Opinião e Análise

Joyce Dias

Em um <a href="https://www.youtube.com/watch?v=Ww0h7HkgkL8">noticiário</a> norte-americano, um repórter anuncia: “uma notícia importante sobre a evolução do concurso é que mulheres casadas, e até mesmo divorciadas, bem como mães, agora podem participar da competição”.
A narração parece ser um déjà-vu de quando mulheres norte-americanas deixaram de ser legalmente subordinadas a seus maridos e começaram a ter direitos. No entanto, é de setembro de 2022, quando a Presidente da Organização do Miss Universo, Paula Shurgarte, anunciou a mudança na competição, que antes só permitia a participação de mulheres solteiras e sem filhos.
Essa mudança foi resultado de uma batalha que começou há quatro anos. Em 2018, Veronika Didusenko perdeu o título de Miss Ucrânia e foi impedida de participar da competição Miss Universo depois que a organização descobriu que ela teve um filho aos 19 anos e era divorciada. Ela criou então a campanha <a href="https://righttobeamother.info/">#righttobeamother</a> e fez uma reclamação junto à Comissão de Igualdade e Direitos Humanos em Londres com base no Equality Act. Lamentavelmente, a Comissão entendeu que a questão afetava somente um pequeno número de mulheres e que, portanto, as regras não deveriam ser alteradas.
Apesar disso, a campanha continuou. Em 2022, ao ser impedida de participar da competição por ser mãe, uma outra modelo, Andrea Quiroga, fez uma denúncia ao Department of Fair Employment and Housing da Califórnia. O Departamento decidiu dar início a uma investigação com base no Unruh Civil Rights Act, que proíbe discriminação por qualquer empresa estabelecida na Califórnia. Dez dias após o início da investigação, a organização do Miss Universo anunciou a mudança das regras. 
No Brasil, essa “evolução” ainda não aconteceu, ao menos em relação a outras competições de beleza. Em agosto de 2022, a modelo Brenda da Silva, de 20 anos, perdeu o título de Miss Paraná após anunciar a sua gravidez. Em <a href="https://www.instagram.com/missparana_/?hl=en">nota oficial</a>, os organizadores alegaram que o contrato proibia a gravidez da participante e que a regra seria necessária, pois as vencedoras assumiriam diversos compromissos e viagens e a existência de um vínculo familiar tão forte poderia ocasionar uma “ausência considerável da eleita perante os seus compromissos familiares.”
Essa notícia gerou uma típica discussão de grupo de WhatsApp entre mulheres juristas que esta autora participa: algumas ficaram estarrecidas que em pleno século XXI ainda lidamos com a discriminação contra mulheres no mercado de trabalho, em especial gestantes. Outras, no entanto, alegaram que a autonomia contratual da mulher deveria prevalecer e que havia, de fato, quebra contratual a justificar a perda do título. A discussão deu origem, então, ao presente artigo: a autonomia privada contratual justificaria uma evidente discriminação e violação à liberdade reprodutiva?
Um primeiro questionamento que surge é sobre eventual vínculo empregatício. Na França, a organização feminista Osez le Féminisme moveu uma reclamação trabalhista contra os organizadores da competição Miss França sob a alegação de conduta discriminatória e violação aos direitos trabalhistas. Antes que a sentença fosse proferida, a organização <a href="https://www.thelocal.fr/20211118/miss-france-contestants-to-get-employment-contracts-for-the-first-time/">alterou</a> as regras e, em 2022, as 29 finalistas terão um contrato de trabalho para a cerimônia final. A reclamação foi baseada em uma <a href="https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000027632517/">decisão</a> da Corte de Cassação francesa de 2013 em que o ganhador da versão masculina da competição, Mister France, teve vínculo empregatício reconhecido por conta dos ensaios frequentes, obrigação de participar em entrevistas e imposição de uso de determinadas roupas que caracterizavam a subordinação. Assim, o título de Mister France representava, na verdade, um contrato de trabalho. 
No Brasil, há espaço para a mesma argumentação. Caso fosse reconhecido vínculo empregatício, a Miss Paraná jamais poderia ter tido o contrato rescindido após o anúncio de sua gravidez. A Constituição e a legislação trabalhista brasileira proíbem de forma expressa qualquer prática discriminatória, incluindo a exigência de teste ou atestado de gravidez, bem como a dispensa arbitrária ou sem justa causa de empregada gestante, desde a confirmação de sua gravidez até cinco meses após o parto.  
Ainda que não se reconhecesse vínculo empregatício, e que se classificasse a relação sob a égide do Código Civil, o artigo 421 determina expressamente que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. O Enunciado n. 23 da I Jornada de Direito Civil esclarece que essa função social não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz seu alcance quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. 
Os direitos reprodutivos permitem o exercício livre da capacidade reprodutiva do ser humano e são considerados direitos fundamentais. As mulheres têm o direito de escolha se querem ou não ter filhos e em qual momento, sem que haja discriminação, coerção ou violência. Essa autonomia da mulher é protegida pelo princípio da dignidade humana, estabelecido no art. 1º, inciso III, da Constituição, que lhe garante o direito de tomar as suas próprias decisões, principalmente com relação ao seu corpo. 
Além disso, o artigo 226, parágrafo 7º, da Constituição, também garante o princípio do livre planejamento familiar, que estabelece que é livre a decisão do casal, sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 
A imposição de um contrato com uma cláusula que proíbe a gravidez viola expressamente a autodeterminação reprodutiva da mulher como direito fundamental. Não se trata aqui de uma escolha da mulher em não engravidar, mas sim de uma regra imposta para que ela possa participar de uma competição e que, se violada, resultará na rescisão do contrato. 
Não há, portanto, exercício livre da autonomia contratual, nem liberdade de estipular as condições do contrato. Ainda que houvesse, é evidente que essa autonomia contratual deve ser atenuada quando violar direitos fundamentais e interesses metaindividuais como é o caso da liberdade de reprodução protegida pelos artigos 1º, III, e 226, parágrafo 7º, da Constituição. 
É interessante notar que, quatro anos antes de a modelo Brenda da Silva perder seu título de Miss Paraná após engravidar, uma outra mulher, também do Paraná, teve garantido seu direito de participar de concurso público ao cargo de policial militar e remarcar o teste de aptidão física ao descobrir a gravidez. 
O Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>), no RE 1.058.333, entendeu que a inexistência de previsão em edital (ou ainda que houvesse previsão expressa em sentido contrário) do direito à remarcação do teste, não afasta o direito da candidata gestante, vez que fundado em valores constitucionais maiores, cuja juridicidade se irradia por todo o ordenamento jurídico. Na ocasião, o ministro relator <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luiz-fux">Luiz Fux</a> defendeu que a condição de gestante goza de proteção constitucional reforçada e que não pode causar prejuízos às candidatas, sob pena de ferir os princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade. 
O ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/alexandre-de-moraes">Alexandre de Moraes</a> foi ainda mais enfático: “Se o homem ficasse grávido, nós não estaríamos discutindo isso”. E realmente essa discussão não existiria. O homem pode ser pai e Mister Paraná, se quiser. Nesse caso, a organização não alegaria que os diversos compromissos e viagens e a existência de um vínculo familiar tão forte poderiam ocasionar uma “ausência considerável do eleito perante os seus compromissos familiares”, como alegou com a Miss Paraná.
Como bem lembra a ministra <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/carmen-lucia">Carmen Lúcia</a>, também no julgamento do RE 1.058.333, até a década de 80, as mulheres não eram aprovadas em concursos para juiz se fossem mães solteiras, mas nunca se perguntou a um homem se ele era pai solteiro, como se o pai fosse dispensável à família. 
Engana-se quem pensa que esse tipo de cláusula contratual está limitado a concursos de beleza. É comum também em contratos de reality shows, influenciadoras digitais e modelos. Em 2018, a modelo de fisiculturismo Gracyanne Barbosa<a href="https://istoe.com.br/gracyanne-barbosa-revela-que-esta-proibida-de-engravidar-ate-2019/"> anunciou</a> que um contrato com um de seus anunciantes a proibia de engravidar, mas que era “um contrato bacana, que traz[ia] um retorno legal”. 
Essa discussão não afeta somente um pequeno número de mulheres. O anúncio público de que uma miss perde seu título por estar grávida atinge muito mais mulheres do que se imagina. Estigmatiza-se milhares de profissionais que são mães com um discurso discriminatório de que uma mãe não conseguirá honrar com seus compromissos familiares ou profissionais. Reforça-se a concepção misógina que inúmeras empresas ainda utilizam para demitir mulheres no retorno da licença maternidade. Exclui-se qualquer responsabilidade do pai e da sociedade sobre a criança e considera-se a gravidez como uma incapacidade para honrar com compromissos profissionais. Um discurso absurdo que jamais deve ser aceito ou tolerado em pleno século XXI. 
É inconstitucional, em qualquer contrato que seja, uma cláusula que proíba uma mulher a engravidar. Ao retirar o título de uma mulher grávida em um concurso de beleza sob o argumento discriminatório e misógino de que ela não conseguiria honrar com seus compromissos profissionais diante de um vínculo familiar tão forte, concede-se, na verdade, publicamente, um novo título de Miss Sem Direitos.

amy-leigh-barnard-NKlo7Vl34Bo-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Perda do título de Miss por vínculo familiar abre discussão para inconstitucionalidade contratual e liberdade reprodutiva

Miss Sem Direitos: autonomia contratual e liberdade reprodutiva

Perda do título de Miss por vínculo familiar abre debate sobre inconstitucionalidade e autonomia contratual, e liberdade reprodutiva.