Opinião e Análise

Melina Girardi Fachin

Cristina Maria Gama Neves da Silva

Roberta Simões Nascimento

Aline Osório

<h3>O constitucionalismo nasce sem mulheres</h3>
<blockquote>“[T]he Universal Declaration of Human Rights defined what a human being is. It told the world what a person, as a person, is entitled to. Are women human yet? (...) To be a woman is not yet a name for a way of being human.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Catharine MacKinnon</footer>
</blockquote>
O discurso do direito constitucional nasceu na modernidade indiferente às diferenças. Apesar de um dos motes do movimento constitucionalista francês apoiar-se no vetor da igualdade, não se viu acompanhar mudanças estruturais na vida da maior parte das pessoas – sobretudo das mulheres, excluídas dos processos de poder. Manteve-se tratamento díspar no acesso a serviços e bens, trabalho, segurança, participação política e mesmo na estrutura e formação do direito.
O constitucionalismo foi construído e arquitetado sob uma suposta lógica neutra, mas que refletia um modelo “masculino” de mundo. O direito constitucional clássico nasceu, portanto, contraditório, excludente e suportou modelo de discriminação estrutural em relação ao feminino, inerente inclusive às estruturas e mecanismos jurídico-constitucionais.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Não significa que não havia mulheres no movimento empunhando bandeiras – Olympe de Gouges é exemplo sempre vivo. Em um de seus primeiros escritos, ‘A declaração dos Direitos das Mulheres’, De Gouges reivindicou, por uma releitura irônica à Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, a igualdade em direitos da mulher e do homem, denunciando que o termo homens funcionaria como sinônimo de humanidade.
Todavia, as mulheres foram invisibilizadas, caladas e excluídas. A suposta neutralidade inicial do discurso constitucional – apoiada na fórmula da igualdade perante a lei – ofuscou a presença feminina na construção do direito constitucional e de seu discurso.
O homem foi colocado como referência da universalidade, o que impediu que o constitucionalismo clássico enfrentasse a desigualdade estrutural de gênero, acentuada com a transição para o capitalismo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Trezentos anos depois, ainda há reflexos dessa construção histórica excludente. O constitucionalismo contemporâneo precisa re-comprometer-se com o pilar fundante da igualdade de gênero, sob pena de ruir o próprio sentido radical (no sentido de raiz) da Constituição.
Surge, assim, o constitucionalismo feminista, a partir da postura do constitucionalismo inclusivo e de uma perspectiva plural e tolerante com as diferenças.
Seu objetivo é não apenas permitir que mulheres sejam protagonistas da experiência constitucional,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> mas também que a igualdade de gênero constitua uma lente pela qual toda a constituição seja lida e interpretada.
Para levar adiante tal empreitada no contexto brasileiro, é necessário, primeiramente, um olhar retrospectivo, a fim de evidenciar as mulheres que ajudaram a construir a Constituição de 1988. Deve-se, portanto, resgatar o discurso constitucional das constitucionalistas que parecem ter sido esquecidas.
<h3>A Constituição de 1988 e o “lobby do Batom”</h3>
<blockquote>“Tentavam desqualificar o nosso trabalho. Chamavam de bancada do batom, lobby das meninas, entre outros termos pejorativos”.
<footer class="jota-article__quote-cite">Lídice da Mata</footer>
</blockquote>
<blockquote>“Fomos ridicularizadas (...). Os jornais tentaram nos transformar em bibelôs do Congresso Nacional. Elegiam uma musa, perguntavam as marcas das nossas roupas e dos nossos perfumes. Enquanto isso, os homens eram questionados sobre o futuro das relações trabalhistas”.
<footer class="jota-article__reference jota-article__quote-cite">Rita Camata</footer>
</blockquote>
Especificamente no discurso constitucional brasileiro, a fim de densificar a igualdade de gênero constitucionalmente tutelada, voltamos aos trabalhos das pré-constituintes e das constituintes de 1987/1988 e o importante papel que o “lobby do batom” desempenhou.
<blockquote class="jota-article__eye">O nome do bloco de mulheres, dado pejorativamente, foi abraçado e ressignificado como afirmação da diferença. Apesar de serem pouco numerosas e historicamente negligenciadas ou sub-reconhecidas, as deputadas da Assembleia Nacional Constituinte tiveram impacto significativo no processo de fazimento da Constituição atual.</blockquote>
Elas eram apenas 26 dentre os 559 parlamentares constituintes, representando oito partidos e unidades da federação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Todavia, não estavam sozinhas. Contaram com o apoio da equipe do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres (CNDM), criado em 1985 e vinculado ao Ministério da Justiça, após grande pressão de organizações da sociedade civil pela defesa dos direitos das mulheres e movimentos feministas.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Dois anos antes do início dos trabalhos da constituinte, o CNDM lançou a campanha “Mulher e Constituinte”, com o slogan “Constituinte sem Mulher fica pela Metade”, em resposta à sub-representação feminina na política. As mulheres que, até então representavam menos de 2% da Câmara Federal, passaram a ser 5% da assembleia constituinte, recorde de representação feminina no Legislativo.
Em 1987, o CDNM entregou ao deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o manifesto “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, em que sistematizava propostas das mulheres para a nova Constituição de República.
No começo da Carta, é assentado o compromisso com a ética do cuidado, dos afetos e da fraternidade onde registraram “o exercício pleno da cidadania, significa, sim, o direito à representação, à voz e a vez na vida pública, mas implica ao mesmo tempo, a dignidade na vida cotidiana, que lei pode inspirar e deve assegurar, o direito à educação, à saúde, à segurança, à vivência familiar sem trauma. O voto das mulheres traz consigo essa dupla exigência: um sistema político igualitário e uma civil não autoritária”. 
A Carta, cujo lema era “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”, reivindicava licença maternidade de 120 dias, igualdade salarial, igualdade na sociedade conjugal, direito à propriedade, combate à violência doméstica, entre outros direitos.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Apesar de não terem ocupado nenhuma das relatorias das subcomissões temáticas (nem mesmo a da comissão da soberania e dos direitos e garantias do homem e da mulher), as deputadas organizaram-se como um bloco relativamente coeso, o que aumentou sua capacidade de articulação e aprovação de emendas.
Somou-se a isso o esforço de mulheres de diversos grupos organizados e a equipe do CDNM, que levaram as reivindicações das mulheres a cada um dos constituintes, percorrendo gabinetes, fazendo ligações, enviando cartas, elaborando proposições de emendas, liderando manifestações, participando de audiências, etc.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
O Lobby do Batom constituiu, afinal, um movimento suprapartidário de sensibilização sobre a relevância de considerar as demandas das mulheres para a construção de uma sociedade constitucional democrática. Ao fim, apresentou um total de 3.218 emendas e conseguiu aprovar em torno de 89 demandas.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Estima-se que quase 80% de suas demandas tenham sido atendidas, sendo o movimento feminista o setor da sociedade civil com o maior número de vitórias na constituinte.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> Dentro de várias conquistas, obteve-se a proteção explicita à igualdade entre homens e mulheres (I do art. 5º da Constituição Federal), sendo a primeira vez que uma constituição brasileira reconheceu a igualdade de gênero.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
<h3>Uma agenda para o futuro</h3>
<blockquote>“Se não for dada a devida atenção às mulheres estamos decididas a fomentar uma rebelião e não nos sentiremos obrigadas a cumprir leis para as quais não tivemos nem voz e nem representação”.
<footer class="jota-article__quote-cite">Abigail Adams</footer>
</blockquote>
Olhar para esse passado recente nos move a redesenhar o futuro do direito constitucional comprometido com a igualdade por mulheres e para as mulheres.
No momento atual de retrocessos e desconstrução, que colocam em risco muitas conquistas do projeto constitucional em prol da igualdade de gênero, vale lembrar que a intensa articulação e a união de mulheres e grupos feministas encontram-se na base dos avanços promovidos pela Constituição de 1988 em termos de igualdade de gênero. Não se deve desprezar a necessidade de lembrar que as mulheres foram (e são) protagonistas dos processos de definição de seus direitos.
Sob essa perspectiva, uma agenda do constitucionalismo feminista para o futuro deve incluir ao menos três pautas. Primeiro, o direito à interrupção de gestação no primeiro trimestre – tema que não foi levado à votação no processo constituinte de 1987/1988 pelo medo de retrocessos e ausência de consenso naquele momento histórico.
Segundo, a necessidade de passar do discurso da redução do déficit de representação feminina na política – que já era veiculado antes da constituinte – para a reivindicação da paridade de gênero (já conquistada em diversos países latino-americanos).
Terceiro, identificar o gênero como uma variável relevante e um fator a ser considerado em qualquer alteração ou interpretação constitucional, funcionando como uma lente ou filtro pelo qual toda a ordem constitucional deve ser lida e compreendida.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> O discurso constitucional não pode mais ignorar quem são elas.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Confira-se, entre outros, Sullivan, K. M. (2002). Constitutionalizing Women’s Equality. California Law Review, 90(3), 735, Karst, K. L. (1984). Woman’s Constitution. Duke Law Journal, 1984(3), 447.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SILVA, Christine Oliveira Peter. GOMIDE, Carolina Freitas. Constitucionalistas constituintes: uma agenda para o Brasil. In SILVA, Christine Oliveira Peter. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. FACHIN, Melina Girardi. Constitucionalismo feminista: expressão de políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero. Salvadoe: Editora JusPodivm, 2020,
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Foram elas: Abigail Feitosa (BA), Anna Maria Rattes (RJ), Benedita da Silva (RJ), Beth Azize (AM), Bete Mendes (SP), Cristina Tavares (PE), Dirce Tutu Quadros (SP), Eunice Michiles (AM), Irma Passoni (SP), Lídice da Mata (BA), Lúcia Braga (PB), Lúcia Vânia (GO), Márcia Kubitschek (DF), Maria de Lourdes Abadia (DF), Maria Lúcia de Mello Araújo (AC), Marluce Pinto (RR), Moema São Thiago (CE), Myriam Portella (PI), Raquel Cândido (RO), Raquel Capiberibe (AP), Rita Camata (ES), Rita Furtado (RO), Rose de Freitas (ES), Sadie Hauache (AM), Sandra Cavalcanti (RJ) e Wilma de Faria (RN).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Participaram do processo constituinte as seguintes mulheres da equipe do CNDM: Ana Liege, Ana Maria Wilhein, Celina Albano, Comba Marques Porto, Gilda Cabral, Guacira Cesar, Iaria Cortes, Jacqueline Pitanguy, Lélia Gonzalz, Madalena Brandão, Marlene Libardoni, Maria Luiz Helnborn, Ruth Escobar, Silvia Caetano, Schuma Schumaher, Sueli Carneiro, Zuleide Teixeira, Tania Fusco, etc.                                      -
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Por 20 meses o Lobby do Batom recebeu cartas de mulheres do Brasil inteiro com propostas para a nova Constituição.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em: &lt;https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco-historico-no-combate-a-discriminacoes&gt;.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Schuma Schumaher, O Lobby do Batom, para dar o nosso tom: a Constituição Federal e os avanços no âmbito da família e da saúde.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Silva, Salete Maria da, A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, Tese de Doutorado.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Id.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a>  Silva, Salete Maria da, A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, Tese de Doutorado.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> IRVING, Helen, Drafting, design and gender.

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JOTA

Quem são elas para o discurso constitucional?