dispôs de seus bens de forma livre e consentida.
Tendo em vista que o art. 369 e seguintes do CPC estabelecem que toda alegação deve possuir subsídios probatórios, a prática processual demonstra a dificuldade em se obter provas robustas e cabais da coação. Nesses casos, a prova testemunhal comumente é a mais utilizada para este tipo de alegação, mas nem sempre é a mais eficaz, tendo em vista a possibilidade de contradições, bem como de testemunhas serem ouvidas como informantes, em razão do seu grau de parentesco ou afinidade com o testador.
Em verdade, "em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador"<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Inexistindo provas suficientes, e com base no princípio do livre convencimento do juiz, a alegação de coação do testador pode ser afastada.
Testemunhas do testamento desconhecidas pelo testador
O eventual desconhecimento das testemunhas que assinaram o testamento junto com o testador não é causa para alegar sua nulidade.
Isto porque o art. 1.864 do CC não exige que estas testemunhas sejam conhecidas por ele, do seu íntimo convívio, ou que tenham conhecimento prévio de suas intenções quanto ao seu patrimônio.
A única exigência legal é a de que o instrumento seja lido em voz alta em sua presença, e que elas o assinem, sendo a forma de chancelar que o testador estava em suas plenas faculdades mentais, e de que o testamento está em consonância com o que ele deseja e com a sua percepção das consequências dos termos do testamento.
Como afirma a jurisprudência do STJ:
<blockquote class="jota-article__citation">“À luz do art. 1.878 do CC/2002, a confirmação do testamento particular está condicionada à presença de requisitos alternativos: ou as testemunhas confirmam o fato da disposição ou as testemunhas confirmam que o testamento foi lido perante elas e que as assinaturas apostas no documento são delas e do testador. [...] A imprecisão ou ausência de resposta das testemunhas testamentárias a respeito de questões distintas daquelas previstas em lei, como as circunstâncias em que fora lavrado o testamento, se a assinatura foi realizada física ou eletronicamente, se a assinatura foi realizada em cartório ou na residência do testador e quanto à data ou ano da assinatura do testamento, não é suficiente para invalidar o testamento. [...] A razão pela qual o legislador não elencou os elementos fáticos acima indicados como requisitos suscetíveis de confirmação pelas testemunhas diz respeito ao provável distanciamento temporal entre a lavratura do testamento e a sua confirmação, que poderá ser demasiadamente longo e, nesse caso, inviabilizaria que as testemunhas confirmassem, anos ou décadas depois, elementos internos ou inerentes ao testamento”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a></blockquote>
Inexistindo quaisquer elementos concretos que apontem dúvidas quanto à formalidade da leitura do instrumento perante testador e testemunhas, seu conhecimento dos termos e assinatura válida, restará afastada a invalidação do testamento.
<h3>Conclusão</h3>
Dentro dos limites legais de regularidade formal do testamento, bem como à luz do princípio da razoabilidade e das circunstâncias do caso concreto, a jurisprudência tem mitigado a formalidade dos testamentos quanto aos seus requisitos extrínsecos.
De acordo com a jurisprudência do STJ, "se, por outro modo [isto é, apesar de vícios estritamente formais], for possível constatar, suficientemente, que a manifestação externada pelo testador deu-se de forma livre e consciente, correspondendo ao seu verdadeiro propósito, válido o testamento, encontrando-se, nessa hipótese, atendida a função dos requisitos formais, eventualmente inobservados"<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Portanto, deve ser sopesado casuisticamente se a ausência de uma das formalidades é suficiente para comprometer a validade do instrumento. Isto porque o rigor excessivo pelo formalismo do testamento, desde que cumpridos os requisitos formais dispostos no Código Civil, pode trazer o descumprimento da finalidade essencial do testamento, sendo esta de respeito à última vontade do testador.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://cnbsp.org.br/2022/09/08/infomoney-dispara-procura-por-testamentos-no-brasil-na-pandemia-veja-regras-e-para-quem-compensa/">https://cnbsp.org.br/2022/09/08/infomoney-dispara-procura-por-testamentos-no-brasil-na-pandemia-veja-regras-e-para-quem-compensa/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Julgados: REsp 2000938/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/08/2023, DJe 25/08/2023. (Vide Informativos de Jurisprudência N. 551 e 551)
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Julgados: REsp 1633254/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/03/2020, DJe 18/03/2020 AREsp 2281675/SP (decisão monocrática), Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 27/03/2023, publicado em 03/04/2023. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 667)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> REsp 1.694.965/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/12/2017, DJe de 7/12/2017.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> REsp 1.633.254/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/03/2020, DJe 18/03/2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> REsp 2.080.530/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/10/2023, DJe de 30/10/2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> REsp 1.419.726/SC, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 9/12/2014, DJe de 16/12/2014.

testamento

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Diante do aumento no número de testamentos no Brasil, Judiciário busca unificar entendimentos interpretativos

Mitigação do formalismo do testamento particular

Diante do aumento no número de testamentos no Brasil, Judiciário busca unificar entendimentos interpretativos