Opinião e Análise

Marcela Mattiuzzo

Renata Zuccolo

Discussões sobre questões de gênero, direito e políticas públicas têm ganhado relevância cada vez maior, e a área de defesa da concorrência não é exceção. Aliás, ao contrário, ela tem sido palco de debates interessantíssimos sobre a necessidade e a possibilidade (ou não) de inclusão de objetivos tais como sustentabilidade, combate à pobreza e, claro, questões sobre diversidade de gênero e inclusão, no rol a ser perseguido e alcançado pelas políticas públicas de defesa da concorrência, para além do objetivo mais tradicionalmente visto como central no antitruste, o bem-estar do consumidor.
Esse debate é de longa data e se insere num contexto bastante amplo. Existem sérias dúvidas sobre a pertinência, e até sobre a viabilidade dessa inclusão. Sua implementação é, no mínimo, bastante desafiadora, tanto para as autoridades que desenham as políticas de defesa da concorrência, quanto para aqueles agentes públicos e privados que precisarão implementá-las, observá-las e cumpri-las.
Nos dias de hoje, o embate entre os autodenominados neobrandeisianos, que defendem uma expansão dos objetivos do antitruste – ou a retomada de seus objetivos tradicionais, já que parte do argumento desses autores é exatamente que o antitruste nunca teve como objetivo original apenas a busca pelo bem-estar do consumidor<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> –, e aqueles que as rechaçam,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> autores geralmente mais próximos do pensamento da Escola de Chicago ou do que se convencionou denominar Pós-Chicago, que entendem que, no caso específico do antitruste, o foco no bem-estar do consumidor é o caminho, sendo que objetivos diversos poderiam ser alcançados, quando for o caso, de forma mais eficiente por meio de outras políticas públicas.
Em meio a esse debate amplo sobre os objetivos da política concorrencial, desde 2018 a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>) e, mais propriamente, seu Comitê de Concorrência, tem se dedicado ao tema de questões de gênero. Em 2020, lançou um grupo de trabalho com foco na produção de estudos e evidências para embasar a discussão e, futuramente, servir de pano de fundo para a elaboração de guias e recomendações que viabilizem a adoção, por autoridades de defesa da concorrência, de políticas públicas que considerem questões de gênero<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Trata-se de trabalho ainda inicial, mas que numa primeira rodada de produção de estudos, finalizada em outubro em 2021, já contou com artigos de estudiosos e instituições de renome que buscaram verificar desde a necessidade (ou não) de se considerar questões de gênero para a análise dos impactos concorrenciais de operações e o impacto de questões de gênero nas condutas empresariais, até os benefícios da inclusão de discussões de gênero na busca de políticas de defesa da concorrência que visem ao interesse público de forma mais ampla.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Ainda que se esteja longe de qualquer tipo de consenso sobre a inclusão dessas questões como parte dos objetivos a serem buscados quando do desenho ou da elaboração de políticas de defesa da concorrência, fato é que os estudos produzidos até agora mostram que o tema tem sua relevância.
Por exemplo, o estudo produzido pela consultoria econômica Oxera e denominado <a href="https://www.oecd.org/daf/competition/gender-inclusive-competition-proj-1-gender-differences-in-surveys-for-market-definition-and-merger-analysis.pdf">“Gender Differences in Surveys for Market Definition and Merger Analysis”</a> concluiu que, numa boa amostra de casos empíricos analisados, havia diferenças significativas no comportamento de consumidores homens e mulheres, tanto em termos de preferências, quanto na identificação de produtos substitutos e na decisão de substituição.
O estudo chega a aventar a possibilidade de que, a depender do caso concreto e das implicações na forma pela qual as empresas ofertam e/ou precificam seus produtos, poderia haver inclusive a adoção de sub-segmentações (baseadas em gênero) na definição de mercado relevante e que tais fatores deveriam ser considerados pelas autoridades de defesa da concorrência quando da análise de operações. Num contexto em que a precificação por algoritmos se torna uma realidade mais presente – e, como destacado recentemente pela The Economist,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> há cada vez mais investimento de empresas em sistemas de precificação eficiente – essa questão deixa de ser lateral e restrita aos bancos acadêmicos e se torna uma preocupação legítima de reguladores.
Em outras palavras, mesmo que questões de gênero não sejam perseguidas como objetivos específicos das políticas de defesa da concorrência, elas impactam aspectos relevantes da dinâmica e da competitividade dos mercados, aspectos esses que devem ser levados em consideração, inclusive pelos agentes encarregados de analisar condutas ou operações no mercado.
Como destaca o artigo produzido pelo professor William Kovacic, também nessa primeira rodada de estudos para a OCDE,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> qualquer debate que vise a alterar os objetivos de uma política pública enfrenta desafios consideráveis, especialmente de duas naturezas: em primeiro lugar, há a dificuldade em entender como uma política pública já estruturada passará a incorporar novas metas, que não necessariamente dialogam com facilidade com os objetivos já estabelecidos. Em segundo, há um desafio de convencimento, no sentido de garantir para o corpo técnico responsável pela implementação da política que aquele novo comprometimento é real e duradouro – afinal o engajamento da equipe tende a ser tanto menor quanto maiores forem as chances de aquele ser um movimento pontual e pouco organizado de inserção de novas pautas na agenda da autoridade, que logo será abandonado.
Um dos aspectos que Kovacic cita como relevantes no processo, especificamente pensando em gênero, é o foco em representatividade – em outras palavras, efetiva representação de gênero na autoridade será relevante para que o comprometimento com a agenda seja real. O autor também entende ser relevante olhar para o passado e buscar verificar de que maneira questões de gênero tiveram um papel, explícito ou implícito, na definição das políticas públicas. Por fim, destaca a relevância de a autoridade concorrencial voltar-se a condutas no mercado que imponham barreiras à entrada e ao desenvolvimento de negócios liderados por grupos sub-representados, sendo que o grupo de mulheres um exemplo, dentre muitos outros.
Este texto não tem a pretensão de oferecer uma resposta final ao embate entre aqueles que defendem a ampliação dos objetivos das políticas de defesa da concorrência e aqueles que a rechaçam, até porque a discussão perpassa uma série de temas que vão muito além de questões de gênero. De toda forma, a iniciativa da OCDE de discutir o tema e de buscar a produção de estudos que possam enriquecer o debate é de grande importância e pode ajudar a realização de reflexões mais robustas pelas autoridades concorrenciais, por acadêmicos e também pelo setor privado, incluindo empresas e a comunidade antitruste mais ampla, que abarca também os escritórios de advocacia e consultorias econômicas. Fica aqui o convite.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os expoentes mais claramente identificados são Tim Wu e Lina Khan que hoje, inclusive, são respectivamente membro do Conselho Econômico do Presidente dos EUA e Presidente da Federal Trade Commission.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A gama de autores que se identifica como parte de correntes Chicago e Pós-Chicago é considerável, e há divergências relevantes entre eles. Para uma análise mais detalhada do tema, vide BECKER, B. B.; MATTIUZZO, M. Plataformas Digitais e a Superação do Antitruste Tradicional. In: PEREIRA NETO, C. M. (ed.) Defesa da concorrência em plataformas digitais. São Paulo: FGV Direito SP, 2020, p. 40-83.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.oecd.org/competition/gender-inclusive-competition-policy.htm">https://www.oecd.org/competition/gender-inclusive-competition-policy.htm</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Os artigos podem ser acessados no link <a href="https://www.oecd.org/competition/gender-inclusive-competition-policy.htm">https://www.oecd.org/competition/gender-inclusive-competition-policy.htm</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.economist.com/business/2022/03/26/how-companies-use-ai-to-set-prices">https://www.economist.com/business/2022/03/26/how-companies-use-ai-to-set-prices</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.oecd.org/daf/competition/gender-inclusive-competition-proj-7-incorporating-gender-as-a-prioritization-principle.pdf">https://www.oecd.org/daf/competition/gender-inclusive-competition-proj-7-incorporating-gender-as-a-prioritization-principle.pdf</a>

gênero

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JOTA

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