Opinião e Análise

Marina Fontes De Resende

A obrigatoriedade de custeio da técnica de fertilização in vitro é tema contraditório no Judiciário brasileiro. Os tribunais estaduais se posicionam das mais diversas maneiras, muitas vezes, confundindo institutos tão específicos da área do Direito da Saúde. As diferenças conceituais de planejamento familiar, inseminação artificial e fertilização in vitro são as principais responsáveis pela grande diversidade de decisões sobre a questão. A discussão depende de fatores muitas vezes desconhecidos pelos juristas, por dizer respeito a termos técnicos da medicina.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se posicionou<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> esclarecendo a diferença entre duas circunstâncias: o tratamento de infertilidade e a prevenção de infertilidade. O tratamento de infertilidade se dá quando há uma patologia que gera a infertilidade em si ou quando a própria infertilidade é preexistente a qualquer tratamento de saúde. Nesse caso o tratamento é feito por meio dos procedimentos de reprodução assistida. Já a prevenção de infertilidade se dá quando a infertilidade é causada por efeito colateral de tratamento prescrito.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>De acordo com a Corte, apenas a prevenção de infertilidade deve ser custeada pelo plano de saúde, por se tratar de obrigação prevista na Lei de Plano de Saúde<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> (LPS), que dispõe ser obrigatório o custeio de todas as ações necessárias à prevenção da doença, assim como à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde do beneficiário. O caso em julgamento tratou de paciente de 30 anos que seria submetida à quimioterapia para tratamento de câncer de mama. O médico, preventivamente, indicou o tratamento de congelamento de óvulos para posterior inseminação, tendo em conta que o tratamento de quimioterapia tinha grandes chances de levá-la à infertilidade.
A operadora negou a cobertura do congelamento dos óvulos e o STJ decidiu, considerando que a esterilidade seria um efeito previsível do tratamento oncológico, que a operadora deveria arcar com a criopreservação dos óvulos até o fim do tratamento do câncer - a partir do fim do tratamento de câncer, a beneficiária teria que arcar com os custos do congelamento dos óvulos. Esse caso foi considerado como prevenção de infertilidade e o fundamento legal utilizado para firmar o posicionamento foi o art. 6º<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> da CF e o art. 35-F<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> da LPS.
O tratamento de infertilidade, por sua vez, recebeu diferente abordagem. A Terceira Turma do STJ, em acórdão não-unânime<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, entendeu que este não deve ser custeado pela operadora.
O voto vencedor, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, baseou-se nas resoluções da Agência Nacional de Saúde (ANS) e na Lei de Plano de Saúde. O art. 10 da LPS prevê em seu caput o plano-referência e determina a obrigatoriedade das operadoras de planos de saúde de cobrir as doenças listadas na CID<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> da OMS. O inciso III<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> do mesmo dispositivo prevê exceção à essa regra, permitindo que as operadoras de plano de saúde não custeiem a inseminação artificial. O voto foi fundamentado, ainda, na Resolução Normativa da ANS<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> que regulamenta que a inseminação artificial e outras técnicas<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> de reprodução assistidas não fazem parte do plano-referência, podendo ser excluídas contratualmente pelas operadoras.
O voto vencedor aduziu que o procedimento de fertilização in vitro não deve ser coberto, quando não é efeito colateral, previsível e evitável do tratamento prescrito pelo médico (prevenção de infertilidade), mas uma patologia preexistente a este, cujo tratamento é feito por meio dos procedimentos de reprodução assistida (tratamento de infertilidade). Consignou também que a obrigatoriedade do SUS de fornecer auxílio referente à reprodução assistida na modalidade fertilização in vitro constitui política pública que não se confunde e nem é capaz de alterar a relação contratual-privada própria dos planos de saúde regulados pela LPS.
O ministro Moura Ribeiro não acompanhou o voto e, abrindo divergência e, sendo acompanhado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, entendeu pela obrigatoriedade de custeio da fertilização in vitro também nos casos de tratamento de infertilidade, seguindo a lógica a seguir.
O planejamento familiar é gênero e abarca como subgêneros a reprodução natural e a reprodução assistida<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. As técnicas de reprodução assistida são classificadas entre a inseminação artificial e a fertilização. A inseminação artificial consiste na introdução de gameta masculino, por meio artificial, no corpo da mulher, esperando-se que a própria natureza faça a fecundação. A fertilização, por sua vez, acontece fora do corpo da mulher, in vitro, no qual o óvulo e o espermatozóide são unidos numa proveta<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Feitas as devidas distinções, entendeu o ministro Moura Ribeiro que o art. 35-C, III, da LPS prevê a obrigatoriedade de cobertura dos casos de planejamento familiar, que é o gênero do qual a inseminação artificial e a fertilização in vitro estão abarcadas.
Considerando que a exceção prevista no inciso III do artigo 10 da LPS diz respeito somente à cobertura de inseminação artificial e não veda expressamente a fertilização in vitro, entende ser obrigatória a sua cobertura.
Destaca que o rol de exceções previsto no inciso III do referido dispositivo é numerus clausus, aplicando-se o princípio da "lei que abre exceção a regras gerais só abrange os casos que especifica expressamente<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>", não sendo possível uma interpretação extensiva a ele<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Quanto à Resolução Normativa que equipara a inseminação artificial com a fertilização in vitro, entendeu-se que a ANS inovou na ordem jurídica, pois modificou e restringiu direitos e obrigações não previstos no art. 10, III, da LPS. E que a Resolução Normativa que equipara a inseminação artificial à fertilização in vitro é manifestamente ilegal, por extrapolar poder regulamentar, provocando uma interpretação incompatível com o microssistema consumerista, violando o disposto no art. 47 do CDC e o art. 423 do Código Civil.
Assim, conclui que o art. 10, III, da LPS excetua tão somente a inseminação artificial, não sendo possível uma interpretação analógica em prejuízo ao consumidor, sendo obrigação da operadora o custeio da fertilização in vitro.
<blockquote class="jota-article__eye">A divergência de posicionamento não está presente somente no STJ. Os tribunais estaduais proferem decisões das mais diversas naturezas sobre o tema, que precisa ser pacificado para dar segurança jurídica aos beneficiários e ao setor de saúde suplementar.</blockquote>
Por essa razão, o STJ afetou o tema 1.067 para julgamento de recurso repetitivo que visa definir especificamente sobre a obrigatoriedade ou não de cobertura da técnica de fertilização in vitro.
Os três processos afetados, que serão julgados por meio da dinâmica dos recursos repetitivos, são oriundos do mesmo tribunal de origem, Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJSP), e a cada um foi dada uma solução diferente à lide, sendo dois deles<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> no sentido da obrigatoriedade de custeio pela operadora e um<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> deles em sentido contrário.
Ambos os posicionamentos têm fundamentos robustos, técnicos e multidisciplinares. Faz-se necessário conceituar e compreender as nuances da medicina, da bioética e do Direito à Saúde para compreender a normativa vigente. Como transcrito, é necessário entender as classificações de planejamento familiar, reprodução assistida, inseminação artificial e fertilização in vitro. Também não é possível se olvidar, ao interpretar o direito, da intenção do legislador - se pretendia excluir a inseminação artificial, que é procedimento mais simples, porque não teria excluído também a fertilização in vitro, que é técnica mais custosa?
O respeito às normas editadas pela Agência Reguladora (que detém de maior conhecimento técnico acerca do tema) também deve estar na mente dos ministros, assim como a necessidade de compatibilidade da norma com o microssistema consumerista e o respeito ao pacta sunt servanda.
Abarcando todas essas considerações, o julgamento do tema 1.067 será um grande debate e uma importantíssima discussão que impactará na vida dos beneficiários e no futuro do setor da saúde suplementar.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> REsp n. 1.815.796/RJ
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Lei n. 9.656/1998
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 35-F.  A assistência a que alude o art. 1o desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> REsp n. 1.859.606/SP
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, também conhecido como Classificação Internacional de Doenças (CID).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Art. 10.  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:
(...)
III - inseminação artificial.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> RN 338/2013 (vigente à época do julgamento e atualizada pela RN n. 465/2021 da ANS)
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 19. A cobertura assistencial de que trata o plano-referência compreende todos os procedimentos clínicos, cirúrgicos, obstétricos e os atendimentos de urgência e emergência, na forma estabelecida no artigo 10 da Lei nº 9.656, de 1998.
<ul>
<li>
1º São permitidas as seguintes exclusões assistenciais previstas no artigo 10 da Lei nº 9.656, de 1998:
</li>
</ul>
(...)
II - inseminação artificial, entendida como técnica de reprodução assistida que inclui a manipulação de oócitos e espermapara alcançar a fertilização, por meio de injeções de esperma intracitoplasmáticas,transferência intrafalopiana de gameta, doação de oócitos, indução da ovulação, concepção póstuma, recuperação espermática ou transferência intratubária do zigoto, entre outras técnicas;
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Trata-se de um conjunto de técnicas utilizadas por médicos especializados, que tem por finalidade facilitar ou viabilizar a procriação por homens e mulheres estéreis ou inférteis. (Revista da EMERJ, v. 13, nº 50, 2010. Marise Cunha de Souza. As Técnicas de Reprodução Assistida. A Barriga de Aluguel. A Definição da Maternidade e da Paternidade. Bioética)
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> SILVA, R. B. T. Da, Responsabilidade civil: responsabilidade civil na área da saúde. São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 238.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Exceptiones sunt strictissimoe interpretationis
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a>  Seguro saúde (Lei n. 9.656/98): comentários, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Lejus, 2000, pág. 96.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> REsp n. 1.822.420/SP e REsp n. 1.851.062/SP.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> REsp n. 1.822.818/SP

direito à saúde

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JOTA

Julgamento do tema 1.067 impactará a vida dos beneficiários e o futuro do setor da saúde suplementar


Planos de saúde, planejamento familiar e fertilização in vitro

Diferenças de planejamento familiar, inseminação artificial e fertilização in vitro são responsáveis pela diversidade de decisões