Opinião e Análise

Thaís Amoroso Paschoal

O triste caso da menina de 11 anos que buscou o Judiciário para exercer seu direito ao aborto legal colocou luz sobre a forma inadequada com que alguns magistrados e magistradas e outros atores do sistema de Justiça conduzem audiências que envolvem pessoas ou grupos vulneráveis<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Questões como essa têm levado a doutrina a repensar o acesso à Justiça com base nos marcadores sociais de diferenças<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Em outras palavras e na perspectiva distributiva do acesso à Justiça<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, não há como conceber o sistema de Justiça hoje sem a consideração das diversidades que envolvem gênero, raça, classe social etc.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Não é demais lembrar que, no caso, uma menina de 11 anos, vítima de violência sexual, buscou atendimento em um hospital público para a realização de um aborto legal. Sob a alegação de que a gestação teria mais de 20 semanas, o hospital recusou a realização do aborto e a menina passou a ser mantida num abrigo, afastada da família.
Proposta a ação para que o direito ao aborto legal pudesse ser exercido, na audiência do caso, a juíza e a promotora de Justiça tiveram posturas evidentemente incompatíveis com a condução de ato envolvendo uma criança, constrangendo a menina inúmeras vezes, na tentativa de evitar o exercício do seu direito ao aborto.
Esse constrangimento percorreu todo o ato, envolvendo frases como “tu suportaria ficar só mais um pouquinho?”; “queres escolher o nome do bebê?”; “tu sentes o bebê mexer?”; “você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção?”; “a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Alguns dias depois, a menina finalmente conseguiu exercer seu direito e o aborto foi realizado.
Há dois aspectos fundamentais que devem ser discutidos a partir deste caso.
Em primeiro lugar, a conduta da magistrada e da promotora são incompatíveis com a Constituição Federal, que — em seu art. 227 — assegura absoluta prioridade para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
Além disso, viola o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm">Estatuto da Criança e do Adolescente</a> (Lei 8069/90), ao menos em dois dispositivos (o art. 5º e o art. 18), voltados à proteção das crianças e adolescentes contra qualquer forma de violência e crueldade, protegendo-as de tratamentos desumanos ou constrangedores que violem sua dignidade.
Também agem de forma ilegal à luz da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm">Lei 13.431/17</a>, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. O art. 4º da referida lei prevê o combate a formas de violência psicológica, aí incluídos qualquer constrangimento ou humilhação que possam comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional (inciso I), além da violência institucional, “entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização” (inciso IV).
Para além disso, o caso evidencia a imprescindibilidade de se garantir que o sistema de justiça esteja preparado para acolher as vítimas de violência, evitando que, em qualquer caso, os atores voltados à proteção dessas vítimas sejam responsáveis pela revitimização e reiteração das violências vivenciadas.
Relevante pesquisa realizada pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">Conselho Nacional de Justiça</a> (CNJ) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou as inúmeras dificuldades das vítimas de violência doméstica e familiar no acesso ao sistema de Justiça<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. O relato de campo realizado revelou inúmeras falhas na conduta de alguns magistrados, no que tange à condução das audiências e na prática de outros atos por inúmeros atores.
Deparou-se, por exemplo, com um caso em que o magistrado, prezando pela “agilidade”, “corta a fala da vítima ou da promotora, a fim de conduzir a oitiva, o que se mostra diferente com relação ao acusado e seus advogados”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Outro relato evidencia que “o juiz demonstrou muita impaciência para a realização de audiências”, dando a impressão de pretender encerrar o ato com brevidade<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Outro problema relatado diz respeito à exigência de repetição do depoimento das mulheres, que são levadas a relatar mais de uma vez a violência sofrida, “seja em função da estratégia de questionamento adotada pelos atores jurídicos, da falta de objetividade ou coerência nas respostas das vítimas ou de problemas técnicos durante as audiências”, observando-se “que as depoentes ficavam visivelmente expostas e aflitas”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
O relatório aponta, ainda, inúmeros casos em que houve falta de atenção com o depoimento das vítimas, situações em que os juízes se retiravam da audiência durante o depoimento, falta de esclarecimento e orientação e até mesmo situações de constrangimento diante de depoimentos contraditórios, sem consideração das peculiaridades do caso e dos motivos que levaram a isso.
Assim como no caso da menina de 11 anos, essa pesquisa permite uma compreensão das dificuldades dos atores do sistema de Justiça em lidar com a vulnerabilidade e a pluralidade. Evidencia, ainda, a necessidade de deixarem de lado suas concepções morais na condução e na prática dos atos processuais.
Há, de outro lado, inúmeros exemplos de boas práticas. O mesmo relatório de pesquisa aponta casos de magistrados com atitudes compreensivas e acolhedoras com as mulheres vítimas de violência, exercendo escuta ativa e permitindo que a vítima se sentisse confortável para expor os fatos necessários à compreensão do caso. Há muitos exemplos de magistrados que, com a sensibilidade que a situação exigia, conseguiram conduzir o ato de forma mais humanizada.
Recentemente, o CNJ publicou o “Protocolo para julgamento na perspectiva de gênero 2021”, a partir de estudos desenvolvidos pelo grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ nº 27/2021, para colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas ao enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário. O protocolo estabelece um guia para magistrados e magistradas, com um passo a passo que orienta a atuação em inúmeras situações envolvendo processos relativos à violência contra mulheres.
Especificamente no que toca à instrução processual, o protocolo destaca que “em casos que envolvem desigualdades estruturais, a audiência é um ponto nevrálgico, na medida em que, se não conduzida com perspectiva de gênero, pode se tornar um ambiente de violência institucional de gênero”.
Assim, “a situação de subordinação de um grupo pode gerar um sentimento de desconfiança por parte de autoridades públicas que, muitas vezes, ocupam posições sociais diferentes das vítimas e, por conta disso, têm maior dificuldade de se colocar no lugar daquela pessoa que tem experiências de vida diferentes das suas. Em vista dessa situação, o(a) julgador(a) atento(a) a gênero é aquele(a) que percebe dinâmicas que são fruto e reprodutoras de desigualdades estruturais presentes na instrução do processo e que age ativamente para barrá-las”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Há muito se fala num Poder Judiciário que tem como função principal a tutela adequada dos direitos, o que se relaciona diretamente com o tratamento adequado de conflitos. Tratar um conflito adequadamente exige não só a prestação de uma tutela que seja efetiva, tempestiva e adequada, como também uma preocupação com a prática de cada ato processual, incluindo, é claro, a condução das audiências a partir das especificidades das partes.
Ao lado do domínio da técnica processual, é fundamental que o sistema de Justiça seja um espaço democrático, de acolhimento e de cuidado com o jurisdicionado, especialmente em casos de vulnerabilidades. Caso contrário, se revelará um espaço de reiteração das violências.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O termo vulnerabilidade é utilizado como referência a uma condição pela qual um indivíduo é afetado ou pode ser potencialmente afetado por danos físicos ou emocionais. Significa, desse modo, exposição real ou potencial ao dano (NIFOSI-SUTTON, Ingrid. The Protection of Vulnerable Groups under International Human Rights Law. London and New York: Routledge, 2019, p. 4).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver, nesse sentido: GALANTER, Marc. Access to justice in a world of expanding social capability, 37, Fordham Urban Law Jornal 115, 2010; SANDFUR, Rebecca L. Access to Civil Justice and Race, Class and Gender Inequality. Annual Review of Sociology vol. 34:339-358, 2008; GABBAY, Daniela Monteiro; COSTA, Susana Henriques da; ASPERTI, Maria Cecília Araujo. Acesso à justiça no brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa. In Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 6 n. 3: set./dez. 2019.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> GALANTER, Marc. Access to justice in a world of expanding social capability…
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Em 2020, o caso Mariana Ferrer chamou a atenção para o mesmo problema. A conduta evidentemente inadequada de todos os atores que participavam da audiência de instrução levou à edição da Lei 14.245/2021, chamada de “Lei Mariana Ferrer”, que tem como objetivo coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Fonte: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=va7ilbqSZxY">https://www.youtube.com/watch?v=va7ilbqSZxY</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> De forma mais ampla, para uma análise das inúmeras dificuldades encontradas pelas mulheres no processo civil e os fatores de desequilíbrio, ver HILL, Flávia Pereira. Uns mais iguais que os outros: em busca da igualdade (material) de gênero no processo civil brasileiro. In Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Ano 13. Volume 20. Número 2. Maio a Agosto de 2019.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA E APLICADA.
O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Brasília: CNJ, 2019, p. 62.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Idem, p. 64.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Idem, p. 66.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento na perspectiva de gênero 2021. Brasília: CNJ, 2019, p. 47.

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JOTA

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