Opinião e Análise

Vanessa Alves Pereira Barbosa

Ser ouvido: essa é uma das primeiras necessidades do ser humano. Essa demanda, de tão básica, é protegida pelo direito sob a denominação de “contraditório”, cuja definição vai muito além do sentido léxico de contradizer o que foi dito pelo adversário.
Especialmente após o reforço do Código de Processo Civil de 2015, o conceito assumiu o caráter “substancial”, uma sofisticação da garantia contra o autoritarismo, de modo a dar às partes instrumentos e oportunidades para influenciar a formação do convencimento do juiz sobre o destino do bem jurídico em discussão: vida, liberdade, saúde, patrimônio, enfim.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>É sob esse enfoque que se coloca a presente reflexão: haveria possibilidade de uma parte litigante influenciar, efetivamente convencer, um juiz-robô? Não se pretende fazer aqui um manifesto contra a inteligência artificial. Até porque rotinas e costumes analógicos não despertam saudosismos.
No estágio altamente dinâmico das relações pessoais e negociais, o mais natural seria que também os litígios daí advindos fossem mediados ou até mesmo processados por algoritmos. Em especial no cenário brasileiro onde, em 2019, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, tramitavam 78,6 milhões de processos judiciais. Cada juiz brasileiro decide, em média, 8 casos por dia útil, o que equivale a 1.877 processos analisados ao ano<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
A sobrecarga do Judiciário brasileiro resulta em prestação jurisdicional tardia e, por isso, muitas vezes ineficaz; resulta em causas precariamente analisadas que, por sua vez, geram decisões que não espelham a prova dos autos, bem como resulta na jurisprudência defensiva dos Tribunais Superiores, em confissão de franca incapacidade de prestar justiça no volume demandado.
É nesse quadro que a utilização da inteligência artificial surge como “bala de prata” ao permitir instrumentalizar o Poder Judiciário com mecanismos que analisem grande volume de informações em pouquíssimo tempo. É o caso das famosas ferramentas de inteligência artificial utilizadas nos Tribunais Superiores.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, VICTOR facilita a localização das peças nos autos e identifica temas de repercussão geral. Já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, ATHOS é capaz de analisar cerca de 30 mil peças por mês, busca e agrupa processos similares, bem como identifica acórdãos convergentes e divergentes entre órgãos do Tribunal; e SÓCRATES consegue analisar 2 milhões de processos em 24 segundos, auxiliando na seleção de casos representativos de controvérsia e reduzindo o esforço de triagem pelos analistas<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
Há várias outras iniciativas nas instâncias ordinárias e ninguém é capaz de questionar a utilidade dessas ferramentas de inteligência artificial para que se supere o enorme acervo de processos que desafia o Judiciário brasileiro. Só que deveriam ficar restritas a essas atividades repetitivas e burocráticas.
O que se antevê, contudo, é bem diferente. O próximo passo do desenvolvimento da inteligência artificial desperta reflexões. Em que medida o aprimoramento das técnicas de machine learning, deep learning e redes neurais artificiais (artificial neural networks – ANNs) permitirá a completa predição de decisões por um juiz-robô.
Sem muito alarde, as Cortes de nosso País têm tomado iniciativas com esse objetivo, se encontrando em plena produção projetos como<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>:
(i) a análise preditiva no TRT da 1ª Região, que é capaz de verificar a probabilidade de: a) sucesso em audiência de conciliação; b) reversão ou modificação das sentenças proferidas pelas varas do trabalho; c) reversão ou modificação dos acórdãos proferidos pelas turmas do TRT/RJ;
(ii) a parceria do TJMT com a Amazon para o desenvolvimento de um robô assessor que elabore minutas de sentenças; e
(iii) o sistema no TJRS que automatiza a análise inicial de processos executivos fiscais, de modo que 90% dessa tarefa não necessite de participação humana.
Será que predizer insucesso de uma audiência de conciliação importaria na negativa de sua realização? Predizer o insucesso de um recurso importaria em menor atenção às razões nele veiculadas? Ou ainda: será que a semelhança entre casos resultaria na importação automática dos fundamentos de anterior decisão, sem atenção às peculiaridades do caso concreto?
<blockquote class="jota-article__eye">Não há respostas seguras a essas perguntas. Sabe-se apenas que a inteligência artificial proporciona um processo organizado de analogia matemática. Processa informações para verificar padrões anteriores e, a partir desses elementos, apontar prognósticos.</blockquote>
O problema é o padrão anterior estar mal especificado e direcionar a máquina a se tornar extremamente competente para atingir um objetivo juridicamente ruim, que será de difícil reversão, ante a redução da participação das partes no processo à absoluta irrelevância.
Afinal, se a justiça será tarifada, padronizada, de nada valerá o exercício do contraditório, pois se estará perante a ditadura do pensamento único. Nelson Rodrigues já dizia: “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”.
A naturalização do uso de algoritmos que sugerem minuta pronta de decisão atrai o efeito colateral de que efetivamente se desaprenda a decidir (fenômeno chamado de deskilling, como o sofrido pelo capitão de aeronave que sempre confia no piloto automático).
Ainda que se restrinja o uso da máquina à função de assessoria, o volume de minutas que o assessor-robô poderá produzir gera a tendência de aceitação acrítica daquele resultado, operando “como o cavalo de troia que promoverá, de forma inevitável, uma progressiva e velada obsolescência do juiz humano, o único juiz digno desse nome, em favor da máquina”<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>.
A máquina pode ainda se tornar superinteligente e superior ao domínio humano, como defende Stuart Russell, autor do livro “Compatibilidade Humana: Inteligência Artificial e o Problema de Controle”<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>. Afinal, o já conhecido método de aprendizado profundo (deep learning) usa redes neurais artificiais para necessitar muito pouco da ação humana, podendo evoluir para novos aprendizados de forma autodidata.
Tem-se como exemplo o software AlphaGo Zero que foi projetado especificamente para jogar Go e que veio a se tornar não só um excelente jogador de Go, mas também de xadrez e de Shogi<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>.
É muito tentador treinar robôs para julgar a infinidade de litígios que assombra o Judiciário, mas é o ideal? Conseguiremos nos tornar uma sociedade mais justa e igualitária se o Judiciário passar a decidir tudo conforme padrões identificados por robôs, sem dialogar efetivamente com as partes?
A máquina não faz julgamento moral. Concentra-se apenas no objetivo que lhe foi ensinado e, mesmo que evolua ao ponto de dar a impressão de pensar (machine consciouness), de ter empatia ou manifestar criatividade, o poder de decidir destinos não é um espaço do qual a humanidade deve abdicar.
Direito é uma produção essencialmente humana e, por isso, é perfeita a conclusão de Luís Greco<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>, no sentido de que “tem de continuar a ser obra nossa. Nenhuma máquina pode nos prescrever de que maneira nós, enquanto responsáveis, temos de conviver uns com os outros. Dessa decisão e dessa responsabilidade não podemos nos furtar. O juiz-robô seguramente não é o primeiro, mas talvez seja o último passo que daremos em uma direção errada”.
Já caminhamos o suficiente para entender que assim não se faz justiça. Ser efetivamente ouvido por um igual é o que nos salvará do arbítrio, ainda que este se origine de máquinas.
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}, 3000);
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<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Conselho Nacional de Justiça. Inteligência Artificial na Justiça. Coordenação: José Antônio Dias Toffoli; Bráulio Gabriel Gusmão. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: &lt;<a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/05/Inteligencia_artificial_no_poder_judiciario_brasileiro_2019-11-22.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/05/Inteligencia_artificial_no_poder_judiciario_brasileiro_2019-11-22.pdf</a>&gt;. Acesso em maio de 2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> FGV Conhecimento. Centro de Inovação. Administração e Pesquisa do Judiciário. Inteligência Artificial: Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do poder judiciário brasileiro. Coordenação: Luiz Felipe Salomão. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: &lt;<a href="https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf">https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf</a>. Acesso em maio de 2021.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Idem.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> GRECO, Luís. Poder de julgar sem responsabilidade de julgador: a impossibilidade jurídica do juiz-robô. São Paulo: Marcial Pons, 2020, p. 63.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> BBC News Brasil. Como a inteligência artificial poderia acabar com a humanidade – por acidente. Disponível em: &lt;<a href="https://www.bbc.com/portuguese/geral-50228913">https://www.bbc.com/portuguese/geral-50228913</a>&gt;. Acesso em maio de 2021.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Idem.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> GRECO, Luís. Idem, p. 64.

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Juiz-robô e o contraditório substancial

Incompatibilidade desde a origem?